“Echte Liebe”. A expressão em alemão pode não estar na ponta de sua
língua, mas é a melhor e mais prática referência quando se fala de
Borussia Dortmund.
Numa tradução literal, o mantra significa “amor verdadeiro” e simboliza
com perfeição o que moveu o clube em oito anos de uma falência
financeira até a finalíssima da Liga dos Campeões, a ser disputada neste
sábado, às 15h45m (de Brasília), no mítico estádio de Wembley, em
Londres, contra o rival Bayern de Munique -
a TV Globo transmite a partida ao vivo, e o GLOBOESPORTE.COM inicia a cobertura do pré-jogo ao meio-dia.
O ano era 2005. Afundado numa dívida de € 180 milhões (R$ 468 milhões),
o Borussia via como necessário mudar radicalmente todos os seus
costumes. Curiosamente, havia sido campeão europeu sete anos antes muito
por conta de uma fórmula completamente abolida em tempos atuais:
altíssimos salários aliados a contratações exorbitantes e até certo
ponto midiáticas, como os € 25 milhões pagos para tirar o brasileiro
Amoroso do Parma. O sucesso repentino em 1997 fez os dirigentes
confiarem que ali estava o caminho. Bastaria segui-lo à risca e pronto:
seria questão de tempo para se tornar um Milan ou um Real Madrid, por
exemplo.
Estrategista? O técnico Jürgen Klopp trouxe nova mentalidade ao Borussia (Foto: Divulgação / Puma)
O Borussia acreditou. Não apenas persistiu no erro, como tentou inovar.
Foi o primeiro clube da Alemanha a entrar no mercado de ações de
Frankfurt. Também jogou rios de dinheiro ao tentar criar uma própria
empresa fornecedora de material esportivo. O próximo passo seria a
quebra financeira. Com as receitas bloqueadas, o clube ainda viu o
Westfalenstadion ser hipotecado e teve de ceder seu nome numa tentativa
urgente de angariar lucros - a companhia de seguros Signal Iduna é a
detentora do “naming rights” até hoje.
Andreas Möller ergue taça da Champions de 97:
Borussia entraria em crise pouco depois (Getty)
A situação era tão delicada que o próprio Bayern tirou dos seus cofres €
2 milhões - valor considerado migalha para os bávaros, historicamente
sempre organizados. Muito embora num ato mais de cordialidade do que
propriamente com a intenção de salvar o rival, sem reações e com todo o
caixa no vermelho.
– Peguei o começo do problema do Dortmund. Infelizmente quebrou na
bolsa e teve que se desfazer de alguns jogadores, como eu, o Rosicky, o
Amoroso. Jogamos dois anos inteiros cobrando 20% a menos do que previa
no nosso contrato. Foi algo que o grupo inteiro concordou. Mas aí chegou
num momento em que para renovar não tinha mais condições e acabei
saindo para o clube conseguir algum dinheiro – contou o atacante
Ewerthon, que defendeu o Borussia entre 2001 e 2005, sagrando-se campeão
alemão em 2002 antes de se transferir para o Real Zaragoza, da Espanha.
Razão e paixão andam juntas
A reestruturação anunciou-se com a chegada de um dos grandes nomes de
todo o processo: o chefe-executivo Hans-Joachim Watzke. Apoiado na
filosofia de que um clube de futebol deve ser visto como uma empresa,
ele logo contratou a consultoria alemã Roland Berger para atuar em
quatro vertentes: o estratégico, o financeiro, a gestão e a eficiência
operacional.
Capital era mais do que necessário para tomar as primeiras medidas e,
em meados de 2006, o Borussia pegou um empréstimo de € 125 milhões junto
a um banco americano. Comprou de volta o estádio, que se transformou
num grande aliado na campanha com 100% de aproveitamento em casa na
Champions, e utilizou o restante nas divisões de base. Gastos excessivos
foram cortados, e o elenco passou até a viajar para jogos fora de casa
de ônibus. Graças a Watzke, o time ainda criou uma estratégia baseada
num estilo ofensivo, encantador. Os torcedores, apaixonados por jovens
jogadores formados no próprio time, logo se integrariam na missão de
recolocar o Dortmund no topo do país e continente.
- Michael Zorc (manager e ex-jogador do clube por 17 anos) e eu
desenvolvemos uma filosofia na qual o time deveria jogar verticalmente,
colocar o adversário permanentemente sob pressão. Em seguida foram
selecionados os jogadores - é uma tarefa mais fácil quando se tem jovens
- e encontramos em Jürgen Klopp o treinador ideal – disse Watzke.
