PHA: Eu vou conversar agora com Carlos Gabas, que foi Ministro da Previdência duas vezes no Governo Lula e uma vez no Governo Dilma. Ministro, qual é o impacto dessa medida da Reforma da Previdência apresentada pelo Governo e que faz com que só receba a Previdência integral quem completar 49 anos de contribuição?
Carlos Gabas: O impacto é muito pesado, muito forte sobre os trabalhadores, especialmente aqueles mais pobres, que têm menor qualificação, menor salário e que começam muito cedo no mercado de trabalho. A transição que foi colocada é muito dura. Na verdade, não teve nenhuma discussão com a sociedade. Ela abrange de uma maneira muito ampla o universo previdenciário. O que tem que ficar bem claro é que nós não estamos falando de uma parcela rica da população, mas de pessoas pobres. A Previdência paga salários de até R$ 5.189. Eu não posso dizer que uma família que tem essa renda é rica. E, na sua grande maioria, mais de dois terços dos benefícios da Previdência, dos mais de 34 milhões de benefícios, são de um salário mínimo: então, estamos falando de gente pobre! Isso significa que, ao fazer uma modificação dura como essa, você está penalizando a parte mais pobre da população.
PHA: Você podia dar uma ideia do impacto das regras de transição ? Lembrando que a proposta apresentada institui como regra de transição o pedágio de 50% sobre o tempo de contribuição para quem está perto de se aposentar, – homens acima de 50 anos e mulheres acima de 45 –, o que põe fim à fórmula 85/95.
CG: Nós trabalhávamos, primeiro, com uma compreensão de que nós estamos lidando com gente pobre. Segundo, que é uma política social que distribui renda, que trabalha com o bem-estar da sociedade. Então, qualquer mudança de regra é sensível para as pessoas. A transição de uma regra para outra deve ser suave. Vamos pegar uma trabalhadora de 44 anos que já tinha 29 de contribuição - faltava um para ela se aposentar: ela vai se aposentar agora só aos 65 anos de idade! É uma virada de mesa muito grande para cima de inúmeros trabalhadores.
PHA: Vamos falar, então, da questão da idade mínima, que pretende institui 65 anos para todos darem entrada no pedido de aposentadoria e, além disso, o trabalhador tem de ter, nessa idade, ao menos 25 anos de contribuição. Qual o impacto disso?
CG: Primeiro, ele [o impacto] é muito mais forte para as mulheres. A mulher, por todo o conjunto de situações e dificuldades que ela enfrenta na sociedade - discriminação no trabalho, na renda, em casa, parcela de responsabilidade muito maior na criação dos filhos, enfim, uma dupla, tripla jornada... Por isso é que a Constituição previa um tratamento diferenciado para as mulheres. A regra proposta trata todo mundo igual. E mais: ela impõe uma idade mínima de 65 anos que não é fixa: cada vez que o IBGE detectar o aumento da expectativa de sobrevida, há um artigo na PEC que obriga que essa idade suba de acordo com essa sobrevida. Só para você ter uma ideia: nos últimos 10 anos, a expectativa de sobrevida cresceu 4,6 anos. Se isso estivesse vigente lá atrás, a idade mínima já seria quase 70 anos.
PHA: Vamos tocar agora num outro ponto que, aparentemente, chocou até o Paulinho da Força, que, como se sabe, trabalhou entusiasmadamente pelo Golpe: é a questão da mudança no cálculo. O valor do benefício será determinado a partir do equivalente a 51% do valor médio das 80 remunerações mais elevadas registradas desde 1994, acrescido de 1 ponto percentual para cada ano de contribuição. Isso, na sua opinião, vai significar que tipo de correção do valor?
CG: Há consequências aí muito nefastas para o trabalhador! Você estabelece que o trabalhador, para se aposentar, tem que ter 65 anos de idade e, no mínimo, 25 de contribuição, tanto homem, quanto mulher. Só que, no cálculo, eu não dou 100% do salário de benefício. Você pega a média das 80 maiores contribuições e dá um valor, mas eu não dou para ele 100% desse valor. Eu dou 51%. E, depois, vou acrescer 1% para cada ano trabalhado. Isso significa dizer que o trabalhador, para se aposentar com seu salário integral, tem que ter 65 anos de idade e mais 49 de contribuição. Isso é muito cruel! Então, o que vai acontecer: nós trabalhamos em nossos Governos - tanto do Presidente Lula, quanto da Presidenta Dilma - para colocar as nossas crianças na escola. Queríamos o jovem estudando para que tivesse oportunidades de trabalho, com uma formação melhor. Foi um trabalho intenso para evitar que crianças e adolescentes entrassem no mercado de trabalho - ou jovens com uma idade de 15, 16 anos. O que vai acontecer é que esse esforço todo - de Educação, de transformação pela qualificação - vai por água abaixo. Imagine: o cidadão, para ter direito à aposentadoria integral, tem que ter 49 anos de contribuição. Vai ter que começar com 15, 16! Do contrário, não se aposenta nunca. Nunca vai ter o seu benefício integral.
PHA: Ou seja, nós vamos estimular o trabalho infantil?
CG: Ele não está estimulando, está quase obrigando o trabalho infantil. Porque, se não for isso, a pessoa nunca vai se aposentar com salário integral. É por isso que nós tínhamos uma regra que levava em conta o tempo de contribuição somado à idade. Quanto mais tempo de contribuição, quanto mais cedo ele entrou no mercado de trabalho, ele poderia reduzir a idade. Isso protege o mais pobre, o menos qualificado, o de menores salários. Lembrando que o trabalhador, hoje, que consegue manter um emprego a vida toda, de estabilidade, é normalmente com os trabalhos mais qualificados, com melhor renda, com organização sindical... Então, esses têm uma certa estabilidade. São os melhores empregos. Os piores empregos são aqueles que o cara perde a cada ano, a cada dois anos, a cada seis meses, e fica desempregado. Na média, o DIEESE calculou que um trabalhador, durante a vida toda, fica em média sete anos desempregado. Por isso, a grande maioria dos trabalhadores se aposenta por idade.
PHA: Outra questão que me chama atenção é: o trabalhador rural, que hoje apenas comprova atividade no campo para requerer o benefício aos 60 anos (55 para a mulher), terá de contribuir ao INSS por 25 anos e cumprir a idade mínima de 65. Qual o impacto disso?
CG: Vale dizer, sem exageros, que isso é o fim da aposentadoria do homem do campo. Segurado especial, que é esse atingido pela medida... Quem é o segurado especial? É o pequeno agricultor, que trabalha em regime de economia familiar; o homem, a mulher, os filhos, às vezes um parente que mora junto, enfim, são pequenas propriedades. Essas pequenas propriedades são responsáveis pela produção de mais de 70% dos alimentos que chegam à nossa mesa. As pessoas pensam que o nosso alimento vem latifúndio, mas não vem. O latifúndio produz as commodities, para exportação. O nosso alimento vem do pequeno agricultor. Como é a regra desse pequeno agricultor hoje? Ele contribui com a Previdência, porque quando comercializa a produção, é obrigado a recolher 2,6% do valor dessa comercialização; acontece que, na maioria das vezes, ele não vende direto. A produção dele é comprada por um atravessador. Aí, esse atravessador paga um tributo - que nós chamamos de substituição tributária - à Previdência Social. Então, essa contribuição existe. E ele se aposentava - o homem, aos 60 anos de idade, a mulher, aos 55. Quem conhece o campo como eu, que sou caipira, sabe que as crianças com 10, 12 anos já estão trabalhando. Não é por maldade dos pais; é uma rotina que existe no campo. Vamos colocar que comece aos 15: ainda assim, se ela se aposentar aos 65, vai trabalhar, no mínimo, 50 anos. Sabe o que são 50 anos de sol a sol com uma enxada na mão? Quem fez a regra não conhece o que é o trabalho do campo, não sabe a responsabilidade que ele tem com a nossa alimentação! Esse camponês - e estamos falando do camponês dos rincões do País -, vai ter que parar um dia da sua produção, fazer uma guia de recolhimento para a Previdência e ir ao banco pagar. Você acredita que ele vai fazer isso? Não vai fazer isso! Essa regra inviabiliza a proteção previdenciária do homem do campo. Ele vai estar sem Previdência Social. É uma das mais crueis que têm a PEC.
PHA: Uma contribuição que, a bem da verdade se diga, foi criada pelos regimes militares.
CG: Nós tivemos lá no regime militar a criação de uma proteção que nós, hoje, pretensamente numa Democracia, estamos acabando. É um retrocesso enorme e nós não podemos deixar que isso aconteça.
