É no Norte do Brasil, na cidade de Macapá, que nasceu, há 64 anos, praticamente em cima da linha do Equador, um clube de nome peculiar: Trem. Clube que nesta quarta-feira disputará muito mais do que uma inédita vaga na segunda fase da Copa do Brasil, diante do Náutico, em Recife,
depois de ter vencido o jogo de ida por 2 a 1
Carinhosamente chamado de Locomotiva, o time, que se profissionalizou em 1991, mesmo ano em que foi instalado o Estado do Amapá - que já era considerado território federal desde 1943, quando se separou do Pará -, é hoje o mais bem estruturado da região. E, por isso, encara a partida como a grande chance de finalmente aparecer para o resto do país e mostrar que lá perto do Oiapoque também se joga bola.
O nome Trem é simplesmente uma homenagem ao local onde nasceu o clube. Tradicional em Macapá, o bairro do Trem assim foi batizado devido a vestígios de trilhos encontrados logo após a instalação do território federal. E na condução desse Trem, o clube, está o casal Marinho. Socorro é a presidente. Aos 48 anos, ela, que enfrentou muitos preconceitos para chegar onde está, comanda o clube com pulso firme. Apesar de “mandar e bater o martelo”, a analista judiciária do Tribunal de Justiça do Amapá divide as responsabilidades com o marido, o presidente do Conselho Deliberativo, advogado e ex-mandarário da agremiação, Osmar Marinho. Filho de um dos fundadores do Trem, ele se encantou pela atleta Socorro há 26 anos, e hoje a história desses dois “maquinistas” se confunde com a da Locomotiva amapaense.
Casados, Osmar e Socorro Marinho são dirigentes e também torcedores do Trem-AP (Foto: Divulgação)
- É ela quem manda e bate o martelo. É quem dá expediente no clube e vai ao vestiário cobrar os jogadores - garantiu Osmar.
Socorro confirmou as palavras do marido e, a uma semana do Dia Internacional da Mulher, ressaltou a dificuldade que é estar no comando de um clube de futebol no estado do Amapá:
- Vivemos numa sociedade muito machista, a minha briga foi muito grande. Muita gente não queria que eu fosse presidente por eu ser mulher. A imprensa me ajudou muito, e a comunidade também. Hoje as pessoas já me engolem.
Mas Socorro não está sozinha. No dia a dia do Trem, ela conta com o apoio incondicional do marido, e garante que a convivência dos dois é boa, embora, como qualquer casal, eles nem sempre pensem da mesma maneira...
- Às vezes há desavenças entre nós. Por exemplo, se ele acha que temos de contratar fulano e eu não, tenho de convencê-lo para chegarmos a um consenso. Mas a decisão final é minha - afirmou, bem-humorada.
Com a Copa do Brasil como vitrine, Trem tem a Série C como grande objetivo
Perto do jogo da vida na Copa do Brasil, jogadores
treinam no CT do Trem-AP (Foto: Divulgação)
E para levar o Rubro-Negro do Amapá até a Copa do Brasil - o time tem a vantagem do empate com o Náutico -, a família Marinho começou um árduo trabalho em 1998. Depois de ficar totalmente inativo por três anos (95-97), o clube que surgiu para congregar a comunidade do bairro reabriu as portas e foi retomando suas atividades gradativamente. Um grupo de meninos foi formado para disputar o campeonato local sub-14, e, em 2003, os mesmos jogadores chegaram às competições profissionais. Hoje o pentacampeão do Torneio Integração da Amazônia é também bicampeão do Amapaense - 2007 e 2010, apesar de ter outros dois títulos na era pré-profissionalismo - e vai disputar a Série D do Campeonato Brasileiro. Nove desses atletas ainda continuam no clube, e um deles chegou ao Vasco, o atacante Patrick. Comandado por uma mulher, o Trem também possui um time de futebol feminino.
- Nosso objetivo hoje é trabalhar para ir o mais longe possível na Copa do Brasil, que é uma vitrine, uma forma de arrecadar recursos, e passar para a Série C. É a nossa grande meta, e nós vamos alcançá-la - disse Osmar, otimista.
No entanto, os mais de 2,5 mil quilômetros que separam a capital Macapá de grandes cidades como Rio de Janeiro e São Paulo, por exemplo, tornam a tarefa do Trem ainda mais difícil. Segundo o diretor de futebol, Ronaldo Tavares, ainda há um certo preconceito com o futebol do Norte do país.
