Final do Mundial de Clubes de 1969, entre Estudiantes e Milan, rotulou futebol do continente como violento em duelo que teve argentino caçado e brasileiro artilheiro
"A
noite de fogo": manchete da revista Domenica del Corriere de 04/11/1969
com Combin ensanguentado (Foto: Arquivo Histórico do Corriere della
Sera, da Fundação Corriere della Sera / Maglia Rossonera.it)
Cenas de violência se tornaram comuns em torneios como a Libertadores e a Copa Sul-Americana e fizeram a Conmebol criar um código e um tribunal de disciplina para começar a punir episódios como a confusão dos argentinos do Arsenal de Sarandí e policiais militares em Belo Horizonte, no ano passado; a pancadaria entre jogadores e comissão técnica de Grêmio e Huachipato na cidade chilena de Talcahuano, também em 2013; a intimidação do atual campeão San Lorenzo, ao partir para cima do árbitro enfrentando até a força policial por causa da marcação de um pênalti nesta temporada; entre tantos outros.
A fama negativa acompanha o esporte no continente desde o fim da década de 60 por causa do Mundial de Clubes. O primeiro formato do torneio, que colocava frente a frente o campeão europeu e o sul-americano em jogos de ida e volta entre 1960 e 1979, espalhou o medo em outros países após a disputa de violentos confrontos, especialmente na Argentina. E o mais assustador deles aconteceu em 1969, quando o Milan, da Itália, ergueu o primeiro de seus quatro títulos mundiais em meio a agressões e prisões de jogadores.
No dia 22 de outubro daquele ano, a Bombonera foi palco do duelo entre Estudiantes e Milan. Era o jogo de volta da decisão, que começou com um 3 a 0 para os italianos no estádio San Siro. A tarefa de inverter o elástico placar adverso parecia impossível, mas não desanimou os argentinos de lotarem o estádio com 45 mil pessoas. E o clima pesado de um país que vivia uma ditadura militar entrou em campo. Ao sair do túnel para o gramado, os jogadores do clube italiano, já preocupados com possíveis hostilidades, carregaram uma bandeira da Argentina. De nada adiantou a cordialidade. Foram alvos de moedas e café quente jogados da arquibancada. Depois, durante o aquecimento, serviram de mira para os atletas hermanos chutarem bolas em sua direção. Mas a estratégia para amedrontar os adversários não parou por aí e levou a graves consequências.
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Contra um jogo duro e a vantagem dos italianos, a garra argentina rompeu limites e virou violência no segundo tempo, quando o placar final de 2 a 1 para os donos da casa - insuficiente para conquistar o título - já estava construído. E o principal alvo em campo foi Nestor Combin. Um argentino de nascença que fez sua carreira na Europa, naturalizou-se francês e foi acusado de ser um desertor na Argentina por deixar seu país antes de cumprir o serviço militar, exercido na época aos 20 anos de idade. O atacante foi agredido duas vezes: levou um chute no rosto do goleiro Alberto Poletti e uma cotovelada do zagueiro Aguirre Suárez, que quebrou seu nariz e o deixou inconsciente, banhado em sangue e fora de combate.
Outros jogadores milanistas também foram vítimas das agressões, como o atacante Pierino Prati (sofreu uma concussão cerebral) e os meias Gianni Rivera e Giovanni Lodetti, alvos de socos e pontapés pelas costas. Os defensores argentinos Aguirre Suárez e Eduardo Manera foram expulsos.
Combin (esq.) e Prati (dir.): vítimas de
agressões em campo (Foto: concessão
da Revista "El Gráfico" 28/10/1969)
Naquele time do Milan também estava um brasileiro descendente de italianos: Angelo Sormani, ex-ponta-direita do Santos de Pelé, Pepe e Coutinho. Desde 1961 na Itália, ele conta que os argentinos deram declarações na época com promessas de jogo duro e que tentaram fazer intimidações no estádio San Siro, com gritos de guerra e provocações no túnel de acesso ao gramado. O pior ainda estava por vir, e até hoje a batalha da Bombonera não sai da memória.
- Foi um jogo duro, mas aqui eles não podiam fazer mais do que isso. Na volta não teve nem jogo, foi um massacre. Começaram a dar chute de todo jeito, queriam ganhar por força, batendo em todo mundo. Até deu medo. Sorte que fizemos um gol rápido, complicou muito para eles. O juiz também teve medo, consentiu. Não tinha televisão como hoje, a bola estava de um lado do campo, e eles davam chute na gente do outro. Tomei uma cotovelada no nariz, mas deu para continuar o jogo. Eu aceitei tudo porque estava ganhando (o título), senão ia dar qualquer murro também (risos). Estávamos preocupados porque sempre soubemos que era muito difícil jogar lá por causa da famosa garra argentina. Mas transformaram a garra em ameaça - contou o ítalo-brasileiro, que atualmente vive em Roma, na Itália, aos 73 anos.
Ao apito final do árbitro chileno Massaro, os jogadores do Milan sequer conseguiram comemorar o inédito título mundial. Alguns dos argentinos do Estudiantes procuraram ainda mais confusão, policiais tiveram que entrar em campo, e os milanistas precisaram se abrigar no vestiário da Bombonera, segundo Sormani.
- A reação foi de muita preocupação. Acabou o jogo, fomos todos para dentro do vestiário. Não teve premiação solene, entortaram até a copa (troféu). Parecia que bateram com ela no chão antes de entregarem para a gente. Na Itália mandamos arrumar, foi um título muito importante para o Milan - relatou o ítalo-brasileiro, ainda com um português fluente, mas trocando algumas palavras com o italiano.
