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O vendedor de sorvete caminhava solitário pela praia de
Pocitos, em Montevidéu, no Uruguai. Era um ponto diferente na paisagem: de
todos que estavam na areia, curtindo o dia ensolarado, ele era o único negro.
Uma menina branca parou ao seu lado e comprou dois sorvetes. O preço era de 120
pesos uruguaios, ela lhe entregou uma nota de 200 pesos. O vendedor parou,
pensou, virou para a reportagem e perguntou:
- Quanto devo devolver a ela? Qual é o troco?
Depois de entregar a nota à menina, o vendedor de sorvete se
irritou ao saber por que havia sido parado por um brasileiro. O bom humor de
antes desapareceu. Reclamou da câmera fotográfica, questionou por que alguém se
interessaria pela sua vida, disse que precisava trabalhar. Queixou-se de que
não havia vendido muitos sorvetes. Afirmou que não queria ficar famoso. Olhou
sério, nos olhos, com indignação. Foi embora, sem revelar seu nome. Não gostou
da abordagem direta – não sem razão – sobre como é ser um negro uruguaio.
Filha de brasileiros, Nuri é uruguaia e diz que
já sofreu com racismo no país (Foto:
Felipe Schmidt)
Em uma semana, os jogadores da seleção brasileira sub-20
foram vítimas de injúrias raciais em duas oportunidades. Primeiro, contra o
Uruguai, o atacante Marcos Guilherme deixou o gramado dizendo que foi chamado
de macaco pelo meia Facundo Castro. Depois, no clássico com a Argentina, um
torcedor foi flagrado na arquibancada xingando os atletas com as mesmas
palavras.
Na primeira oportunidade, o departamento
jurídico da CBF
decidiu não levar o caso adiante, por falta de provas. Na segunda,
apesar das
imagens, a entidade ainda não definiu o que irá fazer – a tendência é
que
qualquer atitude só seja tomada após o Sul-Americano. O tema, porém, não
saiu
de pauta. Nesta semana, o volante Lucas Evangelista classificou o ato
como desumano. O lateral João Pedro pediu providências para que tais
episódios diminuam no Uruguai.
- Tem que acontecer
uma punição, com certeza. Se tiver uma punição severa, certa, pode ser
que pare aqui. Mas aqui não vai ser o último lugar, porque isso acontece
no mundo todo.
Entre os uruguaios brancos, alguns defendem que as ofensas devem ser
interpretadas como provocações, e não ato de racismo - a mesma linha de raciocínio adotada pelos jornais locais.
- Não foi racismo, foi provocação. O uruguaio tem isso, essa
coisa de garra charrúa, de querer intimidar. Sabe que o brasileiro não gosta de ser chamado de
macaco, por isso vai lá e fala. Nem pensa no significado. Se tivesse que chamar
de papagaio, chamaria – disse o taxista Alvaro Almeida.
Marcos Guilherme em ação pela seleção sub-20
no Sul-Americano (Foto: Rafael Ribeiro/ CBF)
No Uruguai, os negros são minoria. O último censo, em 2011, apontou
que cerca de 10% da população têm origem africana. Um estudo recente da ONU, divulgado em 2013,
indica que eles ocupam apenas 0,8% dos cargos hierárquicos no país. Nesta
parcela da população, a pobreza é duas vezes maior que no restante. Isso tem
reflexos: na média, o número de jovens negros com ensino superior é
reduzidíssimo, e a maioria dos empregos exercidos pelos afrouruguaios é de
baixa qualificação.
Ao caminhar pelas ruas de
Montevidéu, é difícil encontrar
algum negro. Quando se vê, são como o vendedor de sorvete: exceções na
paisagem. Entretanto, no bairro Palermo, a história é diferente. No
século 19, o
local era o reduto dos escravos antepassados de boa parte dos
afrouruguaios.
Ali ficava o Conventillo Mediomundo, um antigo cortiço onde surgiu o
candombe, um estilo musical típico que tem na origem africana o
parentesco com o candomblé brasileiro. Ali
mora Nuri Silva Sena, uma uruguaia filha de brasileiros que já foi
vítima de
racismo.
- Aqui, no Uruguai, há racismo, sim. É dos
brancos para os
negros. É visível. Quando você caminha pela rua, de um bairro para o
outro,
quando você trabalha, quando vai a um baile... Muitas coisas acontecem.
Eu já
sofri racismo: no meu trabalho, uma mulher veio e disse: “Vai embora,
porque eu
não gosto de negros”. Tive que ir embora – contou, mas só depois de se
certificar de que falava para um meio de comunicação brasileiro, e não
uruguaio.
