quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

Futebol, candombe e racismo: frações do cotidiano dos negros no Uruguai

País, que foi palco de duas injúrias raciais aos jogadores brasileiros, tem minoria afrouruguaia sem poder econômico, mas forte influência na cultura loca


Por
Montevidéu, Uruguai


saiba mais

O vendedor de sorvete caminhava solitário pela praia de Pocitos, em Montevidéu, no Uruguai. Era um ponto diferente na paisagem: de todos que estavam na areia, curtindo o dia ensolarado, ele era o único negro. Uma menina branca parou ao seu lado e comprou dois sorvetes. O preço era de 120 pesos uruguaios, ela lhe entregou uma nota de 200 pesos. O vendedor parou, pensou, virou para a reportagem e perguntou:

- Quanto devo devolver a ela? Qual é o troco?

Depois de entregar a nota à menina, o vendedor de sorvete se irritou ao saber por que havia sido parado por um brasileiro. O bom humor de antes desapareceu. Reclamou da câmera fotográfica, questionou por que alguém se interessaria pela sua vida, disse que precisava trabalhar. Queixou-se de que não havia vendido muitos sorvetes. Afirmou que não queria ficar famoso. Olhou sério, nos olhos, com indignação. Foi embora, sem revelar seu nome. Não gostou da abordagem direta – não sem razão – sobre como é ser um negro uruguaio. 

Filha de brasileiros, Nuri é uruguaia e diz que já sofreu com racismo no país (Foto: Felipe Schmidt)
Filha de brasileiros, Nuri é uruguaia e diz que 
já sofreu com racismo no país (Foto: 
Felipe Schmidt)


Em uma semana, os jogadores da seleção brasileira sub-20 foram vítimas de injúrias raciais em duas oportunidades. Primeiro, contra o Uruguai, o atacante Marcos Guilherme deixou o gramado dizendo que foi chamado de macaco pelo meia Facundo Castro. Depois, no clássico com a Argentina, um torcedor foi flagrado na arquibancada xingando os atletas com as mesmas palavras.

Na primeira oportunidade, o departamento jurídico da CBF decidiu não levar o caso adiante, por falta de provas. Na segunda, apesar das imagens, a entidade ainda não definiu o que irá fazer – a tendência é que qualquer atitude só seja tomada após o Sul-Americano. O tema, porém, não saiu de pauta. Nesta semana, o volante Lucas Evangelista classificou o ato como desumano. O lateral João Pedro pediu providências para que tais episódios diminuam no Uruguai.

- Tem que acontecer uma punição, com certeza. Se tiver uma punição severa, certa, pode ser que pare aqui. Mas aqui não vai ser o último lugar, porque isso acontece no mundo todo. 


Entre os uruguaios brancos, alguns defendem que as ofensas devem ser interpretadas como provocações, e não ato de racismo - a mesma linha de raciocínio adotada pelos jornais locais. 
- Não foi racismo, foi provocação. O uruguaio tem isso, essa coisa de garra charrúa, de querer intimidar. Sabe que o brasileiro não gosta de ser chamado de macaco, por isso vai lá e fala. Nem pensa no significado. Se tivesse que chamar de papagaio, chamaria – disse o taxista Alvaro Almeida. 

marcos guilherme seleção brasileira sub-20 (Foto: Rafael Ribeiro/ CBF)
Marcos Guilherme em ação pela seleção sub-20 
no Sul-Americano (Foto: Rafael Ribeiro/ CBF)


música e racismo

No Uruguai, os negros são minoria. O último censo, em 2011, apontou que cerca de 10% da população têm origem africana. Um estudo recente da ONU, divulgado em 2013, indica que eles ocupam apenas 0,8% dos cargos hierárquicos no país. Nesta parcela da população, a pobreza é duas vezes maior que no restante. Isso tem reflexos: na média, o número de jovens negros com ensino superior é reduzidíssimo, e a maioria dos empregos exercidos pelos afrouruguaios é de baixa qualificação. 

Ao caminhar pelas ruas de Montevidéu, é difícil encontrar algum negro. Quando se vê, são como o vendedor de sorvete: exceções na paisagem. Entretanto, no bairro Palermo, a história é diferente. No século 19, o local era o reduto dos escravos antepassados de boa parte dos afrouruguaios. Ali ficava o Conventillo Mediomundo, um antigo cortiço onde surgiu o candombe, um estilo musical típico que tem na origem africana o parentesco com o candomblé brasileiro. Ali mora Nuri Silva Sena, uma uruguaia filha de brasileiros que já foi vítima de racismo. 

- Aqui, no Uruguai, há racismo, sim. É dos brancos para os negros. É visível. Quando você caminha pela rua, de um bairro para o outro, quando você trabalha, quando vai a um baile... Muitas coisas acontecem. Eu já sofri racismo: no meu trabalho, uma mulher veio e disse: “Vai embora, porque eu não gosto de negros”. Tive que ir embora – contou, mas só depois de se certificar de que falava para um meio de comunicação brasileiro, e não uruguaio. 

