FONTE:
http://jornalggn.com.br/noticia/o-problema-do-abuso-de-prerrogativas-pelo-supremo-tribunal-federal-por-leonardo-avritzeer
LEONARDO AVRITZER
O problema do abuso de prerrogativas pelo Supremo Tribunal Federal
por Leonardo Avritzer
Toda Suprema Corte enfrenta em algum momento um problema bastante simples que os ministros do S.T.F. só descobriram existir durante os últimos dias: a capacidade de fazer cumprir as suas decisões. Nenhum Supremo Tribunal tem poder de coerção para fazer com que suas decisões sejam cumpridas. Para que isso aconteça eles contam com um único instrumento, a legitimidade judicial que pode ou não existir. Para que ela exista é necessário que os Supremos Tribunais entendam os limites da sua capacidade de decisão, que é aquele estabelecido pela Constituição e pela doutrina da divisão entre os poderes. A Suprema Corte mais antiga do mundo, a Norte Americana só consegue fazer com que as suas decisões sejam cumpridas por que ela entendeu isso há mais de duzentos anos atrás em um episódio que vale a pena recapitular.
A doutrina da revisão judicial ou da declaração de inconstitucionalidade não está na Constituição dos Estados Unidos e foi estabelecida pela própria Suprema Corte em um caso de 1803 no qual executivo e poder judicial se enfrentaram, o famoso caso Marbury versus Madison. Esse caso poderia ter provocado uma crise constitucional uma vez que John Adams, presidente e federalista, se irritou com a vitória de Jefferson nas eleições presidenciais e armou o circo para uma crise constitucional ao nomear juízes federalistas para todos os tribunais superiores. Jefferson não cumpriu algumas dessas nomeações e um dos supostos “prejudicados” levou o caso para a jovem Suprema Corte dos Estados Unidos.
A decisão de 1803 é fundamental porque no mesmo momento em que ela afirma o poder da Corte de estabelecer a não constitucionalidade, ela considera qualquer aumento das prerrogativas da Suprema Corte inconstitucional. No seu voto o presidente da Suprema Corte afirmou que o pleito de Marbury era justo, mas ele nada podia fazer porque o estatuto que previa a sua nomeação era nulo. E era nulo por um motivo, ele estendia as prerrogativas da Constituição dos Estados Unidos em relação à jurisdição da Suprema Corte (que está na seção 2 do artigo III). Portanto, o elemento perfeito da decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos é que ela se afirma negando uma lei ou estatuto que aumentava o seu poder em relação ao Congresso e ao poder executivo. Ou seja, o mesmo ato que deu poder a Suprema Corte nos Estados Unidos limitou o seu poder em relação as instituições constituídas pela soberania popular o que não quer dizer que conflitos entre o judiciário e o executivo não tenham surgido durante outros períodos.
Visto sobre essa ótica percebemos o absurdo que foi o comportamento do STF nos últimos anos no quais o Supremo claramente deixou de lado a ideia de divisão e prerrogativas entre os poderes e caminhou na direção do estabelecimento da ideia da noção de supremacia judicial. Todas as decisões recentes do Supremo em relação aos poderes eleitos apontam na direção do aumento das suas prerrogativas para além do texto constitucional.
Podemos apontar os momentos mais importantes desse processo legitimado - se é possível usar este termo - pelos problemas do nosso sistema político: a derrubada da clausula de barreira, a autorização de prisão em flagrante de um senador por causa de uma gravação onde ele disse o que iria fazer, a prisão de um banqueiro contra o qual nenhuma prova foi produzida, a reversão do texto constitucional sobre prisão preventiva a despeito do capítulo da constituição sobre garantias individuais e agora a remoção do presidente do Senado por liminar de um ministro.
Ainda que o plenário do Supremo tenha revogado esta autorização na sessão desta quarta feira, todas essas decisões apontam em uma direção: o STF deixou de se pautar pelo texto constitucional e nesse momento representa a vontade política de onze indivíduos. Não parece surpreendente que a decisão do Supremo tenha sido questionada pela mesa do Senado. Se nos pautarmos pela história constitucional dos Estados Unidos toda ação da suprema corte na direção de aumentar as suas prerrogativas em relação ao Congresso ou de aumentar os seus poderes para além do texto constitucional receberam respostas do Congresso ou do poder executivo.
A resposta da mesa do Senado aponta na mesma direção, a de questionar a validade ou a legitimidade da decisão do STF. O STF provavelmente sairá arranhado desse episódio por mais que um certo bom senso haja prevalecido no momento final. Se o desastre maior foi evitado, o de um enfrentamento aberto entre poderes da república, é importante que os ministros do STF não se enganem. Toda sua legitimidade se assenta no texto constitucional e no respeito à divisão e o equilíbrio entre os poderes. Fora isso, eles são apenas 11 indivíduos.
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