Histórias passam por gerações, e pesquisadores tentam provar que o primeiro jogo de futebol no Brasil ocorreu no bairro carioca
Por Alexandre Alliatti
Rio de Janeiro
Imagem de Thomas Donohoe, visto em Bangu
como criador do futebol brasileiro (Foto:Divulgação)
Carros modernos, daqueles que parecem a um triz de voar, são
esparramados pelo pátio. Pessoas caminham apressadas por ali, em busca
de um lanche rápido, de olho em algum eletro-eletrônico que otimize a
vida, que dê conforto às horas de descanso. As lojas exibem siglas em
suas vitrines: LED, LCD, 3D, 3G. Ninguém apostaria que naquele canto da
zona oeste do Rio de Janeiro, em um shopping center cravado em Bangu, um
sujeito resolveu chutar uma bola de futebol (possivelmente) pela
primeira vez dentro do país que, mais de 100 anos depois, seria
pentacampeão do planeta.
Quase ninguém. Em meio à modernidade do início do século XXI, um grupo
de moradores/pesquisadores/fanáticos de Bangu tenta revirar o final do
século XIX para provar ao mundo aquilo que o bairro conhece desde
sempre: que o futebol brasileiro nasceu ali, graças a um escocês, não em
São Paulo, via Charles Miller, como defende a versão oficial sobre as
origens da bola em terras tupiniquins.
Não é uma tarefa fácil. Faltam documentos concretos, com a didática
capaz de não deixar pingos fora dos is. Mas a turma de Bangu batalha
para reescrever a história. Aos causos que passaram de conversa em
conversa por gerações, eles somam uma pesquisa de anos. E agora querem
cruzar o oceano em busca de provas que ofereçam ao senhor Thomas
Donohoe, um escocês pálido, magro e bigodudo, nascido em 1863 em Busby,
empregado de uma empresa têxtil, o pioneirismo daquilo que virou quase
um sinônimo do Brasil.
Chuteiras usadas por Thomas são expostas em shopping (Foto: Alexandre Alliatti / Globoesporte.com)
Uma questão matemática
A base da versão dos apaixonados por Bangu tem um chão formado mais por
raciocínio lógico do que por documentos. É uma questão matemática. Eles
não conseguem ver sentido em um escocês viciado em futebol, praticante
do esporte em seu país de origem, ter passado meses sem jogar bola em um
lugar onde não havia nada para fazer. A primeira partida de futebol no
Brasil, pelos registros oficiais, é de 15 de abril de 1895, entre
funcionários de empresas de São Paulo: a Companhia de Gás e a São Paulo
Railway, ambas formadas, em grande parte, por britânicos radicados no
país. Mas pode não ter sido bem assim.
Fábrica vira shopping, que hoje ocupa lugar onde
futebol teria iniciado no país (Foto: Alexandre Alliatti)
A questão é que Donohoe estava no Brasil desde maio de 1894. Para que
efetivamente fosse de Charles Miller o pioneirismo, o escocês teria que
ter suportado cerca de um ano sem uma de suas paixões. É aí que entra a
contestação levantada em Bangu. A versão no bairro é de que a Companhia
Progresso Industrial do Brasil, ou Fábrica Bangu, recebeu partidas de
futebol ao longo de 1894 em seu pátio. É ali que hoje funciona o
shopping center citado na abertura desta matéria.
Um dos principais defensores da tese pró-Donohoe é Carlos Molinari,
autor de livros como “Almanaque do Bangu” e “Nós é que somos
banguenses”. Ele cresceu escutando as histórias sobre o escocês,
inclusive sobre ser ele o introdutor do futebol no Brasil. E resolveu
pesquisar o assunto. Concluiu que não faz o menor sentido a versão
oficial sobre os primeiros chutes em esferas de couro no país.
- Muitas publicações, quando eu era criança, diziam que o Thomas
Donohoe importava máquinas da Europa e mandava camuflar bolas nelas.
Quando eu trabalhei no Bangu, o Rubens Lopes (atual presidente da
Federação de Futebol do Estado do Rio de Janeiro) me disse que se eu não
escrevesse que o futebol começou aqui, estaria errado. Eu também não
acreditava. Eu acreditava que era com o Charles Miller. Mas as datas de
chegada do Donohoe são anteriores. Houve tempo hábil para ele jogar
futebol em Bangu. O que os britânicos fariam como lazer? Iriam à igreja?
Mas eles eram protestantes. Teatro? Que teatro? Não tinha nada em Bangu
– comentou Molinari.
Clécio Regis, um dos entusiastas da tese a favor
do escocês (Foto: Alexandre Alliatti)
Conforme se aprofundam os estudos sobre a presença de Donohoe em Bangu,
são lapidadas as versões sobre a relação dele com o futebol.
Inicialmente, os relatos de jogos na fábrica eram sustentados por uma
suposta ida do escocês à Europa, de onde ele teria retornado com bolas e
uniformes. Atualmente, a convicção é de que o material veio ao Brasil
por meio da família dele.
Molinari vem mantendo contato com pesquisadores escoceses. Trocas de
informações entre eles têm ajudado a elucidar o mistério sobre o
primeiro jogo de futebol no Brasil. A caça é por provas, para que a
certeza de Bangu ganhe força como uma hipótese nacional.
O pesquisador não está sozinho. Rogério Melo, autor de mais de uma
dezena de livros sobre futebol, também sustenta que a versão
verde-amarela do esporte nasceu em Bangu. O mesmo vale para o cenógrafo
Clécio Regis, outro apaixonado pela história do clube do bairro – e
outro ardoroso defensor da ideia de que o futebol brasileiro calçou suas
primeiras chuteiras por ali.
Casa onde Thomas Donohoe teria vivido em Bangu
(Foto: Alexandre Alliatti / Globoesporte.com)
- Foi por causa do Thomas Donohoe que a primeira bola entrou no Brasil.
Estamos falando de setembro de 1894, seis meses antes de Charles
Miller. Com aquela ansiedade toda, ele jogou, no campo da fábrica, a
primeira partida de futebol no Brasil. Montou duas balizas sem
travessão, sem goleiro, com cinco de cada lado. Isso aconteceu numa
tarde de domingo, o único momento que os funcionários tinham de folga –
observou Clécio.
Mas os registros são rasos. Há citações em livros, registros em
arquivos da fábrica e, o mais importante, a tradição oral, com a
passagem das histórias de pais para filhos. Porém, não há confirmações
oficiais, como aconteceu com Charles Miller.
Viagem à Escócia
Registro de nascimento de Thomas Donohoe faz
parte da pesquisa (Foto: Divulgação)
Os defensores da tese resolveram viajar à fonte da história. Eles
planejam ir no segundo semestre à Escócia. Lá, Carlos Molinari e Clécio
Regis pretendem encontrar base maior para defender sua versão. Eles vão
procurar descendentes de Donohoe, pessoas que tenham convivido com
familiares dele. E caçar documentos.
O objetivo é encontrar algo que comprove a prática de jogos na fábrica
de Bangu antes de Charles Miller ter agido em São Paulo. Eles passarão
uma semana na Europa – pesquisando e conversando.
- Se encontrássemos, por exemplo, uma carta dele para algum familiar,
seria o ideal, mas sabemos que não é fácil – disse Molinari.
O pesquisador já vem se comunicando com pesquisadores e até bibliotecas
da Escócia. De lá, recebeu documentos e informações sobre como era a
vida de Donohoe até pouco antes da viagem ao Brasil. Mas ainda não tem
as provas que procura.
Homenagens
Molde do rosto do escocês para estátua que será colocada no estádio de Moça Bonita, casa do Bangu
(Foto: Alexandre Alliatti / Globoesporte.com)
Enquanto não convence o resto do Brasil de que o futebol nasceu por
ali, Bangu presta homenagens a Thomas Donohoe. No shopping do bairro,
que mantém parte da estrutura física dos tempos de fábrica, há uma
exposição permanente com espaço reservado ao futebol. Ali estão as
chuteiras usadas pelo escocês há mais de 100 anos e também uma réplica
daquela que seria a primeira bola usada no Brasil.
Thomas Donohoe e a esposa, Adalgisa
(Foto: Divulgação)
Há outras referências no museu do bairro. E as homenagens também
chegarão ao estádio de Moça Bonita. Está em construção uma imagem do
escocês, feita na oficina de Clécio Regis. Sempre que os torcedores
forem a jogos do Bangu, passarão pela estátua, como que a lembrar que
foi ali que tudo começou: se não para o Brasil, pelo menos para o
bairro.
Afinal, Donohoe foi um dos fundadores do Bangu, em 1904 – apesar de seu
nome não estar na ata de inauguração. A ideia de formar um clube, anos
antes, foi vetada pelo presidente da fábrica. A troca na diretoria deu
maior liberalidade à prática do esporte e permitiu que a agremiação
nascesse. O futebol ganhava aquele que viraria um dos clubes mais
tradicionais do Rio de Janeiro.
Thomas Donohoe, já um quarentão, jogou muito pouco pelo Bangu. Mas
deixou um herdeiro, representado em seu filho, Patrick. Ele foi o maior
ídolo do clube nos anos 1910. Foi um goleador, inclusive em clássicos –
caso dos dois gols marcados na vitória de 4 a 2 sobre o Flamengo em
1918, depois de sofrer goleada de 9 a 1 no primeiro turno.
O Donohoe pai morreu em 2 de abril de 1925, sem jamais retornar à
Europa. Deixou como legado um clube que seria vice-campeão brasileiro de
1985 e bicampeão carioca, além de uma torcida que dá sentido ao
conceito literal de bairrismo.
E, quem sabe, deixou a semente de tudo que aconteceria no futebol brasileiro – mesmo sem ter ideia do gigantismo disso.
- Ele não queria saber de pioneirismo. O que ele queria era jogar futebol – resumiu Clécio Regis.
FONTE:
http://globoesporte.globo.com/futebol/noticia/2012/04/charles-miller-em-bangu-futebol-brasileiro-e-cria-de-escoces.html