Os últimos dez anos passaram com a mesma velocidade de sua fala. Bernardinho ganhou duas filhas, viu o primogênito se tornar o levantador número 1 da seleção brasileira, os tendões de Aquiles se romper, a coroa no alto de cabeça se abrir e a equipe se renovar. O que não mudou foi a pressa, a vontade de estar sempre na frente. Tanta, que conta o tempo por temporadas e não por anos. Quando olha para trás e lembra daquele 4 de maio de 2001, o técnico admite que não poderia imaginar uma caminhada tão longa e vitoriosa. Naquele dia, em Portugal, ele faria o seu primeiro jogo no comando do time masculino, contra a Noruega, no amistoso preparatório para a Liga Mundial. A primeira das oito que tem no currículo.
Bernardinho não esperava que os 10 anos seriam tão vitoriosos (Foto: ANDRÉ DURÃO / Globoesporte.com)
Bernardinho elegeu o dourado como cor preferida. Acha que o prateado não lhe cai bem. E trabalha para que a hegemonia construída seja mantida. Poderia ter saído de cena após o ouro olímpico em Atenas-2004, como sugeriu Luiz Felipe Scolari durante um encontro. Mas resolveu assumir o risco. Não se arrepende. Tornou-se tricampeão mundial, foi vice nos Jogos de Pequim-2008 e fez da seleção uma máquina. Mas diz que tem uns parafusos a ajustar, conforme as anotações feitas no caderninho azul que carrega na mochila. Gosta de registros e brinca que as observações escritas nele podem ser usadas contra os jogadores. Tudo em nome do bem maior.
Hoje, difícil para ele é conseguir montar a seleção da década. Pensa, repensa, fala que fulano vai ficar chateado, que beltrano também é muito bom e não fecha a lista. Monta uma base com Ricardinho, André Nascimento, Giba, Gustavo e Serginho. As outras duas vagas ficam sem donos, por não ter como escolher entre Murilo, Dante, Rodrigão e Lucão. A única certeza de Bernardinho é que as peças podem mudar, mas o espírito do grupo segue intacto. O apetite também.
- Você sabe que vai ter altos e baixos, críticas, discussões. E daí eu volto para casa, e dá vontade de voltar no dia seguinte e fazer tudo de novo. Gostaria que quando tudo isso acabasse os porteiros e os manobristas continuassem me cumprimentando na rua. Isso é o que conta. Sei que meus amigos e minha família vão me chamar a atenção quando eu fizer uma besteira e quero que isso aconteça porque é o que ajuda a dar o equilíbrio da história - disse em entrevista ao GLOBOESPORTE.COM.
Brasil comemora a medalha de ouro nos Jogos Olímpicos de Atenas-2004 (Foto: Getty Images)
Quando assumiu a seleção masculina imaginava que fosse ter um caminho tão vitorioso depois de tanto tempo?
- Nenhum de nós, atletas e comissão técnica, poderíamos imaginar um período de tantos títulos. Se fôssemos parar para pensar, se tivéssemos ganho metade disso já seria espetacular. O problema é que depois desse tempo se quer sempre mais. Há dez anos estávamos atrás da Itália e ultrapassamos tudo. Parando agora e fazendo um balanço é uma coisa que impressiona. A única coisa que muda nesses 10 anos é a expectativa em cima das seleções brasileiras, que saem como o time a ser batido, o mais estudado e o mais visado.
Você construiu uma imagem que é sinônimo de vitória. Como essa busca e esse espírito de não se acostumar com a derrota afetaram a sua vida?
- Você não pode se acostumar com nada. Nem com a vitória nem com a derrota. Tem sempre que ser meio inconformado. A derrota te leva rapidamente a levantar a guarda e seguir em frente para mudar o percurso. A vitória é importante para que você saiba que é necessário fazer algo a mais porque ela não vai ser automática. A coisa que me preocupa quando me questiono sobre meu caminho e meu futuro é que não posso, quando termina uma competição importante, sentir apenas alívio e não sentir a alegria, a felicidade de fazer. É isso que preciso pensar.
Você se arrependeu de alguma coisa nessa trajetória?
- Não. Certamente, com a experiência que tenho hoje provavelmente faria algo diferente, mas não me arrependo. Eu me arrependo sim, de coisas que não fiz. Posso ter errado, mas os erros fazem parte do processo de aprendizado e crescimento. Não há como não errar e tomar decisões equivocadas. São tantas escolhas que você faz que, a posteriori, observa que de fato poderia ser diferente. Mas antes... Não é simples.
Quando não é bom ser Bernardinho?
