Descendentes dos circassianos que sobreviveram à Guerra do Cáucaso acusam russos de abafar história sangrenta da região e pedem boicote aos Jogos de Inverno
São 12 estrelas e três setas douradas sobre um fundo verde.
Uma bandeira bonita, graficamente simples, mas que é símbolo de uma luta longa,
de uma história trágica, sangrenta e pouco conhecida. Massacrados pelo Império
Russo durante a Guerra do Cáucaso, os circassianos usam o estandarte como
referência em busca da identidade quase perdida pela opressão e pelos anos no
exílio. Às vésperas do aniversário de 150 anos do que classificam como o
genocídio de sua etnia, os herdeiros dos sobreviventes tentam usar os holofotes
olímpicos para mostrar que Sochi, na verdade, não é o que Vladimir Putin tenta
vender. Que, antes de ser casa dos Jogos de Inverno, foi palco de um dos mais
violentos episódios da disputa pelo poder e controle do Mar Negro.
Com a iminência da realização das Olimpíadas de 2014, a revolta cresceu. O desgosto de ver a memória de seus antepassados ignorada gerou uma série de protestos ao redor do mundo e até a criação de um antimascote. Para dimensionar este sentimento para o mundo e ilustrar o que julgam ser um enorme desrespeito, chegam ao ponto de comparar a realização dos Jogos em Sochi com uma possível realização da competição em Auschwitz, morada final de milhões de judeus durante a Segunda Guerra Mundial.
Durante o governo do czar Pedro, o Grande, o Império Russo iniciou uma expansão forçada para ocupar parte da costa do Mar Negro. Ajudados principalmente por britânicos e turcos, os circassianos resistiram às perdas materiais e humanas por quase um século. Sob o comando do Czar Alexander III, no entanto, os ataques foram mais agressivos e letais. Sochi foi um dos palcos desta fase mais violenta que, em 1864, culminou na vitória russa a um custo altíssimo para a população local.
Dos cerca de 3 milhões de circassianos que viviam na região, estima-se
que 1,5 milhão foram mortos e outro milhão de pessoas tenha fugido para outros
países. Atualmente, há entre 5 e 6 milhões de descendentes desta etnia no
mundo, dos quais 90% vivem longe da terra natal. A maioria deles mora na Turquia,
Síria, Jordânia ou em Israel.
A história do genocídio, porém, ficou adormecida por anos. Separados geograficamente e sem o conhecimento da extensão do massacre – até a divulgação de documentos de Estado em Tbilisi, na Geórgia, na última década -, os circassianos aproveitaram para expor sua causa publicamente com a candidatura russa para sediar os Jogos Olímpicos de Inverno. Pouco antes das Olimpíadas de Vancouver, foi criado o movimento “No Sochi”, que usa o evento esportivo como referência para lembrar a Guerra e suas consequências.
- Os Jogos de Sochi deram aos circassianos uma plataforma para aumentar a conscientização sobre a situação do povo, a história ignorada e lançar uma luz sobre os direitos humanos negados. Os circassianos ao redor do mundo se opõem aos Jogos desde antes da eleição da cidade como sede. Enviamos cartas ao COI e fizemos protestos em Istambul e Nova York – disse Dana Wojokh, uma das principais ativistas do movimento.
- Os russos foram os donos da narrativa nos últimos 150 anos. Sochi 2014 permitiu aos circassianos despertarem sobre como a Rússia tem realmente apagado história e nunca vai fazer nada para promover o assunto. Assim criamos organizações, não só para abordar as Olimpíadas, mas para resolver questões como o direito de retorno, o reconhecimento do genocídio e a preservação da identidade, dando esperança para um futuro com um propósito – complementou Zack Barsik, outro membro do “No Sochi”.
Em cartas abertas
enviadas a autoridades e à mídia internacional, o movimento compara a
realização dos Jogos na cidade russa a uma possível escolha de Auschwitz como
sede olímpica. Nome alemão para a cidade polonesa de Oświęcim,
Auschwitz é o complexo mais conhecido de campos de concentração para extermínio
de judeus durante o Nazismo. Nele morreram mais de 3 milhões de prisioneiros,
fosse nas câmaras de gás ou devido à fome e a doenças.
Um dos oito especialistas na Guerra Russo-Circassiana no mundo, o americano Walter Richmond possui livros publicados sobre o assunto e leciona sobre a cultura russa em uma universidade nos Estados Unidos. Ele vê fundamento na comparação feita pelo “No Sochi”.
