Quando teve seu nome oficializado no Hall da Fama Internacional do tênis,
Gustavo Kuerten
usou a cerimônia para fazer homenagens e agradecimentos. Citou seus
pais, o técnico Larri Passos, os ídolos Maria Esther Bueno e Thomaz Koch
e até craques estrangeiros como Andre Agassi. Uma semana depois, o
ex-número 1 do mundo, enfim, deixou a modéstia um pouco de lado.
Lembrou-se de conquistas, enumerou as qualidades que o levaram tão longe
no tênis e disse que um de seus maiores méritos foi não precisar mudar
sua personalidade, não se distanciar das pessoas dentro de quadra. Guga
contou até como um fã flamenguista o ajudou a vencer partidas
importantes.
Guga entrará para o Hall da Fama no dia 14 de julho, nos EUA (Foto: Anderson Rodrigues)
Aos 35 anos, o tricampeão de Roland Garros sempre diz que "parou, mas
não parou". Envolvido com seu projeto social, o Instituto Guga Kuerten
(IGK), e ajudando a Confederação Brasileira de Tênis (CBT), o
catarinense falou também sobre sua agenda cheia. Mencionou a expectativa
de fazer um amistoso com Roger Federer no fim do ano e disse que vai
tentar trazer o ATP Finals para o Brasil. Sobre o tênis nacional,
ressaltou a ajuda de Thomaz Bellucci para manter o esporte em evidência e
comemorou o investimento nos atletas juvenis, mas não deixou passar:
"Não existe formação de jogador com regalia."
No fim da conversa, Guga ainda abriu o coração e falou um pouco sobre
seus primeiros dias como pai - sua filha, Maria Augusta, nasceu no dia
10 de fevereiro. Prometeu não ser um pai intrometido, mas admitiu que
gostaria de ver a filha com uma raquete nas mãos. Confira abaixo o
bate-papo com o futuro integrante do Hall da Fama.
GLOBOESPORTE.COM: Vamos começar falando um pouco sobre Hall da
Fama? De tudo que você fez em quadra, o que você acha que vai ficar mais
marcado para as pessoas? Não vale dizer o conjunto da obra!Gustavo Kuerten:
Como ato específico, para escolher um, é dureza! O coração, para ir bem
ao detalhe. Aquele coração de Roland Garros (Guga desenhou um coração
na quadra depois de salvar match point e derrotar o americano Michael
Russell, em 2001), a primeira conquista, ainda com a roupa amarela, em
1997, e a vitória de Lisboa (Masters Cup de 2001) foram as três marcas
registradas minhas, que as pessoas lembram incessantemente. Como fonte
de inspiração, acho que a minha grande contribuição foi trazer o tênis
para essa esfera popular. Os tenistas eram quase intocáveis. E, junto
com isso, a minha felicidade. No grau de competição que tem o tênis,
naquele ritmo de um querendo atropelar o outro todos os dias, conseguir
manter a felicidade dentro da quadra, a descontração, esse meu sorriso,
acho que até hoje é do que as pessoas sentem falta.
É como um amigo meu diz. Sou cagão mesmo. As coisas acontecem para mim, parece que eu nasci virado para a lua."
Gustavo Kuerten
Mudando o ponto de vista, o que gostaria que ficasse mais marcado?
Essa síntese de ter uma identidade própria no tênis. A brasilidade, o
meu jeito emocional dentro da quadra, a alegria, criando um elo com o
tênis. Consegui trazer um Guga pessoa, a minha forma de viver, para o
personagem da quadra, o competidor. Não precisava me transformar para
entrar em quadra. Eu vivia muito o que eu era e competia próximo da
minha essência. Isso foi o mais brilhante que eu pude saborear.
Tanto na cerimônia do Hall da Fama quanto agora você enfatizou
essa questão de trazer o público para perto do ídolo. Isso foi algo que
percebeu durante a carreira?
Foi uma consequência natural. A maioria das coisas na minha carreira
foi resultado da minha adaptação, mas eu não tive que mudar
drasticamente. Eu consegui entender e diagnosticar o circuito no fim de
1997, começo de 1998. Eu tirei as medidas do circuito para ver como eu
me encaixaria ali dentro, e não ter que mudar alguma coisa para ir de
encontro àquele turbilhão.
