Lenda do futebol, francês Just Fontaine
celebra carreira, relembra semifinal contra o Brasil em 58 e fala como
seguiu no futebol após a aposentadoria
Por Igor Castello Branco
Rio de Janeiro
Rua Franc, 13. A casa no centro de Toulouse, no Sul da França, é
simples e confortável, e pertence a um senhor que tem presença
obrigatória em toda publicação sobre a história da Copa do Mundo. Em
cima da lareira, uma Chuteira de Ouro, honraria pela façanha que nenhum
outro jogador conseguiu superar até hoje. É o cartão de visitas de Just
Fontaine cujo número da residência jamais será sinônimo de azar. Pelo
contrário. É uma predileção e um velho companheiro que garantiu sua
consagração: o maior artilheiro de uma Copa do Mundo. Mais de meio
século depois de marcar 13 gols na edição de 1958, na Suécia, ele ainda é
o detentor de um dos recordes mais antigos do futebol. Aquele foi o
único Mundial disputado pelo lendário atacante da seleção francesa, que
às vésperas de completar 80 anos (no domingo) revelou ao SporTV que esteve bem perto de defender o Botafogo e relembrou o capítulo mais nobre de sua carreira - marcada por muitos gols, porém encerrada de forma triste e precoce.
- São 80 anos. Ainda me sinto um garoto. Tudo vai muito bem. E lembro
de tudo como se fosse ontem. Em 1959, um ano depois de eu ter vivido meu
auge na Copa da Suécia, o Botafogo ligou para o presidente do Reims
porque queria me contratar. A transferência, infelizmente, não
aconteceu porque Kopa (um dos grandes craques da equipe) já havia saído
alguns anos antes para Real Madrid. E o presidente não queria que outro
atacante da equipe saísse. Tanto que eu tinha um contrato de três anos,
assinado. Acho que o dinheiro era pouco para garantir a transferência,
não sei. Nesse período de “indecisão”, já em 1960, quebrei minha perna
(dupla fratura na perna direita) e não pude seguir com a minha carreira
depois. Eu gostaria muito de ter jogado no Brasil porque adoro o futebol
brasileiro - afirmou.
As rugas no rosto denunciam a passagem do tempo. São 80 anos bem
vividos, maturados entre a agitação de Toulouse e a tranquilidade
paradisíaca da Côte d'Azur, balneário francês, onde se refugia para
lembrar dos bons momentos que viveu no futebol. Just Fontaine
envelheceu, mas não para de sorrir, carrega a alegria característica dos
atacantes. É eterno. Há mais de 50 anos, a cada edição de Copa do
Mundo, o nome de Justo, como era carinhosamente chamado pelos franceses,
sempre é mencionado. Ágil e veloz, ele era um finalizador nato, bom
cabeceador e surpreendentemente com os dois pés.
Na Copa da Suécia, marcada especialmente pelo surgimento de Pelé,
surpreendeu o mundo, vivendo o auge de uma fase que havia começado dois
anos antes na mítica equipe do Reims da década de 1950. E
foi por suas atuações históricas com a camisa da seleção francesa, ao
lado de Raymond Kopa (o maior craque francês da época), Roger Piantoni e
cia., que o goleador ridicularizou as probabilidades e afrontou as
expectativas negativas de um país que tentava sustentar um colonialismo
fracassado na África. Assim edificou um mito, assim ascendeu ao restrito
mundo dos imortais
.
- Aquele foi o mais belo dos sonhos. Bom... Eu achei, por muito tempo,
que alguém fosse capaz de bater meu recorde, mas já se passaram 55 anos e
até agora nada. Atualmente, eu começo a duvidar dessa possibilidade. É
muito difícil. Naquela época, o gol era a nossa maior riqueza, mas
sinceramente eu não estava pensando e nem estava focado na artilharia.
Aconteceu naturalmente. Lembro-me de todos os que marquei, desde o
primeiro ao último jogo. Aliás, todos foram muito bonitos. Mas até hoje
guardo um carinho especial pelo gol que fiz contra o Brasil (risos). Até
enfrentar a gente na semifinal, Pelé e companhia ainda não tinham
sofrido nenhum. E eu fui o responsável por vazar a meta canarinha. A
imprensa falou muito daquele gol - afirmou, em entrevista por telefone.
Just Fontaine fala com o SporTV.com por telefone direto de Toulouse (Foto: Arquivo / GLOBOESPORTE.COM)
Do Mundial de 58 exala nostalgia. Mas tudo começou de forma meio desacreditada, sem grandes pretensões, lembra Fontaine.