Local onde ficava o Conventillo Mediomundo hoje é um edifício residencial em Montevidéu (Foto: Felipe Schmidt)
Local onde ficava o Conventillo Mediomundo 
hoje é um edifício residencial em Montevidéu 
(Foto: Felipe Schmidt)


Nuri tem 40 anos, trabalha como diarista, limpando casas de outras famílias, e mora com seus dois filhos, uma menina de 15 anos e um garoto de 10, que dá seus primeiros passos como jogador de futebol no modesto Maeso. Para ela, é uma das poucas formas de um negro no país conseguir ganhar dinheiro. 

- Não é difícil conseguir emprego, mas não tenho bom salário. Para ter um bom salário, tem que ser uma pessoa importante. Um político, um jogador de futebol... – explicou. 

A situação não é muito diferente da brasileira. As semelhanças não param por aí: o carnaval uruguaio é a chance anual de pessoas como Nuri terem seus dias de glória e virarem os protagonistas da sociedade. É quando acontece o desfile, ou "llamadas", como se diz no Uruguai.

- Aqui tem candombe, é como o samba. A gente desfila, como se fosse no Sambódromo do Rio de Janeiro. Eu gosto, também danço. Todos vêm ver a gente. É como no Brasil. Eu saí nas escolas de samba (no Uruguai chamadas de comparsas) por muito tempo, dos cinco aos 20 anos. Agora, só olho, danço um pouquinho e nada mais. 

da maravilha negra a alvaro pereira

José Leandro Andrade, único membro negro da seleção uruguaia campeã olímpica em 1924 e 1928 (Foto: Reprodução)Andrade, único negro da seleção campeã
olímpica em 1924 e 1928 (Foto: Reprodução)


Apesar de ter sido palco das ofensas, o futebol sempre foi uma alternativa para os negros uruguaios. Mas reflete a forma como a sociedade local funciona. No elenco que disputou a Copa do Mundo de 2014, apenas dois jogadores eram afrouruguaios: o lateral Alvaro Pereira e o atacante Abel Hernández. 

É difícil imaginar, porém, que a dupla tenha o mesmo fim que outros negros ilustres que defenderam a Celeste. Dois deles vieram da mesma família. O meia José Leandro Andrade foi o único afrouruguaio da seleção que ganhou as Olimpíadas de 1924 e 1928, ganhou a alcunha de “A Maravilha Negra”, mas morreu esquecido e pobre num asilo. 

Seu sobrinho, o lateral-esquerdo Víctor, a “Pérola Negra”, ganhou o Mundial de 1950 e esteve presente no Maracanazo. Cria do bairro Palermo, era um dos poucos negros daquele time, assim como o “Chefe Negro” Obdulio Varela. Porém, após se aposentar, virou porteiro do Palácio Legislativo de Montevidéu. 

macaco: ofensa ou gíria?

Entretanto, há quem reconheça a contribuição cultural dos afrouruguaios para o país. O jornalista Mathias Roselló, da Rádio Nacional, acredita que o Uruguai ganhou muito com a presença dos negros, mas deixa escapar que, em vez de integrados, eles têm seu espaço definido. 

 Para nós, macaco é uma pessoa alegre, feliz. Mas sabemos que para os brasileiros é uma ofensa
Nuri Silva Sena, afrouruguaia
 
- O aporte que deram as pessoas de cor ao Uruguai teve muita importância. O Uruguai tem uma influência muito importante dos negros e, em parte, se mantém de pé por causa deles. Há um respeito muito importante. Eles têm seu espaço e algumas das expressões populares mais influentes do país. Aqui não há atos de racismo fortes. Não se mata alguém por ser negro – ressaltou. 


Em relação aos episódios das ofensas aos jogadores brasileiros (veja no vídeo acima o relato de Marcos Guilherme), Roselló frisou a diferença de significado da palavra macaco entre os dois países. No Uruguai, o sinônimo mais próximo é o de palhaço, boneco, um vocativo coloquial – o animal é chamado de “mono”. Ainda assim, como o taxista Alvaro Almeida deixou claro, os uruguaios sabem como um brasileiro interpreta o adjetivo. 

Neste caso, Nuri não se sente ofendida. Ela sabe, por influência de seus pais, oriundos da cidade gaúcha de Santana do Livramento, que a palavra é um xingamento para brasileiros, mas concede que, no Uruguai, o significado é realmente outro. 

- Para nós, macaco não é uma ofensa, e sim para os brasileiros. Para nós, macaco é uma pessoa alegre, feliz. Mas sabemos que para os brasileiros é uma ofensa. 


FONTE:
http://glo.bo/1EG4jGF


Nenhum comentário: