Prestes a se aposentar do Ministério Público, e enfrentando mais um Processo Administrativo Disciplinar interno, por criticar o Conselho Nacional do Ministério Público, o ex-ministro da Justiça Eugênio Aragão deu a seguinte entrevista ao DCM.
Como avalia o depoimento de Lula a Moro?
Pífio. Perguntas extensas sobre questões distantes da acusação, com um juiz impaciente em ouvir a defesa, fazendo indagações antes do Ministério Público, o que distorce o sentido da norma processual.
O juiz só pode fazer perguntas sobre omissões, contradições ou ambiguidades decorrentes das já feitas pelas partes. Quem primeiro pergunta é o MP, depois a defesa. O juiz, só ao final, e não pode inovar.
As supostas provas apresentadas foram rasteiras, documentos não assinados, declarações soltas sem comprovação. Enfim, uma balbúrdia, não um processo. As declarações de Moro ao final sobre a imprensa foram cínicas.
Ele mesmo usa e abusa dos meios de comunicação para buscar apoio de parte da população em seu discurso contra a corrupção. É claro que os abusos e violações da presunção de inocência tiveram a contribuição decisiva do juiz, que não para de dar entrevistas e palestras.
Na minha opinião, desnudaram-se o circo e os objetivos canhestros dessa tal operação Lava Jato.
Como vê a relação entre grande imprensa e Lava Jato?
Eu acho que existe um grande equívoco por parte de colegas do Ministério Público quando acreditam que essa grande mídia que os apóia, agora, é sua aliada. Confundir a sua pauta com a da imprensa é um risco institucional enorme. Ao afirmar que o sucesso da Lava Jato depende do apoio da chamada opinião pública, me parece que o juiz de Curitiba não sabe o que é isso.
Opinião pública não se confunde com um levantamento de opinião por um instituto estatístico. É algo forjado, martelado, é o resultado do trabalho dos formadores de opinião, que se forma, simplesmente, a critério de quem manda nos meios de comunicação, dos donos de jornais. Muitos colegas se veem, realmente, como os salvadores da pátria, acreditam nisso, o que os torna “vesgos”, enxergando a realidade da forma como pinta a mídia, que os põe num pedestal, numa situação absolutamente artificial.
Por que enxergam assim?
Acho que é falta de noção do que é comunicação social, de como ela trabalha. Apesar de muitos dos nossos colegas terem tido media training, acho que não entenderam do que se trata. Trabalhar o conceito de opinião pública com os membros do MP e do Judiciário é fundamental para que eles entendam essa dinâmica. Falta estudar as teorias da comunicação.
Quais as consequências disso?
Como a grande imprensa usa o MP para suas pautas, buscando promover um desgaste sistemático da esquerda, isso acaba desacreditando o MP e a PF, porque a mídia os coloca dentro de seu viés parcial, contra o PT, por exemplo. Pode até ser que alguns membros da Lava Jato não estejam apenas atrás de políticos petistas, mas não é isso que é representado pela mídia tradicional, que mostra um Ministério Público, sobretudo, antipetista.
Como quebrar essa narrativa?
Como eu disse, acredito na boa fé de muitos colegas, que realmente acreditam fazer a coisa certa, mas eles estão completamente equivocados por não verem que por trás do discurso de combate à corrupção há um discurso de desmantelamento de setores estratégicos para a economia do País. Na verdade, existe uma verdadeira operação de guerra para a quebra desses setores.
E isso não é feito por gente desinteressada. Isso não é feito pelo empresariado nacional, que quer salvar-se, muito menos feito por uma sociedade que preza por seus empregos. Me parece claro que é feito por uma mão vinda de fora.
Como assim?
A verdade é que a quebra do setor de engenharia civil, indústria naval e agora o profundo impacto nas exportações de carne que houve com aquela operação “Carne Fraca”, mostram claramente os interesses em jogo: tirar o Brasil da disputa por mercados.
O Brasil não pode mais ser um concorrente, segundo essa visão. E na carne a situação é ainda mais grave do que na engenharia, porque o País é o maior exportador do mundo, sendo que não exportamos sequer 20% da produção. Ou seja, o maior produtor absoluto.