E como foi esse processo?
Eu fui aprendendo a lidar com a situação de ídolo, a me relacionar com
as pessoas, a curtir e saborear isso. Existe um peso no tênis que é
quase imensurável. Os maiores tenistas são quase endeusados. Hoje eu
consigo enxergar mais isso, né? Na época, tudo foi acontecendo de forma
natural. Nem por isso a gente precisa se distanciar. Até mesmo na
atualidade, Nadal, Federer e Djoko são muito mais próximos do que eram
Lendl, Becker, McEnroe... Pode ser até uma causa natural dos novos
tempos. As informações estão mais à tona. Até então, Sampras, Agassi,
Courier, McEnroe... pareciam super-heróis de quadrinhos.
O Thomaz (Bellucci) ajuda nesse processo de trazer público para o tênis?
Eu acho que ele está ajudando bastante o tênis brasileiro. Há uns três,
quatro anos, ele é 80% das nossas chamadas, do que acontece no tênis.
Está carregando essa bandeira. O perfil dele não é igual ao meu. É um
cara mais introvertido, mais fechado dentro da quadra. Dentro dessa
característica específica, ele não traz o público muito para próximo.
Ele fica mais isolado ali, mas é esse ponto que é a fase de detalhamento
que está vivendo. De que forma vai atuar melhor? Não é nem indicado
para um tenista entrar em quadra e pensar "preciso ser mais legalzinho
ali para a torcida me achar bacana". Cada um tem uma forma de lidar com
isso. Mas eu vejo que nesses três últimos anos ele vem carregando essa
bandeira do tênis de uma forma importante e contribuindo para que a bola
continue girando.
Guga espera fazer uma exibição com Roger
Federer em dezembro (Foto: Anderson Rodrigues)
Como vê a cobrança em cima dele?
Eu acho que é natural. É uma relação do espectador para o jogador. Cada
um tem suas expectativas. É natural a gente ter um grande ídolo, um
cara que foi número 1, com quem as pessoas têm uma relação e até uma
saudade. Essa comparação vai ser onipresente. As análises são normais
para cada nível que o jogador vai adquirindo. Tem uma hora que a gente
chega a número 1 e continua tendo uma certa expectativa. Eu vejo que ele
encara numa boa. Está num processo normal de amadurecimento. O que vai
se definir é quando vai estar pronto para enfrentar esse novo estágio.
De qualquer forma, é um cara que já tem sua carreira consolidada no
tênis, vai ficar aí por mais cinco, dez anos, talvez já se aproximando
dos cinco melhores brasileiros da história. Essas cobranças todas têm
que ser um universo à parte. O dia a dia dele é trabalhar, evoluir
nesses quesitos que ainda precisa amadurecer. Ele tem a virtude de
crescer contra jogadores bons, o que é legal porque nesses torneios
grandes ele pode vir a surpreender de uma hora para outra. O Thomaz hoje
tem que buscar mais regularidade. E se acontecer a virada, o clique
para começar a vencer esses jogos de última escala, é top 10.
Como é ser classificado como humanitário pelo presidente do Hall da Fama?
Vai ao encontro do que a gente está conversando aqui. Quando eu estava
jogando a final de Roland Garros, eu podia estar pensando exclusivamente
no meu momento, mas eu precisava também de apoio em pessoas,
principalmente para encontrar essa minha forma. Foi essa maneira de
levar mais gente comigo para a quadra. Quando eu estava jogando, parecia
que estávamos eu, Larri, minha família, as pessoas ao redor torcendo, o
Brasil todo em volta. E sempre de uma forma positiva. Nunca se tornou
algo "eu estou jogando para eles", mas nos meus melhores momentos era
muito perceptível que quando eu estava atuando eu estava compartilhando
aquelas sensações com todos. Eu conseguia apartar essa obrigação de
ídolo, de carregar fardo. Para mim, era um incentivo, um apoio.
