saiba mais
Em
meio à censura das matérias
políticas e policiais, os destaques dos jornais estavam abertos às
manchetes
esportivas. Enquanto no Brasil os militares se desdobravam para
controlar manifestações públicas contra a ditadura, mundo afora os
atletas do país davam involuntariamente
ao governo um prato cheio para usar as vitórias nas quadras, nos
estádios e ringues
como propaganda de tempos de glória. Referências em suas respectivas
modalidades,
Maria Esther Bueno, Amaury Pasos, Aída dos Santos e Éder Jofre, entre
outros,
tiveram seus feitos associados à imagem de uma nação unida e em
crescimento.
Por outro lado, cidadãos
em que a veia revolucionária pulsava mais forte do que a aptidão para o esporte
sofreram com a tortura – e seus nomes passaram longe das páginas dos jornais no
período. Osvaldo Orlando da Costa e Stuart Angel são alguns dos personagens que,
apesar do passado como atleta, ficaram marcados pela luta revolucionária.
Ex-pugilista do Vasco, Osvaldão foi um dos líderes da Guerrilha do Araguaia,
enquanto o filho da estilista Zuzu Angel, bicampeão carioca de remo pelo
Flamengo, foi um dos membros do MR-8.
No dia em que o golpe militar de 1964 completa 50 anos, o GloboEsporte.com conta, através de
depoimentos de atletas, parentes e amigos, parte da história que passou longe
das páginas dos jornais da época. Confira nos tópicos abaixo.
Éder Jofre é coagido a dar luvas a general
Éder Jofre dá a luva da mão direita ao presidente Emílio Garrastazu Médici após título mundial (Foto: Gazeta Press)
Recém-sagrada bicampeã
mundial em 1962, a seleção brasileira de futebol era o carro-chefe da propaganda de
esportes do governo ditatorial – que chegaria ao ápice com a Copa de 1970 e a
música “Pra frente Brasil”. Mas os esportes olímpicos também viviam dias de
grande apelo devido a uma boa safra de atletas. Entre os nomes de destaque,
estava Éder Jofre. Atleta do Brasil nos Jogos de Melbourne 1956, o pugilista
havia se profissionalizado no ano seguinte e conquistado seu primeiro título
mundial no início da década de 1960 – o manteria até 1965, quando foi derrotado
duas vezes, em lutas contestadas, pelo japonês Harada.
Quando voltou aos ringues, Éder estreou
como peso-pena e construiu nova trajetória vitoriosa. Até que, em 1973, em luta
em Brasília, faturou o cinturão do Conselho Mundial de Boxe (WBC) ao bater o
cubano José Legra. De posse do novo título, o paulista estava pronto para
cumprir a promessa de depositar as luvas da luta decisiva no túmulo de sua mãe,
Dona Angelina, falecida dois anos antes. Uma pressão inesperada, porém, fez com
que a homenagem fosse feita pela metade.
- Quando meu pai foi
campeão em Brasília, sob as asas dos generais, ele foi orientado a dar as luvas
da conquista para o presidente Médici. Meu pai falou que não, porque tinha prometido
colocar no túmulo da minha avó, que tinha falecido em 1971. Ele tinha dito que,
se fosse campeão, colocaria as luvas no túmulo dela como homenagem e
reconhecimento. Mas ele foi meio que coagido a mudar de ideia. Disseram que
teria que dar, houve a pressão. Aí ele falou que tudo bem, daria a mão direita
para ele e a esquerda foi para a mãe – contou Marcel Jofre, filho do boxeador.
saiba mais
Professor de História do
Brasil Republicano na UFF e na UFRJ, Marcus Dezemone lembra-se de ver a imagem de
Éder ser utilizada como símbolo de sucesso do país, mas
ressalta o cuidado que o governo tinha para que esta associação fosse indireta: sugerida, mas não oficializada.
- O regime
oficialmente não usava os atletas como propaganda política. Mas empresas
estatais e privadas do período se apropriaram desse poder do ufanismo que
envolve o esporte. Eu me recordo de peças publicitárias que usavam as imagens
de boxeadores, como Éder Jofre, e de esportistas bem-sucedidos em geral, com
uma publicidade que se assimilava ao modelo empregado pelo regime. E, claro, o uso do futebol para isso era muito emblemático.
basquete tem ajuda, mas aída pena em 1964
Amaury Pasos no Mundial de Basquete de 1963, um ano antes do Golpe Militar (Foto: Divulgação/CBB)
Os Jogos de Tóquio 1964 foram
o primeiro grande evento do gênero após a implantação do regime e teriam grande
importância para mostrar a valorização dos esportes olímpicos no novo governo.