- Claro que nada se compara aos crimes cometidos em Auschwitz, mas um enorme número de circassianos morreu em Sochi, que é considerada por eles uma das principais locações da tragédia. Então é possível dizer, sim, que seria similar a ter Jogos em Auschwitz, no sentido de que o lugar possui um significado trágico e especial para os circassianos da mesma forma que o campo de concentração foi para os judeus.
Além das passeatas e protestos nas ruas, o “No Sochi” criou um concurso
para a escolha de um “antimascote” para os Jogos. Em contraposição aos cinco
mascotes do evento oficial (três para as Olimpíadas e dois para as
Paralimpíadas de Inverno), o movimento buscou um símbolo gráfico que associasse
o evento ao massacre do passado. De todos os designs recebidos, 22 foram postos
em uma votação no site oficial da campanha. O mais popular entre os internautas
foi a imagem do Leopardo – representado originalmente apoiado a uma prancha
de snowboard – com as patas sujas de sangue ao lado de um caixão com as cores e
símbolos da bandeira circassiana.
- A ideia do antimascote começou quando o Comitê Organizador de Sochi abriu o concurso para a escolha do mascote oficial. Nós decidimos que um ótimo caminho para envolver e atrair as pessoas para o movimento era lançar um mascote com o que consideramos o legado verdadeiro de Sochi. Os participantes nos enviaram várias sugestões. Foi uma campanha muito bem recebida pelo público – afirmou Dana.
O historiador Walter Richmond, no entanto, considera que a comunidade circassiana “não capitalizou suficientemente esta oportunidade” por ainda ser muito segregada. Para o especialista, os holofotes que acompanham as Olimpíadas estarão mais voltados para outros assuntos – como o terrorismo e as leis antigays. Ele acredita que a área especial de protestos anunciada pelo presidente Vladimir Putin não permitirá a presença de manifestantes a favor dos circassianos.
Indiferente à homenagem russa no perímetro olímpico, o movimento "No Sochi" já programou manifestações mundo afora contra os Jogos de Sochi nos dia 2 e 7 de fevereiro, data da Cerimônia de Abertura do evento. Os próximos capítulos desta história prometem ser barulhentos.
FONTE:
http://globoesporte.globo.com/olimpiadas-de-inverno/noticia/2014/02/etnia-russa-acusa-sochi-de-genocidio-cita-auschwitz-e-cria-ate-antimascote.html
Com a iminência da realização das Olimpíadas de 2014, a revolta cresceu. O desgosto de ver a memória de seus antepassados ignorada gerou uma série de protestos ao redor do mundo e até a criação de um antimascote. Para dimensionar este sentimento para o mundo e ilustrar o que julgam ser um enorme desrespeito, chegam ao ponto de comparar a realização dos Jogos em Sochi com uma possível realização da competição em Auschwitz, morada final de milhões de judeus durante a Segunda Guerra Mundial.
Um dos protestos organizados pelo movimento:
'Sochi, a terra do genocídio', diz o cartaz
(Foto: Divulgação/No Sochi)
Massacre no século
XIX é origem da revolta
Ponto de encontro entre o Oriente e o Ocidente, o Cáucaso é palco de
choque políticos, militares, religiosos e culturais há séculos. Entre as
montanhas características da região, há cerca de uma centena de etnias, um
punhado de famílias linguísticas e religiões diversas como o catolicismo, o
islã sunita e xiita e o budismo. De uma terra independente com sua própria
dinastia de reis a parte integrante do Império Persa e, posteriormente, a alvo
de disputa de otomanos, mongóis e russos, a área sofreu as consequências de uma
batalha territorial sangrenta. Durante o governo do czar Pedro, o Grande, o Império Russo iniciou uma expansão forçada para ocupar parte da costa do Mar Negro. Ajudados principalmente por britânicos e turcos, os circassianos resistiram às perdas materiais e humanas por quase um século. Sob o comando do Czar Alexander III, no entanto, os ataques foram mais agressivos e letais. Sochi foi um dos palcos desta fase mais violenta que, em 1864, culminou na vitória russa a um custo altíssimo para a população local.
As doze estrelas da bandeira circassiana representam as tribos da etnia, e as setas, a paz e a unidade
A história do genocídio, porém, ficou adormecida por anos. Separados geograficamente e sem o conhecimento da extensão do massacre – até a divulgação de documentos de Estado em Tbilisi, na Geórgia, na última década -, os circassianos aproveitaram para expor sua causa publicamente com a candidatura russa para sediar os Jogos Olímpicos de Inverno. Pouco antes das Olimpíadas de Vancouver, foi criado o movimento “No Sochi”, que usa o evento esportivo como referência para lembrar a Guerra e suas consequências.