Michael Zorc e Hans-Joachim Watzke: dirigentes fundamentais na recuperação do clube (Foto: AFP)
O Borussia chegava, então, ao seu “Echte Liebe”. Personificado em
Klopp, mantinha a razão e paixão de mãos dadas. Em sua primeira
entrevista coletiva, o ex-treinador do modesto Mainz 05 prometeu que a
partir de então o Dortmund viveria de jogos intensos e emocionantes. Os
torcedores logo se renderam ao estilo, baseado na vontade de se doar por
completo para o time.
- Tal como cada pessoa que trabalha no Borussia é um torcedor do clube,
o mesmo aconteceu no Mainz. Quando eu era jogador lá tínhamos 800
torcedores em sábados chuvosos e se alguém morresse ninguém iria
noticiar ou ir ao nosso funeral. Mas amávamos o clube e temos esse mesmo
sentimento aqui no Dortmund. É um clube muito especial, um clube de
trabalhadores – afirmou Klopp em entrevista ao jornal inglês “The
Guardian”.
Eu pegava as fotos das comemorações de gol de Messi no Barcelona. Ele
celebrava cada um como se fosse o primeiro que tivesse marcado na
carreira. É algo perfeito para mostrar ao meu time"
Jürgen Klopp
Influência - inusitada - do Barcelona de Messi
Trabalho, por sinal, não faltou ao irreverente Klopp. Se hoje o
Borussia é um time dos sonhos com uma base de jovens faminta pelo
sucesso, muito foi feito pelo treinador e seus superiores. A primeira
tarefa foi eliminar qualquer semelhança com o passado, quando o clube
era associado à arrogância por conta de seus delírios de grandeza. Klopp
utilizou métodos curiosos para impôr seus conceitos na prática.
- Eu pegava as fotos das comemorações de gol de Messi no Barcelona. Ele
celebrava cada um como se fosse o primeiro que tivesse marcado na
carreira. É algo perfeito para mostrar ao meu time. Faço isso com
frequência. Não uso vídeos porque eu não copio o estilo do Barcelona.
Mas você vê todos comemorando o gol número 5.868 como nunca fizeram
antes. Isso é o que você sempre deve sentir - até morrer. Você pode
falar de espírito. Ou pode viver tudo isso.
- Klopp montou o elenco, ele é a motivação do time, ele acredita no
Borussia. É um cara maluco positivamente, vive suas emoções como um
jovem. Definitivamente, é ele quem cria essa boa e vencedora atmosfera -
opinou Hartwig Hasselbruch, jornalista da renomada revista "Kicker".
Klopp mostrou fotos como esta, de Messi comemorando um gol pelo Barcelona, a seus jogadores (AFP)
Como apenas entrega não vence jogo, Klopp precisou recrutar o que se
transformariam em seus pupilos ao longo dos últimos anos. O paraguaio
Lucas Barrios foi o primeiro, destacando-se na conquista do Campeonato
Alemão de 2010/2011 e em clássicos contra o Bayern. Custou € 4,2 milhões
junto ao Colo Colo, do Chile, em 2009 e, diante de tantos gols, acabou
vendido ao chinês Guangzhou Evergrande por € 8,5 milhões em maio de
2012, logo depois do bicampeonato nacional e pouco antes do título da
Copa da Alemanha. Um pouco mais do que 100% de valorização.
Kagawa e Götze, os 'filhos postiços'
Kagawa é um dos melhores jogadores do mundo e agora joga 20 minutos no Manchester United - como ponta-esquerda!"
Jürgen Klopp, cornetando Alex Ferguson
Quem mais encantou o técnico alemão, no entanto, veio basicamente sem
custos. Em meados de 2010, o Borussia Dortmund acertava a contratação do
então desconhecido Shinji Kagawa, do Cerezo Osaka, pelo valor de sua
cláusula de rescisão - meros € 350 mil (cerca de R$ 900 mil na cotação
atual). Convenceu rapidamente os fãs com o seu futebol plástico e
inteligente e, merecidamente, entrou para a seleção da Bundesliga logo
em seu primeiro ano. Sua saída para o Manchester United, em 2012, viria a
machucar o coração do “paizão” Klopp. Fato potencializado quando
atestou que o camisa 10 não estava sendo de fato bem aproveitado por Sir
Alex Ferguson.