Do jeito que a PF, para fazer sensacionalismo, colocou o problema, fica parecendo que o Brasil estava exportando carne podre, o que não é verdade. A carne que vai para fora, diferentemente da que fica para o mercado interno, passa por um controle sanitário muito mais rigoroso, por parte das autoridades estrangeiras, para que o produto possa ser exportado. Agora, a carne distribuída nacionalmente depende de quem você compra.
Já tivemos casos de frigoríficos que injetavam água no frango para aumentar o peso, por exemplo, mas isso não tem reflexo no exterior, ou seja, quem tem que reagir são as autoridades brasileiras. Então, generalizar e dizer que a carne brasileira é ruim, é perigoso para o sucesso desse setor.
O mercado externo é uma praça de guerra onde o Brasil conseguiu desbancar Argentina, Uruguai e Estados Unidos. É claro que esses países estão doidos para que a nossa carne seja rejeitada no mercado, porque o preço da commodity vai subir e eles vão poder voltar a ser os principais atores dessa indústria.
A União Europeia proibir a importação não vai prejudicar o grupo JBS, que tem frigoríficos no Canadá, Estados Unidos, Europa. A queda na exportação não vai diminuir o rendimento dessa empresa, vai prejudicar os frigoríficos menores, a cadeia nacional.
Portanto, nossas instituições, como a PF, não sabem jogar o jogo nacional. Não têm consciência de uma estratégia nacional. Se veem como ilhas isoladas de bem-estar do serviço público, e estão pouco se lixando para o impacto que suas operações têm na economia. Até o momento em que elas mesmas poderão ser atingidas, porque quebrando esses setores, a arrecadação do estado brasileiro diminui drasticamente, e algum dia pode faltar dinheiro para pagar os vencimentos dos funcionários públicos.
Qual o pensamento que impera hoje dentro do Ministério Público?
Hoje existe uma espécie de idealismo deformado. Desde o final do governo FHC, o recrutamento dentro do Ministério Público levou à transformação da grande maioria dos colegas numa massa de classe média consumista. São pessoas que querem, sobretudo, a carreira para viverem bem, tirar o que ela tem de melhor para suas expectativas individuais, que é uma boa remuneração, status, poder, prestígio social.
Aqueles que realmente trabalham com Direitos Humanos, com a tutela coletiva, estão minguando, são cada vez mais minoria em relação aos que lutam baseados num discurso contra a corrupção, seja no viés criminal ou nas ações de improbidade. Isso que é o pop, dentro do MP.
Os concursos para o Ministério Público atraem pessoas muito bem instruídas, capazes de passar por provas disputadíssimas. Aquele indivíduo que talvez tenha um ideal maior e uma visão mais realista da sociedade, porque padeceu mais, não tem tanta chance nessas disputas. Quem faz um concurso desses tem que ter tempo para estudar e se preparar, e isso está disponível, normalmente, para pessoas que tenham quem os sustente.
A visão da maioria dessas pessoas é que a carreira no MP é um investimento pessoal. Uma vez passando, o cidadão age dessa forma quer o retorno. Ele pensa: eu investi todos esses anos, agora quero ver o que tem para mim. É uma visão completamente diferente da que originou o Ministério Público em 88.
Essas pessoas reclamam de tudo: excesso de trabalho, falta de gente para compor suas equipes, falta de perícia. Ora, quando entramos no MP não tinha menos trabalho, até porque éramos Ministério Público e Advocacia da União, tudo junto.
A estruturação, em si, não é negativa, mas esses servidores não veem o tanto que têm, não param de reclamar. O que mais se vê na lista de discussão do MP é reclamação. “Ah, estou assoberbado. Ah, o dinheiro não está dando. Ah,eles têm que pagar o plantão. Têm que pagar o acúmulo de ofícios”.
Meu Deus do céu! Eu, na minha carreira, já acumulei em determinados momentos seis, sete funções ao mesmo tempo, e nunca pedi distribuição diferenciada por causa disso. E não sou eu apenas, há muitos assim, mas atualmente o que impera é uma outra cultura, a cultura do “eu quero me dar bem”.
Claro, existem honrosas exceções de pessoas que fazem um trabalho formidável, sozinhas em Procuradorias do interior, mas são exceções. A grande maioria quer sair da periferia para o centro e estão mais preocupadas com um projeto pessoal.