Nesse cenário, a Confederação Brasileira de Basquete era o elo perfeito para esse
primeiro passo. Presidida pelo almirante Paulo Martins Meira desde 1938, a entidade
contava com o time bicampeão mundial em 1963 e forte candidato ao pódio
olímpico – ficaria com o bronze. Um dos expoentes da equipe, Amaury Pasos
lembra que outros militares também acompanhavam o time de perto e faz questão
de enfatizar a importância do trabalho deles para que os atletas pudessem competir internacionalmente.
- O almirante
Paulo Martins Meira, o major Covas Pereira, que era uma espécie de assistente
do Kanela (treinador), e outros militares acompanharam nossa equipe e aportaram
toda espécie de dedicação e sacrifício, assinando até promissórias para que a
equipe pudesse viajar, porque não havia fundos. Muito se deve a estes militares
que se esforçaram abnegadamente e deram toda espécie de ajuda. E eu pertencia
ao Partido Socialista Brasileiro, então é um comentário isento de qualquer ânimo
político. Estou apenas externando uma verdade – afirmou Amaury.
Aída dos Santos lamenta reconhecimento após retorno ao Brasil em 1964 (Foto: Alexandre Durão)
Única mulher da delegação brasileira nessa edição olímpica, Aída dos
Santos não teve a mesma sorte. Representante do país no salto em altura, a carioca
viajou com uniforme emprestado e sem treinador. Ajudada por um atleta cubano,
conseguiu com um representante de material esportivo a doação de um par de
sapatilhas utilizadas por velocistas, com seis pregos na parte da frente – o
dos saltadores tinha quatro pregos na frente e dois atrás no pé da impulsão.
Mesmo com condições precárias e o abalo emocional por uma lesão
sofrida durante as eliminatórias, Aída terminou a disputa em quarto lugar, com
1,74m, dois centímetros a menos do que a russa Taisia Chenchik, medalhista de bronze. Quando voltou ao Brasil,
veio a surpresa. Desconhecida do grande público quando viajou para o Japão, a
atleta retornou com recepção de gala.
- Depois dos Jogos apareceu muita gente. Mas antes, quando eu
mais precisava... Fui para o Japão sem técnico. A delegação masculina toda
tinha uniforme, sapato, mas falaram que não tinha roupa para mim. Parecia que estavam torcendo para eu não ir. No
Japão eu andava de bicicleta e chorava, não tinha como treinar, só consegui uma
sapatilha de velocista na tentativa com o segundo fornecedor depois de chorar
mais. Mas tinha que competir da mesma maneira, e estava tão chateada, preocupada
com os brasileiros, que fui. Quando cheguei ao Brasil até fiquei espantada.
Tinha Corpo de Bombeiros para me receber, flores... Mas falei que ali não
interessava mais, que eu precisava antes – lembrou.
remador do FLA, STUART ANGEL É TORTURADO E MORRE
O
pulmão enchia de ar
a cada remada nas águas ainda limpas da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio
de Janeiro, nos anos 1960.
Foi no auge de sua adolescência, aos 18 anos, que Stuart Angel ajudou a
levar o
Flamengo ao alto do pódio do tradicional e badalado Campeonato Carioca
de Remo,
em 1964. Esse mesmo ano, marcado pelo Golpe Militar, mudaria sua vida
para
sempre. A veia política passou a pulsar mais forte do que a de remador. A
luta
contra a ditadura militar no Brasil viraria a missão prioritária do
estudante de economia. Mas a fase
como membro do grupo guerrilheiro de extrema esquerda MR-8 durou pouco e
teve
um fim trágico. O pulmão, antes acostumado a lhe trazer alegrias, não
suportou
as torturas de membros do Cisa (Centro de Informações de Segurança da
Aeronáutica).
Aos 25 anos, o filho de Zuzu Angel morreu por asfixia e envenenamento
com gás carbônico, em um dos casos mais emblemáticos desse obscuro
capítulo da história brasileira.
- O caso mais conhecido de atleta envolvido no combate ao
regime militar foi mesmo de Stuart Angel. Ele pertencia a essa juventude
de
classe média da extrema esquerda armada. O lado dele de atleta acabou
ficando de
lado. Tem tanta coisa para se explorar da vida dele que isso ficou em
segundo plano - analisou o professor Marcus Dezemone.