- Quando as pessoas te veem como perfeito. Longe disso. Ou quando te veem como intransigente. Uma coisa é ser exigente, outra, intransigente. Quando tenho que cortar alguém de uma seleção. A pior coisa que tem é frustrar a expectativa das pessoas, magoar sem querer, frustrar sonhos. Há quem pense que isso não dói na gente. Mas fica marcado na pessoa e sei porque já fui atleta e já fui cortado. Pode ter certeza de que não esqueci nenhum momento pré-corte ou do corte, porque são tão bons jogadores e jogadoras para ter que deixar alguém de fora. Isso é um terror. Não gosto de ser eu mesmo quando não tenho paciência necessária, quando não consigo colocar as coisas nas perspectivas devidas e deixo que a emoção tome conta demais. Não gosto desses meus momentos e quero trabalhar para poder melhorar.
Bernardinho com Vitória, a filha caçula, no colo
(Foto: Fernando Soutello / adorofoto)
Mas você parece mais calmo...
- Não. Mesma coisa sempre... Essa é minha essência. Tento ser correto, justo e se errar peço desculpa. É só não pisarem no meu calo. Não sejam incorretos. Assim como eu não pretendo ser incorreto com as pessoas. A gente pode errar na forma, mas nunca na intenção. Sou meio arredio, fico toureando com os assessores e, se puder sair feito Leão da Montanha, eu saio. Não é por mal.
Quando é fácil bater Bernardinho?
- Ah, tantos já ganharam de mim. Você quer ganhar de grandes times e de grandes treinadores. De uma certa forma é o respeito que a trajetória nos trouxe. Não tenho outras atividades competitivas hoje, mas em brincadeira você quer ganhar e está sempre disposto a dar seu melhor (risos). Só que hoje não me importo tanto, não. Na minha vida tem tanta competição e pressão que não dá para se importar o tempo todo. Ali é lazer.
Mas no que você se considera fraco?
- Sou fraco, ruim em um monte de coisas. Sou fraquíssimo em videogame. Minha filha ganha, todo mundo ganha de mim. Comecei a pedalar e não sou bom. Quero ficar melhorzinho só para não dar vexame, para o pessoal não sair me atropelando (risos).
Daqui a pouco já pode fazer triatlo então.
- Tenho uma admiração por esses caras. Adoro! Meu sonho, mas não tenho condição nenhuma porque estou todo operado, todo ruim, é fazer um ironman. O cara tem que ser um Super-Homem para fazer um negócio desses. Tenho uma admiração única. Gostaria de ter mais tempo para me dedicar a esse tipo de coisa e, quem sabe, fazer uma coisinha legal dentro das minhas possibilidades que seria completar.
Como é o comportamento das pessoas? Elas sempre o reconhecem e admiram ou há quem aja diferente?
- Tomei uma dura da polícia que foi desagradável e proposital. Foi para mostrar "sou o poderoso e vou esculachar". Mas em todo lugar tem os bons e os maus profissionais. De uma forma geral as pessoas me falam que brigo muito ou que vou ter um problema cardíaco. É um misto de admiração e preocupação. Agora que estou indo trabalhar de bicicleta me cumprimentam e perguntam: "De onde te conheço mesmo?" Falo que saí da novela agora. Tem pessoas que não são ligadas no esporte, não sabem quem sou e está tudo certo. Saio da minha casa, e os porteiros e manobristas são meus chapas. Minha filha tem consciência de algumas coisas, me acha um pai legal, mas nenhum super-herói. Bruno tem a admiração do esporte, acha que sou um trabalhador e que faço as coisas bem. Sou absolutamente normal.
Que ganhou muita coisa a gente sabe, mas o que você perdeu durante este período?
- Perdi muito tempo de convivência com minha família e alguns títulos. Lembro mais dos perdidos do que dos que ganhei. A vida é feita de escolhas e quando encontro o pessoal do mercado financeiro, porque me formei em Economia lá atrás, penso que podia ter tomado um rumo totalmente diferente. Não fiz a pós-graduação porque minha área exige dedicação. Então, nas escolhas você ganha umas coisas e perde outras. Não vi o nascimento da minha segunda filha (Vitória) porque estava fora do país. Perdi festas da minha outra filha, e a Julia ainda me cobra: "Você nunca vai à minha festa junina". Mas é na época de Liga Mundial. Tentei alugar um avião num ano para voltar de Brasília e chegar a tempo numa festa dela. Isso é realmente ruim e não tem volta. E dói mais em mim do que nelas. Quando o Bruno nasceu meu pai disse que eu ia entender muitas coisas que ele fez e das quais eu reclamava.
O que mudou dos 40 para os 50 anos? O que a maturidade trouxe?
