Construção da TransCarioca, obra de
mobilidade urbana para 2016, reduz a escombros casa de atleta da seleção
sub-19 a três anos dos Jogos do Rio
Por Helena Rebello
Rio de Janeiro e Saquarema, RJ
Um movimento único compõe a obra mais famosa de Maurice Ravel. O canto
crescente e repetitivo, com solos alternados de diferentes instrumentos,
tornou o Bolero conhecido mundialmente e fez sua melodia atravessar
gerações. Bem longe do cenário em que viveu o compositor e pianista
francês, um xará carioca, de apenas 17 anos, trabalha para que a
repetição de seus movimentos com a bola de vôlei também o levem cada vez
mais perto do sucesso. Os compassos da vida do jovem atleta, no
entanto, ainda estão repletos de suspensões e paradoxos. No maior e mais
recente deles, o bloqueador viu as Olimpíadas passarem de sonho de
consumo em um futuro próximo a causa indireta de um drama familiar.
Ravel Gonçalves de Mendonça treina desde janeiro com a seleção sub-19
de praia no Centro de Desenvolvimento do Voleibol, em Saquarema, Região
dos Lagos do Rio de Janeiro. Foi depois de um treino matinal em uma das
quatro quadras de areia do CT que uma ligação do pai o transportou de
volta para a dura realidade de sua família. Pelo telefone, Rosinaldo se
antecipou para tentar minimizar o susto e contou que a casa em que
moravam estava reduzida a escombros.
Ravel posa com a família na vizinhança onde a família morou até março (Foto: Carlos Ivan/Agência O Globo)
O desejo de ter a casa própria, realizado cinco anos antes com a
aquisição de um lote por R$ 15 mil, desmoronou com a notícia de que a
compra era irregular. O terreno, assim como o de outras 65 famílias do
bairro do Tanque, pertencia à Prefeitura. E, no local, o governo
planejava construir um dos trechos da TransCarioca, via que ligará o
Aeroporto Internacional Tom Jobim à Barra da Tijuca para facilitar a
mobilidade urbana na Copa e nos Jogos de 2016. Mesmo com a
desapropriação e demolição iminentes, seu Rosinaldo resistiu no imóvel
de 60m² por quase um mês, até meados de março. Assim negociou uma
indenização melhor (a proposta inicial de R$ 18 mil saltou para R$ 40
mil) para comprar uma nova propriedade no mesmo bairro, o que permitiria
a continuidade do tratamento do filho mais velho, autista.
Com o irmão Juan e o pai Rosinaldo, ao lado dos
escombros (Foto: Carlos Ivan/Agência O Globo)
O aviso do pai, mesmo duro de aceitar, de fato minimizou o impacto.
Imagine que, no mesmo dia, na hora do almoço, o rapaz viu uma foto da
mãe, ao lado do irmão mais velho, chorando, estampada no jornal. O
bombardeio de informações que soavam tão irreais o deixou zonzo. Seria
possível que as Olimpíadas, sonho de consumo de atletas de ponta ao
redor do mundo inteiro, fossem justamente a causa de seu drama
particular? Ver meta e vilão no mesmo sujeito fez com que o bloqueador
de 2,01m questionasse seu futuro no esporte.
- Eu ouvia os boatos que talvez fôssemos sair do Tanque, mas nada
concreto até a demolição. Fiquei bem confuso. Vim para a seleção com um
pensamento de que abriria portas para eu chegar nas Olimpíadas, mas aí
de repente me vi pensando que o lugar em que eu queria chegar é, ao
mesmo tempo, algo que me atrapalha a ter sucesso e chegar neste ponto.
Meu rendimento caiu muito e pensei em desistir, mas meus pais me
disseram para usar isso para ganhar forças e virar a situação. O técnico
aqui também me tirou de uns treinos para me preservar, porque via que
eu não conseguia me concentrar, que estava sofrendo. Mas o psicólogo me
ajudou muito a manter o foco, e agora estou conseguindo ter uma boa
regularidade nos treinos.
Com a cabeça no lugar, Ravel pôde finalmente se concentrar na
preparação para o Mundial Sub-19 de vôlei de praia, de 11 a 14 de julho,
em Larnaca, no Chipre. Se o jogador se mantiver na lista de convocados
da Confederação Brasileira (CBV), disputará a primeira competição
internacional da carreira. Será o primeiro prêmio pela rotina de
sacrifícios em prol do sonho de viver do esporte.
Pelo vôlei, cerca de apenas 4h de sono
Carioca no ataque: um dos treinos da seleção sub
19 no CT de Saquarema (Foto: Helena Rebello)
Desde que começou a jogar vôlei, há cerca de dois anos e meio, em uma
quadra improvisada em sua vizinhança, o rapaz enfrentou uma dura rotina
para crescer no na modalidade. Selecionado por um olheiro em um evento
em Bento Ribeiro, foi jogar no Vasco. Com o fim do time masculino
cruzmaltino, passou a atuar pelo Botafogo em duas categorias diferentes.
Devido à habilidade, conseguiu uma bolsa de estudos em um colégio
particular na Lagoa. Mas o casamento entre estudos e treinos foi
atrapalhado pela falta de tempo – perdido no trânsito e que fez falta em
horas de sono.
Após a jornada dupla de treinamentos no Botafogo, o jovem carioca
chegava em casa quase meia noite e, no dia seguinte, precisava acordar
às 4h da manhã para ir à escola. Exausto, passou a dormir nas aulas e
não conseguiu acompanhar o ritmo da turma. Quando trocou a quadra pela
areia, no meio do ano passado, pôde descansar um pouco mais. Mas as
quatro horas diárias para ir e voltar da Praia do Leblon ainda pesaram
e, sem conseguir render com os livros, terminou 2012 reprovado no 2º ano
do Ensino Médio.
Matriculado agora em uma escola perto da nova casa, Ravel só vai cursar
as aulas no segundo semestre, quando estiver liberado dos compromissos
com a seleção. Pintor de paredes, o pai se emociona ao falar sobre a
luta de diária para manter vivo o sonho do filho, e acredita que o
investimento na carreira valerá a pena.
- Essa história toda da perda da casa atrapalhou bastante. Ele chegou a
desabafar com a gente que não sabia se continuava, de tão tenso que
estava. É muito ruim ver seu filho muito feliz de dar um passo
importante e logo depois ver essa felicidade desaparecer, ver seu filho
mal por uma situação que você não pode controlar. Continua sendo
difícil, mas em vez de chorar ele vai fazer cada vez melhor. Com a ajuda
de Deus o Ravel vai ter sucesso para poder nos ajudar no futuro.
Em Saquarema, seleção tenta blindar Ravel dos problemas familiares no Rio (Foto: Helena Rebello)
A TransCarioca como legado olímpico
Batizado de TransCarioca, o corredor expresso ligará a Barra da Tijuca e
o Aeroporto Internacional Tom Jobim. Com um total de 39 quilômetros de
pista, cortará 14 bairros e será interligado aos sistemas de trem, metrô
e o BRT da TransOeste, já em funcionamento. Segundo a prefeitura do Rio
de Janeiro, a obra é considerada um dos principais legados de Copa e
Olimpíadas no quesito mobilidade urbana e deverá reduzir em até 60% o
tempo gasto atualmente no trajeto. Inicialmente, a construção da via foi
orçada em R$ 1,3 bilhão.
A previsão é que o corredor seja concluído até o final deste ano, e que
a operação comece nos primeiros meses de 2014. Enquanto isso, os
cariocas convivem com engarrafamentos gerados pela interdição de pistas
em algumas das principais vias da Zona Oeste, além do rompimento de
tubulações de gás e água. E famílias como a de Ravel enfrentam a desapropriação de seus imóveis.
A TransCarioca, apontada como um dos principais legados de mobilidade urbana (Foto: Reprodução)
FONTE:
http://globoesporte.globo.com/volei/noticia/2013/04/promessa-do-volei-de-praia-ravel-ve-sonho-olimpico-virar-drama-familiar.html