- Kagawa é um dos melhores jogadores do mundo e agora joga 20 minutos
no Manchester United - como ponta-esquerda! Realmente, eu tenho lágrimas
em meus olhos. Meia central é o lugar ideal para ele, que é um jogador
ofensivo com um dos melhores faros de gol que eu já vi. Mas para muitos
japoneses significa mais jogar no United do que no Dortmund. Choramos
por 20 minutos, um no ombro do outro, quando ele saiu – contou.
Mais recentemente, Klopp viveu caso semelhante com Mario Götze, o novo
herdeiro da camisa 10 - mas que também já está de malas prontas, desta
vez para o Bayern de Munique, a quem se referiu como “vilão dos filmes
de James Bond” por contratar seus melhores atletas. O anúncio da
transação foi feito no fim de abril, ainda com a temporada em jogo, e
abalou as estruturas no Borussia.
- Foi como um ataque do coração. Aconteceu um dia depois da vitória
contra o Málaga (nas quartas de final). Tive um dia para comemorar e aí
alguém pensou: “chega, volte para o seu lugar no chão”. No nosso CT o
Michael Zorc (manager do clube) andou como se alguém tivesse morrido.
Ele disse: “eu tenho que te falar uma coisa...” (...). Eu não consegui
dormir naquela noite, essa é a verdade. Liguei para seis ou sete
jogadores que sabia que ficariam afetados. Eles pensaram que não eram
bons o bastante e queriam vencer juntos. Essa é o motivo pelo qual a
notícia machucou muito eles. Mas o Bayern disse ao Mario: agora ou
nunca. Eu falei para ele que não era assim, que eles viriam em dois,
três anos. Mas ele é um menino de 20 anos e pensou que precisava ir. Eu
sei o quão difícil será achar alguém para substituí-lo no próximo ano,
mas vamos jogar diferente. Apenas leva tempo – recordou.
Kagawa e Götze encantaram Jürgen Klopp: técnico criticou pouca utilização do japonês no United (Foto: AFP)
'Queremos jogar o tipo de futebol que as pessoas se lembrem'
Götze praticamente já faz parte do passado para o Borussia. Descartado
da final por não se recuperar de uma lesão muscular na coxa direita
sofrida na semifinal contra o Real Madrid - ao menos a justificativa é
essa -, ele verá os holofotes se voltarem ao polonês Robert Lewandowski.
Com dez gols na edição da Champions (quatro deles marcados num só jogo
contra o Real Madrid), o atacante é outro grande exemplo de que este
Borussia deu certo: foi contratado por € 4,5 milhões em 2010 e, se
deixar o clube neste mercado, não será por menos de € 20 milhões. Para o
pesadelo do treinador, o Bayern é o favorito a contratá-lo.
Apesar de ter 1,84m e reunir os trejeitos de um centroavante clássico,
Lewandowski encaixou-se perfeitamente no esquema que Klopp propôs: o
"gegenpressing", de explicação simples, mas funcionamento complexo para
quem começa do zero. Realizar a transição rápida a partir do momento em
que rouba a bola, seja no campo defensivo ou ofensivo, como no gol
marcado pelo próprio polonês diante do Málaga, nas quartas de final,
depois de receber passe açucarado de Reus.
Com os quatro gols sobre o Real, Lewandowski
assumiu a vice-artilharia da Champions (Reuters)
- Dortmund é um lugar que as pessoas exigem que o time deva jogar com
as características mais próximas ao meu coração: com muito sentimento
envolvido e intensidade até o último minuto. Queremos jogar o tipo de
futebol que as pessoas se lembrem - ressaltou Klopp.
Os jogadores compraram este conceito e fizeram do Borussia hoje um
modelo distinto de futebol. Talvez até um exemplo, ainda que soe
familiar pelas influências da ofensividade do Barcelona e,
principalmente, do esquema defensivo do Milan de Arrigo Sacchi. Klopp
aprimorou sua tese desde os tempos em que era comandado por Wolfgang
Frank no Mainz 05.
- Apesar de estarmos na Segunda Divisão fomos o primeiro time alemão a
jogar no 4-4-2 sem um líbero. Assistimos a um vídeo chato 500 vezes do
Sacchi fazendo exercícios de defesa sem a bola com Ladini, Baresi e
Albertini. Estávamos acostumados a pensar que se os outros jogadores
eram melhores, você deveria perder. Depois disso aprendemos que qualquer
coisa é possível. Você pode bater equipes melhores usando táticas -
afirmou o treinador, que recebeu alguns telefonemas de José Mourinho
depois de conseguir anular Xabi Alonso e, consequentemente, Cristiano
Ronaldo nas semifinais da Champions.