- A consciência de qual é a minha missão. Enquanto não me mandarem embora eu não vou pedir para sair. Adoro o que faço e faço com paixão. Vou brigar pelo que acho que é certo. Falam que é um duplo emprego, que está na hora de ficar num só, mas não consigo. Não posso ficar seis meses sem dar um treino. Tomei posse da minha paixão e quero poder fazer isso enquanto tiver saúde. Tenho milhões de outros interesses, o Instituto, livros, palestras, mas minha vida é muito aqui. Para mim, isso aqui é muito importante e vai muito além de ganhar e perder.
No ano passado, a seleção brasileira conquistou na Itália o tricampeonato mundial (Foto: AFP)
Então não está preparado para deixar essa vida nunca.
- Não estou. Agora não tenho ido, mas tenho uma amiga e terapeuta que tem essa convicção de que tenho que me preparar. Pode ser que amanhã tenha um mau resultado e a opção do treinador ou da Confederação seja de não continuar. Coisa mais natural do mundo. Amanhã pode ser que queira mudar. Vou arrumar alguma coisa para treinar. Pode ser o mirim do time, não importa. É o que gosto de fazer.
O mundo mudou muito nos últimos dez anos. O que chamou mais a sua atenção?
- Mudou mesmo. Acho que você tem que estar mais preparado para ter chance. Tem que ter domínio das tecnologias que estão cada vez mais apuradas, se capacitar mais. Há cada vez menos espaço para pessoas apenas intuitivas ou talentosas. É preciso tomar posse de coisas novas. Com a velocidade com que tudo está acontecendo, as pessoas olham muito pouco para dentro de si, e cada vez mais julgam as outras. Atiram pedras demais e não querem ser julgadas. Essa distância de valores essenciais incomoda. Como pai me preocupo porque tudo está menos transparente. A internet tem coisas maravilhosas, mas tem uma série de lixo que vem junto. As pessoas se escondem ali atrás e escrevem qualquer coisa. Clamam por liberdade, mas não assumem responsabilidade sobre atos e palavras. Isso é terrível.
O que viu e ouviu que marcou nesta década?
- Milito numa área em que estou sempre cercado de pessoas com idades diferentes. Então do rock lá de trás ao sertanejo de hoje eu ouço tudo. Quando saiu "Tropa de Elite", a garotada se amarrava. Fui ver. Aí, as meninas comentam de um romântico que é bacana. Ou minha filha quer ver um filme mais adolescente, ou o show da Miley Cyrus, que não é mais Hannah Montana, e vou numa boa. Não pode ter aquela coisa de rigidez senão não dá pra conviver. Gosto de ler de tudo para abstrair um pouco minhas preocupações diárias. Biografias de pessoas que realizaram ou fracassaram, mas que trazem experiências bacanas. Lançaram até um espetacular que se chama "Fora do comum", do Tony Dungy, primeiro treinador negro americano a ganhar um título do Super Bowl com o Indianápolis Colts. Tem um pouco de religiosidade e fé, e não tenho criação muito forte nessa área. É uma das deficiências que tenho.
Mas ajuda?
- Ajuda a dar um equilíbrio, sim. Mas fui criado com uma mãe católica e um pai positivista, e positivismo tem muito a ver com ciência. Nele é a humanidade que provê todas as coisas e não a divindade. Mas em certos momentos as divindades trazem conforto. Eu juro para você que nunca envolvi Papai do Céu nas disputas esportivas. Acho que Ele tem coisa mais importante para se preocupar, mas aceito a ajuda de quem faz isso por mim (risos). Não tenho muito, mas hoje vejo isso, que as pessoas têm que ter uma crença, seja ela qual for. Ajuda a trazer equilíbrio e uma coisa legal de vida. Respeito todas.
Como você se imagina daqui a dez anos?
- Não tenho ideia. Espero estar bem de saúde e de alguma forma estar envolvido em alguma coisa. Comecei minha carreira por aqui, nesse mesmo ginásio (Escola de Educação Física do Exército), com 14 anos, treinando com minha segunda seleção carioca, em 74/75. Isso aqui é o máximo. E continuo aqui.
Não pensa em descansar?
- Dá para descansar no meio do caminho. Há coisa melhor do que fazer o que se gosta? Tem segunda-feira que Fernanda me fala: "Está meio perdido, né? Vai fazer o que agora? É tanto tempo livre". Segunda de folga é raro. Depois de um domingo de folga, mais ainda. Você fica meio perdido mesmo. O que me mantém é o prazer de poder voltar aqui. Independentemente de qualquer coisa quero voltar no dia seguinte. Então, não tem problema nenhum.
FONTE:
http://globoesporte.globo.com/volei/noticia/2011/05/bernardinho-completa-dez-anos-na-selecao-e-diz-ter-folego-para-mais.html