PHA: Na pensão por morte, a regra estabelece que os proventos deixarão de ser integral e vinculados ao reajuste do salário mínimo. A aposentadoria por invalidez passará a ser proporcional. Qual o efeito disso?
CG: Um casal de velhinhos. O marido é aposentado e ganha um salário mínimo - está nesse universo de mais de dois terços dos nossos aposentados. Se ele morrer, a velhinha vai receber metade de um salário mínimo. Essa regra reduz a renda de milhões e milhões de trabalhadores.
PHA: Mas vai mesmo reduzir à metade?
CG: Vai receber a metade. 50%. E tem mais um ponto, que é o benefício de prestação continuada para idoso, carente e deficiente carente*. Eles mexem também nesse benefício, desvinculam do salário mínimo e atribuem à Lei a fixação de um valor. Então, ele vai poder receber meio salário mínimo, ou um terço de salário mínimo. Eles vão fixar um valor. Não vai ter mais vinculação com o salário mínimo, e vai piorar muito a vida dos deficientes carentes e dos idosos carentes. E sobre o conjunto dos aposentados e pensionistas, ainda, tem uma outra medida que, essa sim, vai reduzir o salário para todo mundo. Todos os aposentados e pensionistas passarão a pagar Previdência. Aposentado vai pagar contribuição previdenciária, também. Hoje não paga. Então, ele vai ter uma redução imediata no valor de seu benefício - para todo o conjunto dos 34 milhões de beneficiários da Previdência.
PHA: Qual é a diferença central que você mencionaria entre o que vocês estavam, no governo Dilma, planejando para submeter aos trabalhadores em Reforma da Previdência, diante da expectativa de vida do brasileiro, e essa reforma que o Temer apresentou?
CG: Você acompanhou, ainda no governo do presidente Lula, nós instituímos a primeira versão do Fórum Nacional de Previdência. E, em maio de 2015, a presidenta Dilma editou um decreto, preocupada com a sustentabilidade da Previdência. E todos nós temos essa preocupação. Eu já disse isso várias vezes: nós temos um desafio muito grande, que é a transição demográfica. As pessoas estão vivendo mais e estão envelhecendo. Então, nós precisamos, sim, atualizar nossas regras. Mas, como eu disse, a Previdência é uma política tão sensível, tão importante na vida dos trabalhadores, que nenhum governo tem o direito de mandar um pacote de medidas - nesse caso, um "pacote de maldades" - sem discutir com a sociedade. É possível você encontrar soluções que não retirem direitos. Nós vínhamos discutindo, por exemplo, as dívidas dos empresários com a Previdência Social. Ontem, a PGFN (Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional) soltou um estudo que diz que existem R$ 1,8 trilhão de créditos para serem cobrados de 13 mil pessoas físicas e jurídicas. Treze mil - a maioria pessoas jurídicas - devem quase dois trilhões de reais para o Governo. Por que não se cobra essa dívida, ao invés de se retirar direitos dos trabalhadores? Nós estávamos discutindo o pacote de medidas de acelerar cobranças nesses créditos.
PH: Claro.
CG: A PGFN tem que ter melhores condições, a lei tem que ser mudada, para que a gente consiga cobrar esses créditos. Porque hoje da forma como é, a recuperação de crédito é muito baixa. Pra você ter uma ideia, o índice de recuperação de crédito do nosso mecanismo de cobrança é 0,7%, é muito baixo. Então nós temos que cobrar quem deve e não tirar de quem tem o direito confiscado a duras penas, por isso que a presidenta convocou as centrais sindicais, os empregadores, aposentados e esse conjunto de reitores que tem responsabilidade com a presidência. Então nós vinhamos debatendo, não tínhamos formulado nenhuma proposta concreta, vinhamos fazendo análise dos quadros e nós paramos o golpe que deu quando estávamos discutindo o pacote de cobrança de créditos das empresas devedoras da previdência social.
* O Benefício da Prestação Continuada da Lei Orgânica da Assistência Social (BPC/LOAS) é, hoje, a garantia de um salário mínimo mensal ao idoso acima de 65 anos ou ao cidadão com deficiência física, mental, intelectual ou sensorial de longo prazo, que o impossibilite de participar de forma plena e efetiva na sociedade, em igualdade de condições com as demais pessoas.
Gabas: 2/3 recebem um salário mínimo! São "os vagabundos" do FHC