Stuart Angel era destaque do barco
Oito do Flamengo nos anos de 1964
e 1965 (Foto: Arquivo / O Globo)
De fato, em biografias,
reportagens e documentários, a carreira de esportista de Stuart Angel sempre
foi ofuscada por sua trajetória nos anos seguintes da conquista do bicampeonato
carioca pelo Flamengo. Mas a paixão pela vida de atleta esteve aflorada
em 1964 e 1965, aos 18 e 19 anos, quando participou ativamente das conquistas
estaduais de seu time no remo. O filho da famosa figurinista e estilista Zuzu
Angel, que também tinha nacionalidade americana, era um apaixonado por esportes. Chegou a praticar tênis, natação,
capoeira e levantamento de peso. Foi dentro da Lagoa Rodrigo de Freitas, mais
precisamente do tradicional barco Oito, conhecido como “Transatlântico de
Luxo”, porém, que se descobriu atleta.
-
Ele era um
rapaz da Zona Sul, e o remo sempre foi um esporte muito grande, muito praticado
por moradores de Ipanema. Ele foi um grande remador.
Mas, quando entrou para valer na militância, teve de deixar o remo. Ser
guerrilheiro não permitia nada além daquilo. No momento em que ele entrou para
essa vida de clandestinidade, tudo que vivia antes se cessou. Ele começou
uma vida completamente diferente – contou o cineasta Sérgio Rezende, que contou
as histórias da famosa família no filme “Zuzu Angel”, lançado em
2006.
O jeito alegre,
divertido e tranquilo do jovem Stuart Angel não deixava pistas de que, por trás
do típico garoto da Zona Sul Carioca, havia um revolucionário prestes a trocar o
remo pela luta armada. No início de sua carreira de atleta, os colegas de
equipe e os adversários não desconfiavam do seu envolvimento político. Para se
proteger e tentar preservar a vida das pessoas em sua volta, o remador escondia
sua outra perigosa atividade.
-
O Flamengo
vencia todas as provas na categoria dele. Stuart era um remador excepcional. Não
cheguei a competir diretamente contra ele, porque nossas categorias eram
diferentes. Mas todo mundo o conhecia e eu o achava um cara
divertido, brincalhão, um cara "light". Até por isso, ninguém podia imaginar que
ele tinha essa ligação com forças revolucionárias. Quando soubemos
disso, ficamos muito chocados e preocupados com o drama que ele
estava vivendo – revelou o jornalista Antônio Maria, ex-remador do Botafogo e colega de Stuart.
Em 2010, uma homenagem foi feita para Stuart no estádio do Flamengo (Foto: Site Oficial do Clube)
A dedicação cada vez mais perigosa e intensa
às suas ideologias, porém, foi atrapalhando a carreira de atleta no fim dos anos 1960. O segredo já
não tinha mais como ser guardado a sete chaves. As ausências nos treinos
passaram a ser constantes, e a rotina e as companhias de Stuart começaram a
entregar o outro viés do talentoso remador. Os amigos do esporte, porém, só tiveram
a noção real do seu envolvimento com a luta armada quando seu técnico o
encontrou na rua disfarçado.
-
Ele tinha
desaparecido. Ninguém sabia para onde ele tinha ido. Um dia o técnico do
Flamengo, o Buck (Guilherme Eirado da Silva), viu um
soldado que era a cara do Stuart. Quando ele estava indo falar com ele, o
Stuart piscou, como se estivesse o mandando sair fora dali. Ele estava
disfarçado, não podia ser desmascarado. E os problemas foram se
intensificando.
Lembro que chegou a morar escondido na garagem de barcos do Flamengo.
Durante aquele tempo, não podia sair de lá para nada. Os seguranças
buscavam comida para ele todos os dias na rua. Mas Stuart acabou tendo
que
sair de lá. Ele pensava muito nas pessoas, ficava com medo de acabar
prejudicando
alguém. Depois disso, ninguém nunca mais soube dele - lembrou Maria.
O
MR-8, Movimento Revolucionário 8 de Outubro, foi uma das principais
organizações políticas de ideologia socialista na luta armada contra a
ditadura militar brasileira. O objetivo principal era a instalação de um
estado socialista.
Quando os colegas do
esporte voltaram a ter notícias, souberam que Stuart já estava morto. Embora os
detalhes nunca tenham sido confirmados, o que se sabe é que o revolucionário foi
levado para o Centro de
Informação e Segurança da Aeronáutica em maio de 1971 e lá teria morrido em
decorrência das intensas torturas sofridas. Na maior e principal delas, foi arrastado por um jipe
com a boca no cano de descarga, causando a fatal asfixia.