A violência desagradou até a didatura, que usava as glórias do futebol para encobrir a situação política dos governos militares na Argentina. Poletti, Manera e Aguirre Suárez foram detidos e passaram um mês na prisão. Além disso, os três receberam severas punições da Associação de Futebol Argentino (AFA): Aguirre Suárez foi suspenso por 30 jogos e por cinco anos de torneios internacionais; Manera também pegou uma pena parecida, 20 partidas de gancho e três anos sem competir fora do país. Já Poletti recebeu o castigo mais severo ao ser banido do futebol - punição que foi perdoada sete meses depois, após a queda da ditadura.
Preocupação e boicote: o Mundial pós-69
Mas a batalha de 1969 não foi ocultada. As manchetes dos jornais dos dois países não a deixaram cair no esquecimento. "Noventa minutos de uma caçada humana", públicou o italiano "Gazzetta dello Sport". "A página mais negra do futebol argentino", estampou a revista argentina "El Gráfico" em 28 de outubro de 1969.
- Os meios de comunicação de alcance nacional, como "Clarín", "La Nación", "Crónica", "La Prensa", o jornal "La Razón" e a revista "El Gráfico" evidenciaram o lado negro daquele Estudiantes, do grau de deslealdade com que jogou. Deve-se ter em conta que o time era tão elogiado como criticado por seu modo de atuar, rotulado como um antifutebol - contou Carlos Rodriguez Duval, jornalista do diário "Olé", da Argentina.
A opinião foi compartilhada por outros países e deixou uma reputação negativa tanto para a América do Sul quanto para o Mundial de Clubes. A maioria dos campeões europeus, desde então, passou a boicotar o torneio nos anos 70. O Ajax (Holanda), em 1971 e 73, o Bayern de Munique (Alemanha), em 1974, o Liverpool (Inglaterra), em 1977, e o Nottingham Forest (Inglaterra), em 1979, recusaram-se a participar da disputa no continente sul-americano, e os representantes nesses anos foram os vice-campeões da Europa. Em 1976, o Bayern de Munique fez uma pesquisa para saber se era seguro enfrentar o Cruzeiro no Brasil antes de aceitar disputar a final. E em 1975 e 78, a competição sequer foi realizada. Era a senha para que o campeonato encontrasse outra fórmula, e a alternativa foi para ser realizado em jogo único em país neutro. Isso aconteceu em 1980, quando o torneio recebeu o patrocínio de uma montadora de automóveis asiática e foi levado para o Japão.
- Foi uma partida que marcou, os clubes europeus não queriam mais jogar lá (na América do Sul), a Europa não tinha mais interesse. Não precisava a gente recomendar isso, todo mundo viu. Toda a imprensa falou do assunto, até os jornais argentinos. Foi uma página muito feia para o futebol argentino. Espero que tenham melhorado - lamentou Sormani.
Combin, o desertor na prisão
- Tive medo de ficar na Argentina para prestar serviço militar - confessou para a revista italiana "Domenica del Corriere" do dia 4 de novembro de 1969.
Combin voltou à Itália com rosto
desfigurado (Foto: Montagem sobre
foto da AFP / Reprodução Domenica
del Corriere)
- No dia seguinte, pela manhã, ficamos sabendo que liberaram o Combin, e estávamos todos já dentro do avião esperando por ele. Ele apareceu de última hora, chegou em caminhonete da polícia. Quando entrou no avião, todos comemoraram, e houve uma cena interessante: ainda na porta, ele se virou para fora e cantou o hino francês. Acho que foi a última vez que esteve na Argentina (risos) - revelou Sormani.
Carlos Rodriguez Duval, do diário "Olé", da Argentina, viu de perto a decisão do Mundial de 1969 e as agressões a Combin. Para o jornalista, a violência não foi fruto de patriotismo, apesar de o atacante do Milan ter se naturalizado e defendido a seleção da França, inclusive na Copa do Mundo de 1966. Segundo Duval, o ex-jogador não foi tratado como um traidor pelas pessoas em seu país natal.
- O que aconteceu a Nestor Combin foi fruto de curiosidade. Curiosidade sobre um jogador com irrelevante passado futebolístico em seu país de origem. Mas um aventureiro que provavelmente se foi para evitar o serviço militar e depois prosseguiu no futebol de lá, na França e na Itália. Com certeza um desertor para o militarismo. Mas, para as pessoas, os torcedores, foi um rival importante do futebol, com um pouquinho mais de bronca (reitero, para a torcida do Estudiantes) por ser natural da Argentina. Essa violência contra ele, não creio que necessariamente seja fruto de patriotismo, e sim um exagero do já natural jogo duro que caracterizava aquele Estudiantes. Em todo caso, podem tê-lo visto como um malandro. Da arquibancada, se podiam ouvir ofensas a ele, mas lamentavelmente isso é rotina contra qualquer rival - explicou.
Após o título mundial, Combin ficou no Milan até 1971, depois passou pelo Metz e Red Star, antes de encerrar a carreira no Hyères, todos da França, em 1977. Aos 72 anos, o ex-jogador ainda vive no país nos dias de hoje.
Sormani e o lamento do artilheiro do Mundial
Sormani com a taça da Liga dos Campeões de 1968-1969 (Foto: Divulgação / Site Oficial do Milan)
- O Milan já tinha perdido para o Santos em 1963, então chegamos com muita força e não deixamos perder a ocasião. A gente era tecnicamente superior, tínhamos um timaço. Foi o jogo mais importante da minha vida, mas todo mundo só fala até hoje da briga - queixou-se.
FONTE:
http://globoesporte.globo.com/futebol/mundial-de-clubes/noticia/2014/08/historias-incriveis-partida-com-sangue-de-desertor-difamou-america-do-sul.html
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