- Estamos cansados de disputar campeonatos nacionais e passar vergonha. Isso não pode acontecer. O que pesa muito é a discriminação que o pessoal do Sul do país tem com o povo do Amapá. Estamos querendo mostrar para o Brasil que nós existimos. As pessoas têm ideia de que aqui só tem um banco de índios. Na verdade, estamos fazendo uma força-tarefa em prol do futebol do Amapá - contou o dirigente, que trocou o Ypiranga, maior rival, pelo Trem.
O maquinista é o mascote do Trem-AP (Divulgação)
E prova de que o sucesso do Trem é também o de todos os amapaenses é que, segundo Ronaldo, o time recebeu o apoio de cerca de dez mil pessoas no jogo de estreia na Copa do Brasil, semana passada, diante do Náutico, no estádio municipal Glicério Marques. Entre esses torcedores, garante ele, muitos usavam camisas de outras equipes da região.
- Fizemos um apelo com uma frente de trabalho para trazer o torcedor. O bairrismo aqui era grande. Corremos para a mídia local para chamar o torcedor de qualquer clube, alegando que o foco principal era o estado do Amapá. Havia camisas de todos os clubes dentro do estádio. Independentemente de passarmos para a outra fase, conseguimos resgatar o orgulho do torcedor do estado. Conseguimos dar alegria para o povo do Amapá - contou Ronaldo, lembrando que chegou a desmaiar e teve de assistir ao jogo da ambulância, dentro do gramado.
Para representar o Amapá com dignidade, o Trem, que possui uma sede com piscina e ginásio poliesportivo, além de um centro de treinamento, se prepara para ser o único clube dono de um estádio na região. As obras estão a todo vapor, e a inauguração do palco que abrigará 3.500 torcedores está prevista para julho, durante o Campeonato Estadual. Os recursos saíram dos próprios bolsos de Osmar e Socorro Marinho, que também contam com a ajuda do empresário Itamar Sarmento.
- Tudo o que a gente tem eu coloco no Trem, se precisar até a minha casa. Deus me deu além do que eu precisava, então eu invisto. Já peguei até um empréstimo pessoal no valor de R$ 130 mil para colocar no clube - revelou Socorro.
Parque aquático está à disposição para os 4.830 sócios do clube (Foto: Divulgação)
O apoio do governo aos clubes locais existia, mas cessou quando, em setembro do ano passado, 18 pessoas foram presas pela Operação Mãos Limpas da Polícia Federal, entre elas, o governador do Amapá e o prefeito de Macapá. Mas, apesar das dificuldades, a diretoria do Trem se orgulha de manter as contas em dia. A folha salarial de todo o clube gira em torno de R$ 68 mil e até os jogadores têm carteira assinada, férias e 13º salário.
- Isso tudo é ao contrário do que acontece no futebol. Eu, a Socorro e o Itamar seguramos o clube com responsabilidade. Aqui as coisas são tratadas de forma muito séria. Temos um cuidado muito grande - disse Osmar Marinho.
E todo esse cuidado se deve ao fato de a gestão dos Marinho ter conseguido sanar uma grande dívida anterior. Para se ter uma ideia, o clube chegou a ter contra ele 400 processos judiciais. Todos foram resolvidos.
Reprodução da camisa do Trem-AP (Foto:Divulgação) - O clube ficou abandonado e começaram a surgir também processos fantasiosos. Éramos quatro advogados somente para defender o clube. Tivemos que pagar 14. Os outros tiveram decisões favoráveis. Gastamos em torno de R$ 1 milhão, parcelado, e tivemos de trocar alguns bens. Fizemos uma ação muito contundente no sentido de pagar essas dívidas. Ficamos três anos sem disputar competições profissionais, recuperamos patrimônio, investimos na base e conseguimos equilibrar as finanças - ressaltou Osmar, que também é graduado em economia.
Mas tudo isso faz parte do passado. Hoje o Trem, como sua presidente, tem sido bem-sucedido na luta para superar preconceitos e acabar com estereótipos. Avançando ou não para a segunda fase da Copa do Brasil, a Locomotiva já percorreu um importante percurso para colocar de vez o seu nome no mapa do futebol brasileiro.
FONTE:
http://globoesporte.globo.com/futebol/copa-do-brasil/noticia/2011/03/brasil-afora-casal-conduz-o-trem-para-colocar-o-amapa-no-mapa.html