Nos anos seguintes, Zuzu Angel travou uma luta
incansável para encontrar o corpo do filho. A estilista, no entanto, morreu em março de
1976, em uma suspeita de atentado, sem descobrir ao certo o paradeiro do esportista e guerrilheiro.
dE CAMPEÃO PELO VASCO A GUERRILHEIRO NO ARAGUAIA
Osvaldão foi campeão de boxe pelo Vasco antes de ser guerrilheiro (Arquivo Pessoal)
A
força dos punhos e os quase 2m de altura eram proporcionais à coragem
que carregava no peito. Osvaldo Orlando da Costa, o Osvaldão, é lembrado
até hoje como um dos principais integrantes da Guerrilha do Araguaia,
na década de 1970. Mas antes de entregar sua vida por um ideal após o
Golpe Militar, foi campeão de boxe defendendo as cores do Vasco da Gama
em torneios no Rio de Janeiro.
- Ele era gigante.
Tinha 1,98m de altura. Um bom porte físico para a prática de esporte,
mas também para ser guerrilheiro. Ele era um dos guerreiros mais
conhecidos do Araguaia. Surgiram lendas de que era um guerrilheiro
sobrenatural, que ficava até invisível para fugir do Exército – disse o
escritor Bernardo Joffilly, autor do livro ''Osvaldão e a Saga do
Araguaia''.
A trajetória esportiva não se resumia
apenas aos ringues. Desde menino, Osvaldo ainda praticava atletismo e
basquete nas horas vagas. Não por acaso, o nome do guerreiro batiza o
ginásio poliesportivo de sua terra natal, o município de Passa Quatro,
no interior de Minas.
- Ele chegou a ser campeão de boxe
amador, na categoria peso-pesado. Osvaldo praticava remo, basquete,
arremesso de dardo, disco e peso – relata a sobrinha Cristina, que vive
no Rio de Janeiro.
A
Guerrilha do Araguaia foi um movimento na região Sul do Pará, que teve
início em 1967 e travou uma batalha contra as forças de repressão.
Acredita-se que 70 dos desaparecidos políticos do Brasil foram mortos no
Araguaia.
Os tempos de guerrilha deixaram poucos
vestígios da trajetória de Osvaldão nos ringues. Mas no acervo de
memória do Vasco ainda há registros, como as fichas das lutas que o
consagraram campeão do torneio Luvas de Prata de 1956. Dois duelos
contra Antonio Alves da Souza, com uma derrota e um triunfo, foram o
suficiente para levar o troféu.
Depois de viver
muito tempo no Rio de Janeiro, onde foi estudar, Osvaldo também passou
um período na Europa. Passou alguns anos estudando engenharia em Praga,
na antiga Tchecoslováquia, e deixou o esporte em segundo plano.
-
As pessoas o conhecem pouco pelo lado esportivo. Ficou conhecido pelo
lado guerrilheiro. Só quem conviveu de perto sabe de toda a história
esportiva. Ele era muito forte, tão forte que carregava pessoas no
ombro. Vivia incentivando a molecada da cidade a praticar muitos
esportes – disse outra sobrinha, Maria Elisa.
Ficha da luta entre Osvaldão e Antonio Alves (Foto: Reprodução/Centro de Memória Vasco da Gama)
A
história do esportista guerrilheiro será retratada no filme ''Onde Está
Osvaldão?'', com estreia prevista para junho deste ano. O longa é
produzido por Renata Petta e dirigido por Vandré Fernandes, Ana Petta,
Fabio Bardella e André Michiles,
O mineiro nunca se tornou um
grande campeão e nem ganhou outros títulos. Mas serviu de exemplo de
coragem. A Guerrilha do Araguaia sofreu três operações de aniquilamento.
Para a terceira, o Exército passou muito tempo se preparando com
trabalho de espionagem e mapeamento da área. O grupo foi duramente
atingido e, de acordo com a versão dos sobreviventes, Osvaldão foi morto
por um pistoleiro em um milharal, em 1974, aos 35 anos. Para servir de
exemplo e acabar de vez com o mito do guerreiro invencível, ele teve sua
cabeça decepada e exposta em público.
FONTE:
http://globoesporte.globo.com/bau-do-esporte/noticia/2014/04/de-garoto-propaganda-perseguidos-os-atletas-e-os-extremos-na-ditadura.html