Consegue lembrar de casos específicos?
Tinha um cidadão de Miami, um flamenguista, que sempre aparecia nos
campeonatos. No ano que eu fui para a final com o Sampras, teve uns dois
jogos no caminho que ele fez eu virar. Em Hamburgo, aconteceu a mesma
coisa. Estavam três ou quatro brasileiros lá. Às vezes, eram pessoas de
outros países que levavam bandeiras do Brasil. Isso era quase que uma
necessidade. Eu tinha de conseguir me isolar, mas ao mesmo tempo, nos
momentos de superação, precisava buscar essa energia com mais pessoas.
Eu passei diversas coisas que (os juvenis de hoje) não precisam mais
passar. Tem que encontrar esse meio-termo. Não existe formação de
jogador com regalia, com tudo de bom e do melhor, mas não pode ser como
acontecia antes. A gente desperdiçava uns caras porque eles não tinham
condições para viajar."
Gustavo Kuerten
Você sempre diz algo do tipo "parei, mas não parei". Está
tentando trazer o ATP Finals para o Brasil, ajudando nos projetos da
CBT, tem a expectativa de amistoso com o Federer, tem o IGK, e a Maria
Augusta nasceu no mês passado...
Minha fase agora, pós-circuito, tem sido bem mais ativa do que eu
esperava. Talvez até pela idade e por não ficar em competição, fica toda
essa adrenalina acumulada. Hoje, os pontos em que eu tenho interesse
estão bem definidos. Esse do Tour Finals me atrai demais porque eu acho
que encaixa com essa realidade do Brasil. E eu penso: "Em que projetos
bons eu posso estar envolvido?". Aí começo a fazer análise do timing,
que é adequado. O Brasil está num momento econômico favorável para
trazer, e tem minha aproximação com a ATP e o desejo de poder trazer
essa oportunidade para semear o tênis aqui no Brasil. Esse é o
principal, o grande desafio. Meu papel é conversar com as pessoas da
ATP, ver as reais possibilidades, dizer do interesse que a gente tem, de
alguns contatos fortes que a gente tem aqui.
E como é o seu papel nesse novo projeto da CBT, tentando implantar centros de treinamento em várias regiões do país?
Eu procuro subsidiar com o melhor tipo de informação possível. A
Confederação vem avançando bem, cara. Eles saem colhendo essas
informações, e o grande segredo é conseguir encontrar as pessoas mais
adequadas para iniciar os polos em diferentes regiões. Para hoje estar
iniciando, foram pelo menos dois ou três anos de garimpagem. Para
iniciar um projeto no Nordeste, por exemplo, quem é o professor
responsável? O cara tem que ter uma afinidade com a entidade, levar a
sério, seguir os critérios do projeto. A coisa é macro. Começar para
parar não vale a pena. Eles (CBT) estão, além de correndo para o lugar
certo, com o favorecimento desse boom econômico, esse momento único que o
Brasil vive. Pode ser que de tudo isso que está se produzindo agora,
fique 30%, 40%, mas, se fizer a coisa muito bem-feita, ficam as melhores
células e vai ser mais do que suficiente. Com esse projeto, não se
perde mais um talento no norte.
Essa nova geração, com Thiago Monteiro, Tiago Fernandes, Bruno
Sant'Anna, Bia Maia e outros, tem uma ajuda que Júlio Silva, Marcos
Daniel, Rogerinho e Bruno Soares, por exemplo, não tiveram. Os jovens de
hoje têm essa responsabilidade a mais, não?
Eu vejo assim: este momento que eles vivem nunca existiu no Brasil. Uma
equipe montada pela CBT com subsídios e tudo que estão entregando aos
jogadores é algo que está começando agora. Eu acho que a obrigação, para
esses atletas, é prejudicial. O cara não tem que ter obrigação. Ele tem
que ter o desejo. Só que engloba a responsabilidade. A partir daí entra
o discernimento do jogador, que futuramente vai demonstrar ser mais
capaz. Nessa turma, está sendo legar trabalhar porque a mentalidade
deles já é de caras que foram criados sem nenhum vício. Pode ter certeza
que na faixa de 15-16 até 18-20 vários ficam pelo caminho. É inevitável
que um ou outro tropece ali, se sinta mais incomodado, de repente não
tenha interesse tão a fundo. Antes era pior. Antes era imersão ao nada.
Mergulhava lá, e a perspectiva era zero. Hoje, há um caminho, um
parâmetro, e essa linha tem que se tornar positiva.
Não fica fácil demais para alguns?
Um cara que está hoje numa equipe que a gente monta tem todas as
condições ideais. Não fica lacuna. E isso às vezes se torna prejudicial,
por incrível que pareça. Os EUA vivem um problema dessa forma. Fica tão
fácil que o cara não luta. Essa é uma fagulha que a gente tem que
deixar acesa nos atletas. O cara tem que dar sangue todo jogo, toda
hora. Eu passei diversas coisas que esses caras não precisam mais
passar. Tem que encontrar esse meio-termo. Não existe formação de
jogador com regalia, com tudo de bom e do melhor, mas não pode ser como
acontecia antes. A gente desperdiçava uns caras porque eles não tinham
condições para viajar. Estamos chegando a um equilíbrio. Talvez o
amadurecimento desse projeto vá aparecer em torno de cinco anos.
Após cirurgias no quadril, Guga se diverte ao falar de suas condições físicas (Anderson Rodrigues)
E esse amistoso com o Federer, em dezembro, sai ou não sai?
Vou fazer uma avaliação dos 35 mil quilômetros (rindo) aqui para ver se
vou chegar a dezembro. Contra o Del Potro (Guga fez uma exibição com o
top 10 argentino em dezembro do ano passado), eu achei que era o limite,
agora tem essa ideia do Federer. Para mim, seria um espetáculo. Este
ano já começou de forma fantástica, tanto na minha vida pessoal quanto
na profissional, com essa notícia do Hall da Fama. Sacramentaria um ano
inesquecível. Teoricamente, em Miami (na próxima semana), ele ia assinar
alguma coisa para jogar aqui no Brasil. Se vier aqui e eu tiver
condições de desafiá-lo e passar nesse teste dos 35 mil quilômetros aí,
eu deixo até ele escolher a superfície. Nem me importo (rindo ainda
mais).
Como foram seus primeiros dias como pai?
É uma experiência inesquecível. Não dá nem para imaginar a sensação que
transmite, mas é como um amigo meu diz.... Sou cagão mesmo. As coisas
acontecem para mim, parece que eu nasci virado para a lua. Até essa
experiência de ser pai, estar em casa, curtir este momento, cada
sorriso... Parece que o mundo todo se distancia e você vive aquela
relação por completo. Uma coisa que complementa todas as necessidades. É
muito essencial do ser humano. Estou curtindo bastante. É gostoso desde
as experiências como trocar fralda e dar de mamar, acordar no meio da
noite. Mas todo o prejuízo ali traz um lucro sempre em conjunto. É muito
bacana, e, graças a Deus, minha esposa está bem, a minha filha também
está superbem, acho que isso é o fundamental. Até naturalmente já
transmite essa vontade de poder continuar ativo, de poder semear ainda
coisas boas. Uma nova geração te impulsiona a poder deixar um legado
ainda mais imponente.
Gostaria de ver a Maria Augusta ou outro filho, mais para a frente, talvez, jogando tênis? Talvez na sua própria escolinha?
Sem dúvida, cara. Até mesmo porque senão eu não seria um grande
promotor do tênis. Independentemente de se ela escolher o tênis ou
qualquer outro esporte, vou incentivar
integralmente. Espero não ser um pai intromedito (risos). Vou tentar me
controlar sempre, mas o aprendizado com o esporte, a sensação de vê-la
numa quadra de tênis... nem sonho que seja nada competitivo ou
profissional, mas vê-la jogando tênis já vai me trazer uma alegria
sensacional.
FONTE:
http://globoesporte.globo.com/tenis/noticia/2012/03/guga-conta-como-publico-o-ajudou-vencer-e-sonha-ver-filha-tenista.html