- A equipe que estreou na Copa do Mundo, contra o Paraguai, não tinha
feito um jogo junta. Eu e o Kopa, por exemplo, nunca tínhamos estado
lado a lado antes do Mundial. Por isso, nosso grupo foi para Suécia três
semanas antes do início do torneio para se preparar melhor, realizando
alguns amistosos lá. Ninguém acreditava na gente. Nem os torcedores, nem
a imprensa e nem a própria federação, que só fez uniformes para os três
primeiros jogos da competição. Achavam que seríamos eliminados na
primeira fase. Só a gente (os jogadores) acreditava. Montamos uma boa
equipe, muito ofensiva.
Curiosamente, assim como alguns dos maiores jogadores da história da
seleção francesa, Just Fontaine tem sangue estrangeiro. Natural de
Marrakech, no Marrocos, de pai francês e mãe espanhola, ele iniciou sua
carreira profissional aos 17 anos no USM Casablanca em 1950. Nas duas
temporadas seguintes, o atacante ajudou o time marroquino a faturar o
bicampeonato nacional e a ganhar a Copa dos Campeões do Norte da África
(extinto torneio entre os campeões das colônias francesas - Marrocos,
Argélia e Tunísia), chamando a atenção de clubes europeus.
Em julho de 1953, um mês antes de completar 20 anos, rumou para a
França e foi jogar pelo Nice, clube pelo qual foi campeão da Copa da
França (1953/54) e do Campeonato Francês (1955/56). Em 1956, assinou com
o clube mais poderoso do futebol francês da época, o Reims, que havia
perdido Raymond Kopa para o Real Madrid. Na equipe vermelha e branca,
desfilou todo seu talento, mostrou instinto de goleador e foi peça
fundamental na conquista de três campeonatos franceses (1957/58, 1959/60
e 1961/62) e uma Copa da França (1957/58). Além disso, chegou a ser
vice-campeão da Liga dos Campeões 1958/59, sendo o artilheiro do torneio
com dez gols.
Just jogou no poderoso Reims da década de 50 (Foto: Arquivo / GLOBOESPORTE.COM)
- Quando eu era jovem no Marrocos, gostava muito de jogar basquete
(pela manhã) e futebol (à tarde) aos domingos. Nasci em Marrakech, mas
mudei para Casablanca, a maior cidade do Marrocos, onde estudei no Liceu
Lyautey. Nesse período mais ou menos, o USM Casablanca, um clube local,
se propôs a pagar meus estudos, e acabei virando jogador. No meu país
natal, ganhei títulos importantes, e um empresário quis me levar para a
França por causa das boas atuações na Copa dos Campeões do Norte da
África. Aí tive uma discussão muito dura com o Casablanca para comprar o
meu passe e acabei conseguindo. Na França, fiz muito sucesso no Nice e
depois assinei com o Reims, que era a base daquela seleção francesa de
1958. Nesses dois clubes, consegui me aprimorar tecnicamente e virei um
grande goleador.
Embora nas Eliminatórias para a Copa do Mundo de 1958 não tenha sido
utilizado, Just Fontaine foi convocado para o Mundial por Albert
Batteaux, que se dividia na função de técnico do Reims e da seleção
francesa. Às vésperas do torneio, um fato mudou para sempre sua
trajetória na seleção francesa, e para melhor. Atacante titular dos
Bleus nos jogos de qualificação, René Bliard se machucou e não pôde ir
para a Suécia. E o escolhido para substituir o craque? Um atacante de
instinto matador e habilidoso que naquele instante começaria a maior
aventura de sua vida. O nome dele: Just Fontaine, de 24 anos, artilheiro
do Campeonato Francês de 1957/1958, com 34 gols em 26 jogos.
A partir deste episódio, a carreira de Just, embora de curta duração em
âmbito internacional, tornou-se lendária. Pouco mais de 55 anos depois
de fazer história na Suécia, ele ainda guarda doces lembranças do tempo
que colocou seu nome na galeria dos notáveis e revela seu “segredo” para
ter alcançado um ótimo desempenho na Copa de 58.
- Quando chegamos ao aeroporto de Estocolmo, na Suécia, o treinador
disse que queria falar comigo e avisou que eu seria o titular, ocuparia a
vaga de centroavante do René Bliard, que, inclusive, era meu
companheiro no Reims. Fiquei bem entusiasmado. Eu tinha muita confiança
no que podia fazer em campo, mas esse episódio acabou sendo muito
importante para minha carreira. Foi formidável. Agora... acho que para
alcançar aquele recorde na Copa do Mundo, minha grande vantagem foi ter
operado o menisco em dezembro de 1957. Como voltei a jogar apenas em
fevereiro do ano seguinte, tive um período de repouso que me permitiu
estar mais inteiro do que os outros (atletas) em junho.