Local onde ficava o Conventillo Mediomundo
hoje é um edifício residencial em Montevidéu
(Foto: Felipe Schmidt)
Nuri tem 40 anos, trabalha como diarista, limpando casas de
outras famílias, e mora com seus dois filhos, uma menina de 15 anos e um garoto de 10,
que dá seus primeiros passos como jogador de futebol no modesto Maeso. Para
ela, é uma das poucas formas de um negro no país conseguir ganhar dinheiro.
- Não é difícil conseguir emprego, mas não tenho bom
salário. Para ter um bom salário, tem que ser uma pessoa importante. Um
político, um jogador de futebol... – explicou.
A
situação não é muito diferente da brasileira. As
semelhanças não param por aí: o carnaval uruguaio é a chance anual de
pessoas
como Nuri terem seus dias de glória e virarem os protagonistas da
sociedade. É quando acontece o desfile, ou "llamadas", como se diz no
Uruguai.
- Aqui tem candombe, é como o samba. A gente desfila, como se
fosse no Sambódromo do Rio de Janeiro. Eu gosto, também danço. Todos vêm ver a
gente. É como no Brasil. Eu saí nas escolas de samba (no Uruguai chamadas de comparsas) por muito tempo, dos cinco
aos 20 anos. Agora, só olho, danço um pouquinho e nada mais.
da maravilha negra a alvaro pereira
Andrade, único negro da seleção campeã
olímpica em 1924 e 1928 (Foto: Reprodução)
Apesar de ter sido palco das ofensas, o futebol sempre foi
uma alternativa para os negros uruguaios. Mas reflete a forma como a sociedade
local funciona. No elenco que disputou a Copa do Mundo de 2014, apenas dois
jogadores eram afrouruguaios: o lateral Alvaro Pereira e o atacante Abel
Hernández.
É difícil imaginar, porém, que a dupla tenha o mesmo fim que
outros negros ilustres que defenderam a Celeste. Dois deles vieram da mesma
família. O meia José Leandro Andrade foi o único afrouruguaio da seleção que
ganhou as Olimpíadas de 1924 e 1928, ganhou a alcunha de “A Maravilha Negra”, mas
morreu esquecido e pobre num asilo.
Seu sobrinho, o lateral-esquerdo Víctor, a “Pérola Negra”, ganhou
o Mundial de 1950 e esteve presente no Maracanazo. Cria do bairro Palermo, era um dos poucos negros
daquele time, assim como o “Chefe Negro” Obdulio Varela. Porém, após se
aposentar, virou porteiro do Palácio Legislativo de Montevidéu.
Entretanto, há quem reconheça a contribuição cultural dos
afrouruguaios para o país. O jornalista Mathias Roselló, da Rádio Nacional,
acredita que o Uruguai ganhou muito com a presença dos negros, mas deixa
escapar que, em vez de integrados, eles têm seu espaço definido.
Para nós, macaco é uma pessoa alegre, feliz. Mas sabemos que para os brasileiros é uma ofensa
Nuri Silva Sena, afrouruguaia
- O aporte que deram as pessoas de cor ao Uruguai teve muita
importância. O Uruguai tem uma influência muito importante dos negros e, em
parte, se mantém de pé por causa deles. Há um respeito muito importante. Eles
têm seu espaço e algumas das expressões populares mais influentes do país. Aqui
não há atos de racismo fortes. Não se mata alguém por ser negro – ressaltou.
Em relação aos episódios das ofensas aos jogadores brasileiros (veja no vídeo acima o relato de Marcos Guilherme),
Roselló frisou a diferença de significado da palavra macaco entre os dois
países. No Uruguai, o sinônimo mais próximo é o de palhaço, boneco, um vocativo
coloquial – o animal é chamado de “mono”. Ainda assim, como o taxista Alvaro
Almeida deixou claro, os uruguaios sabem como um brasileiro interpreta o
adjetivo.
Neste caso, Nuri não se sente ofendida. Ela sabe, por
influência de seus pais, oriundos da cidade gaúcha de Santana do Livramento,
que a palavra é um xingamento para brasileiros, mas concede que, no Uruguai, o
significado é realmente outro.
- Para nós, macaco não é uma ofensa, e sim para os
brasileiros. Para nós, macaco é uma pessoa alegre, feliz. Mas sabemos que para
os brasileiros é uma ofensa.
FONTE:
http://glo.bo/1EG4jGF