Robô-jogador e uma torcida apaixonada
A tecnologia também entra em ação no Borussia quando o assunto é o
aperfeiçoamento. Um dos (nem tão) segredos dos treinamentos do time é o
auxílio do "Footbonaut", um mini-campo robótico de 14m² com oito canhões
que lançam bolas para os jogadores testarem sua precisão nos passes.
- Parece que você está cercado de dez colegas de time que estão ali só
para te dar assistências - disse o meia Mustafa Amini, uma das
"cobaias".
Vem das arquibancadas outro grande fator que pesou na reconstrução dos
aurinegros. A atuação da "Muralha Amarela", setor no Signal Iduna Park
atrás de um dos gols que foi preservado pela sua importância histórica,
repercutiu pelo continente. Para os europeus mais modernos, era difícil
acreditar que 25 mil pessoas assisitiam a todos os jogos de pé, pulando e
interagindo - como no mosaico em 3D feito contra o Málaga. Ou que
conseguiam manter uma média de 80.551 torcedores no último Campeonato
Alemão - a melhor do planeta.
Muitos deles não poderão estar em Londres pelo alto custo da viagem - e
também dos ingressos. Essa já era uma das preocupações de como ajudar a
incentivar o time nos momentos mais difíceis do jogo, mas a Uefa tratou
de complicar a situação dos aurinegros e vetou qualquer mosaico em
Wembley por questões de segurança.
- É muito triste para nossos torcedores. No meio das arquibancadas, há a
seção VIP. Não dá para fazer as coreografias, porque é preciso todo o
espaço - lamentou Daniel Lörcher, secretário do clube.
Há quem acredite, porém, que o torcedor dará o seu jeito ao fazer da
final um espetáculo. Para a imprensa alemã, os fãs do Borussia são em
geral mais preocupados com o que se passa nas arquibancadas, ao
contrário da torcida do Bayern, um público com perfil mais observador.
Mas esta, é claro, não é a única diferença entre os dois finalistas.
Felipe Santana é abraçado por Klopp: técnico é tão fanático quanto a torcida (Foto: Reuters)
Faturamento do Bayern é duas vezes maior
O contexto coloca em confronto dois estilos de clubes que chegaram até o
topo com méritos. Segundo levantamento feito pela empresa de
consultoria "Deloitte", o Borussia Dortmund é hoje, oito anos depois de
sua falência, o 11º clube mais rico do mundo, com € 189 milhões gerados
em 2012. A presença na Liga dos Campeões trouxe uma arrecadação de €
28,3 milhões ao clube, que possibilitará realizar novos acordos
comerciais - ainda a maior fatia da pizza, com € 97,3 milhões de
faturamento (51%).
O Bayern, no entanto, arrecadou quase o dobro. É o quarto clube na
lista - atrás do Real Madrid, Barcelona e Manchester United -, com € 368
milhões de receitas na temporada 2011/2012 (55% deste montante com as
dez empresas que o patrocinam). O que possibilitou, por exemplo, sequer
consultar o Borussia para comprar a revelação Mario Götze.
- É um pouco parecido com o que os chineses fazem na economia ou na
indústria. Olha os outros e copia o que eles fazem. Pega o mesmo
caminho, só que com mais dinheiro e outros jogadores. E, naquele
momento, você vai ser o melhor de novo - alfinetou Klopp, sobre as
semelhanças entre o Bayern e o Borussia quanto ao estilo de jogo.
Curiosamente, a frase veio um mês antes de tomar conhecimento da
aquisição de Götze.
Devoto de sua filosofia, o Borussia tem plena consciência de que poderá
perder novos destaques para outros centros ou até mesmo ver o filme se
repetir com o Bayern. O que importa, de fato, é a fidelidade ao “Echte
Liebe”, refletido nas palavras de Hans-Joachim Watzke. E nem o título da
Liga dos Campeões com todos os seus bônus mudaria esse panorama.
- Nesse clube, apenas gastamos o dinheiro que ganhamos. Esse é o nosso
paradigma, e é assim que continuará. Escolhemos uma rota sustentável e
mesmo se vencermos a Champions não nos transformaremos - encerrou.
FONTE:
http://globoesporte.globo.com/futebol/liga-dos-campeoes/noticia/2013/05/da-falencia-final-europeia-o-amor-verdadeiro-que-move-o-borussia.html