- Os Jogos de Sochi deram aos circassianos uma plataforma para aumentar a conscientização sobre a situação do povo, a história ignorada e lançar uma luz sobre os direitos humanos negados. Os circassianos ao redor do mundo se opõem aos Jogos desde antes da eleição da cidade como sede. Enviamos cartas ao COI e fizemos protestos em Istambul e Nova York – disse Dana Wojokh, uma das principais ativistas do movimento.
- Os russos foram os donos da narrativa nos últimos 150 anos. Sochi 2014 permitiu aos circassianos despertarem sobre como a Rússia tem realmente apagado história e nunca vai fazer nada para promover o assunto. Assim criamos organizações, não só para abordar as Olimpíadas, mas para resolver questões como o direito de retorno, o reconhecimento do genocídio e a preservação da identidade, dando esperança para um futuro com um propósito – complementou Zack Barsik, outro membro do “No Sochi”.
No
site do movimento, legenda de foto com
cartaz que pede boicote aos
Jogos de Sochi
diz: 'Putin é o verdadeiro monstro'
(Foto: Divulgação/No
Sochi)
Um dos oito especialistas na Guerra Russo-Circassiana no mundo, o americano Walter Richmond possui livros publicados sobre o assunto e leciona sobre a cultura russa em uma universidade nos Estados Unidos. Ele vê fundamento na comparação feita pelo “No Sochi”.
- Claro que nada se compara aos crimes cometidos em Auschwitz, mas um enorme número de circassianos morreu em Sochi, que é considerada por eles uma das principais locações da tragédia. Então é possível dizer, sim, que seria similar a ter Jogos em Auschwitz, no sentido de que o lugar possui um significado trágico e especial para os circassianos da mesma forma que o campo de concentração foi para os judeus.
Antimascote e expectativa por protestos nos Jogos
Mascote oficial (dir) ganha versão sombria e sangrenta na crítica (Foto: Divulgação/No Sochi)
- A ideia do antimascote começou quando o Comitê Organizador de Sochi abriu o concurso para a escolha do mascote oficial. Nós decidimos que um ótimo caminho para envolver e atrair as pessoas para o movimento era lançar um mascote com o que consideramos o legado verdadeiro de Sochi. Os participantes nos enviaram várias sugestões. Foi uma campanha muito bem recebida pelo público – afirmou Dana.
Outros artistas também criticam os Jogos de
Inverno na Rússia (Foto: Divulgação/No Sochi)
O historiador Walter Richmond, no entanto, considera que a comunidade circassiana “não capitalizou suficientemente esta oportunidade” por ainda ser muito segregada. Para o especialista, os holofotes que acompanham as Olimpíadas estarão mais voltados para outros assuntos – como o terrorismo e as leis antigays. Ele acredita que a área especial de protestos anunciada pelo presidente Vladimir Putin não permitirá a presença de manifestantes a favor dos circassianos.
- Provavelmente eles não serão autorizados a
participar. A não ser os que falem sobre o assunto com uma posição leal a Moscou,
e só para aparecer. É um assunto delicado porque envolve a possibilidade de
que, se a Rússia algum dia admitir a responsabilidade, o governo pode ter que
pagar por reparações e/ou permitir a repatriação deste povo.
No Parque Olímpico, 'centro cultural' ignora guerra
No Parque Olímpico, 'centro cultural' ignora guerra
Entre
as seis venues esportivas do Parque Olímpico costeiro, um pavilhão
móvel batizado de "Casa dos Circassianos" funcionará como um centro
cultural da etnia durante as Olimpíadas e Paralimpíadas de Sochi. O
local ainda está em fase de montagem, mas na próxima semana será aberto
ao público com entrada gratuita. Estão programados números de dança e
música, exposições de fotos e até uma mostra culinária. O
GloboEsporte.com não foi autorizado a tirar fotos do interior da tenda,
mas a reportagem observou os diversos painéis de lona com curiosidades e
elementos da tradição circassiana. Em nenhum deles há qualquer
referência histórica à guerra travada na região do Cáucaso.
Pavilhão cultural batizado de 'Casa dos
Circassianos' foi montado no Parque
Olímpico costeiro (Foto: Helena Rebello)
Indiferente à homenagem russa no perímetro olímpico, o movimento "No Sochi" já programou manifestações mundo afora contra os Jogos de Sochi nos dia 2 e 7 de fevereiro, data da Cerimônia de Abertura do evento. Os próximos capítulos desta história prometem ser barulhentos.
FONTE:
http://globoesporte.globo.com/olimpiadas-de-inverno/noticia/2014/02/etnia-russa-acusa-sochi-de-genocidio-cita-auschwitz-e-cria-ate-antimascote.html
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