“Fresco” por causa de uma pausa de inverno não planejada para uma
operação no joelho, o camisa 17 foi o artilheiro da Copa do Mundo de
1958: três gols na goleada de 7 a 3 sobre o Paraguai; dois na derrota de
3 a 2 para a Iugoslávia; um na vitória de 2 a 1 sobre a Escócia; dois
nos 4 a 0 frente à Irlanda do Norte; um na derrota para o Brasil por 5 a
2 e quatro contra a Alemanha na partida que decidiu o terceiro lugar,
vencida pelos franceses por 6 a 3. Ao todo, foram 13 gols – sete de
perna direita, cinco de canhota e um de cabeça – em seis jogos. Uma
marca sublime.
Como recompensa pela façanha, um jornal sueco deu um fuzil para
Fontaine, simbolizando o título de artilheiro, já que naquela época
ainda não havia um prêmio formal para destacar tal feito (a chuteira de
ouro exposta em sua sala foi conseguida em 1998, graças a uma
solicitação de Gary Lineker, artilheiro do Mundial de 1986, junto à
Adidas, patrocinadora do prêmio). O número 13 tantas vezes associado aos
dissabores impostos pelo azar foi neste caso motivo de glorificação
para o atacante do Reims.
- Com a bola nos pés, eu só tinha olhos para o gol. Essa era minha
maior virtude. Um fato curioso que aconteceu naquela Copa foi que bem
perto da estreia eu fiquei sem uma de minhas chuteiras. E, na época, não
tínhamos patrocinador. O que fazer? Felizmente, o Stéphane Bruey, que
era reserva, também calçava 41 e me emprestou as dele. Quando acabou o
campeonato, devolvi o par. Acho engraçado pensar que alguns dos meus
gols foram inspirados pela soma de dois espíritos dentro do mesmo
sapato. E detalhe: eu ainda poderia ter feito mais um gol numa cobrança
de pênalti contra a Alemanha no último jogo, mas o Kopa tinha sido o
escolhido para bater e não me ocorreu de pedir para cobrar.
Em cima da lareira, Chuteira de Ouro é o cartão de visitas de Fontaine (Foto: Arquivo / GLOBOESPORTE.COM)
Para se ter uma ideia da grandeza deste feito, basta lembrar que
apenas Ronaldo (15 gols), Gerd Müller (14) e Miroslav Klose (14)
estufaram as redes mais vezes do que o francês, com a diferença de que
cada um disputou duas ou mais edições do torneio. Logo atrás de
Fontaine, aparece Pelé, que anotou 12 gols, com quatro participações na
competição (1958, 1962, 1966 e 1970).
Naquela época, apesar da magnitude do feito, o ex-jogador não
dimensionou o tamanho de sua proeza, mas hoje atribui grande parte de
seus gols ao fluxo constante de passes precisos de Raymond Kopa, eleito o
melhor jogador do torneio, e ao futebol vistoso desempenhado pela
França naquela Copa.
- Não tínhamos relação pessoal, mas tínhamos uma química muito boa em
campo. Além disso, a equipe praticava um futebol ofensivo. Em seis
partidas, chegamos a fazer 23 gols. Eu e o Kopa, inclusive, ficamos no
mesmo quarto na concentração, mas nos víamos pouco. Tínhamos ritmos de
vida completamente diferentes. Eu acordava e dormia cedo, ele dormia
tarde e acordava tarde. Mas, no campo, nos entendíamos sem trocar uma
palavra. Ele driblava, levantava a cabeça e a bola vinha na medida.
Parecíamos almas gêmeas.
Ao longo da campanha, Just Fontaine brilhou, colecionou muitos gols,
partidas inesquecíveis, amigos, vitórias, mas teve de amargar a decepção
da semifinal perdida para o Brasil (por 5 a 2). O tom de voz tranquilo
muda ao falar sobre o revés contra o esquadrão canarinho, sua maior
mágoa.
- A vitória contra o Paraguai nos deu muita confiança. Quando fomos
enfrentar o Brasil, não podíamos ficar só olhando. O Brasil de 1958 foi a
equipe mais completa que já vi. Era o time mais forte em todos os
sentidos. Tanto que não levou gol nos quatro primeiros jogos. Tinha
jogadores como Nilton Santos, Djalma Santos e Garrincha, que fazia o que
queria com os adversários. O Didi era o maestro. E o ataque tinha o
Pelé, que já era espetacular. A gente sabia que não era superior, mas
eram 11 contra 11. Ou melhor, foi até um certo momento do jogo. Ter
aberto o placar teve um gostinho especial. No entanto, acabamos ficando
com um a menos (Robert Jonquet se lesionou numa disputa com Vavá no fim
do primeiro tempo e na época não tinha substituição) e jogamos assim
durante todo o segundo tempo. Infelizmente, não deu para gente.
Com Pelé, Brasil vence a França por 5 a 2 na semfinal da Copa do Mundo de 1958 (Foto: Getty Images)
Na contramão dos louros que a façanha pôde proporcionar, o futuro
do goleador, amplo e esplêndido, tornou-se cinzento. Dois anos depois
da aventura na Suécia, Fontaine marcou contra o Chile, em Paris, os seus
gols de número 29 e 30 com a camisa da seleção. Seriam os últimos. O
motivo? Em março de 1960, em jogo válido pelo Campeonato Francês, Sikou,
jogador do Sochaux, acertou um carrinho violento em Fontaine, que saiu
de campo com dupla fratura na perna direita (lesão na tíbia e no
perônio). Após nove meses de recuperação, o jogador do Reims voltou aos
gramados graças à coragem e ao trabalho, mas a perna cedeu novamente no
mesmo lugar durante um encontro com o Limoges FC, realizado em 1º de
janeiro de 1961, e nunca mais foi o mesmo.
Resultado: Fontaine tinha 28 anos quando sua carreira chegou
oficialmente ao fim em 5 de julho de 1962, poucas semanas depois da
conquista do Campeão Francês 1961/62, seu último título.
- Foi um assassinato. Tenho as imagens do lance até hoje, mas não as
vejo porque isso me faz muito mal. Perdoei o rapaz que me fez isso, mas
lamento não ter continuado. Quase joguei no Botafogo! De 1959 para 1960,
Botafogo e Barcelona
queriam me contratar e chegaram a fazer propostas oficiais por mim. Com
o Botafogo de Garrincha e Nilton Santos, aliás, as conversas estavam
adiantadas. Sempre fui um admirador do futebol brasileiro, mas infelizmente
não pude ir. O motivo? Além do presidente do Reims ter feito jogo duro,
deixei de ser o atacante que era e passei a sentir medo dentro de campo
por causa da lesão. Aos 28 anos, não deu mais para continuar. Desisti. Não conseguia jogar mais futebol.
Após o fim prematuro da carreira, o ícone continuou vivendo e
respirando futebol, sempre reverenciado por sua façanha. Inicialmente,
fundou a União Nacional dos Futebolistas Profissionais, o sindicato dos
jogadores da França, brigando por garantias e contratos melhores para a
classe. Depois, aventurou-se como treinador e comentarista. E foi
atuando à beira do gramado, numa nova função, que Fontaine alcançou
outro recorde, ao qual considera uma "majestosa piada".
Just Fontaine marcou 30 gols em 21 jogos pelaFrança entre 1953 e 1960 (Foto: Getty Images)
- Em 1967, fui o técnico mais meteórico da história da seleção
francesa. Após dois amistosos perdidos (Romênia e Rússia), eu já estava
fora. Não resisti. Mais um recorde... (risos). Depois, treinei o Luchon,
o Paris Saint-German, o Toulouse e a seleção do Marrocos. No PSG, fui
muito bem. Aliás, fui o primeiro técnico do Paris Saint-Germain.
Quando cheguei, o clube estava na Segunda Divisão. Eu fui o treinador
responsável por levar o PSG à elite futebol francês em 1974/75 e ninguém
pode apagar isso. Desde então, o clube nunca mais desceu e é bem
provável que isso não aconteça tão cedo. Naquela época, apesar da grande
contribuição de Daniel Hechter (presidente do clube), nossos recursos
eram bem limitados. Agora, se eu tivesse esse aporte financeiro do
Catar, tudo seria mais fácil (risos).
Naquele tempo, o futebol não lhe dera alegrias financeiras, apenas
fama, faixas, taças e medalhas, mas garante que corria atrás da bola
porque era a sua grande paixão. Hoje, bem melhor de vida e dono de duas
lojas de roupa de grife em Toulouse, onde fixou residência, passa
temporadas na Côte d'Azur, onde estende uma rede na varanda e aproveita o
verão, comtemplando a bela vista que sua casa à beira-mar proporciona.
- Ainda recebo cartas de fãs e sou procurado por muitos jornalistas.
Prefiro estar de fora e tentar ajudar com as minhas opiniões. Ao longo
da minha carreira, ganhei o suficiente para viver bem e ter esse pequeno
luxo. Soube administrar o dinheiro depois que parei de jogar, porque
nunca fui gastador. Desde 1975, tenho minha casa em Toulouse, onde vivo
ao lado da minha esposa Arlette. São 51 anos de casamento. Na época,
quando comprei essa casa, eram dois números: o 11 e o 13. Como adquiri
os dois e passei a ser o proprietário, nem preciso dizer qual número
escolhi para ser meu endereço não é (risos) - concluiu.
Just Fontaine ainda guarda memórias de uma época de glórias (Foto: Arquivo /
GLOBOESPORTE.COM)
FONTE:
http://sportv.globo.com/site/programas/sportv-news/noticia/2013/08/aos-80-maior-artilheiro-de-uma-copa-revela-quase-joguei-no-botafogo.html