Por que esse pensamento é dominante?
Tem a ver com o que eu disse sobre o recrutamento. Alguns, mais jovens, quando viram o crescimento do Ministério Público, se sonharam lá dentro porque achavam que aquilo era uma carreira para o sucesso pessoal. E isso está desmanchando o tecido institucional que levou a Constituinte de 87 e 88 a prestigiar o Ministério Público.
Àquela época, os membros eram pessoas altruístas, cidadãos que levaram o MP a ser o que ele é hoje, que se sacrificavam pela instituição. Antes, tirávamos do próprio bolso a complementação das diárias disponíveis para viagens. Atualmente, muitos viajam para receber diárias que giram em torno de mil reais. Ou seja, cinco dias fora significam cinco mil reais, líquido, a mais num salário que já é polpudo.
Como retomar os princípios que nortearam a criação do MP?
Acho que será necessária uma reformulação de todo o sistema público. Mexer só no Ministério Público, que se tornou parte de um conjunto em que se formaram elites, não adianta. A administração pública tem que voltar a crescer e se reafirmar, para poder fazer frente a esses desafios de sua autoridade, muitas vezes mais corporativas do que institucionais.
Tal corporativismo pode ser exemplificado com a busca pela retirada dos servidores do MP da reforma da Previdência proposta pelo governo Temer?
O que eu acho pior não é nem a reforma abrir mão dos membros do MP. É os membros do MP, da magistratura e suas respectivas associações brigarem por regras especiais para si, querendo se destacar da maioria, ao invés de se juntarem à luta popular pela manutenção das regras atuais da Previdência. Isso é um indício muito claro de como o MP se distanciou da sociedade. Porque o MP hoje não está mais brigando contra a loucura que é essa proposta de reforma, e sim para garantir o seu.
Mas existem iniciativas internas que se diferenciam disso?
Existe a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, doutora Deborah Duprat, que já fez parecer técnico mostrando que essa reforma da Previdência é inconstitucional. Mas a doutora Deborah, hoje, faz parte de um grupo minoritário. A Associação Nacional dos Procuradores da República briga para que o MP fique fora dessa reforma, usando toda sua influência, lobby, junto ao governo golpista.
É a favor do fim foro privilegiado?
Atualmente, não. Diante da forma como a Justiça tem agido, não. Não vejo imparcialidade possível no primeiro grau em lidar com atores políticos de peso. Porque esse tipo de atitude midiática, que vemos por parte da Lava Jato, só vai ser fortalecida, gerando mais arbitrariedades.
E o projeto de abuso de autoridade, aprovado pelo Senado, com o fim do foro?
Temos que ter cuidado. Claro que sou a favor de uma lei que combata o abuso de poder em relação a atitudes midiáticas da Justiça e do Ministério Público, a vazamentos de informações, escuta de conversas entre advogado e cliente, e uma série de outras barbaridades que matam o processo legal. Porém, já temos os instrumentos necessários para combater isso.
O problema é a falta de resposta, da própria Justiça, na hora de uma representação contra. As pessoas muitas vezes se iludem, achando que uma lei vai resolver. Quem vai julgar segundo essa lei serão os próprios magistrados. E vai ser o MP quem vai atuar na acusação. Por isso digo: sou contra a extinção do foro privilegiado até que tenhamos uma reforma do sistema que garanta atuação isenta, imparcial e equilibrada por parte do MP e do Judiciário.
Qual sua opinião a respeito das dez medidas contra a corrupção?
É um projeto corporativo, para dar mais musculatura a quem já está cheio de músculos. O MP aproveitou a onda de uma parcela da população polarizada e mal informada, pessoas que veem o combate ã corrupção como única finalidade do estado. Acha que é o programa que vale, esquecendo o combate à pobreza, da desigualdade, proteção dos vulneráveis, E o MP soube pegar carona nas manifestações de 2013 para matar a PEC 37.
Vejo esse projeto como um marketing. Tanto é que essas medidas foram gestadas dentro do Ministério Público e publicidade em cima disso é, basicamente, institucional. Tem muito pouco de medida de iniciativa popular.
E a lei da terceirização, sancionada por Temer?
A terceirização mata o artigo 7º da Constituição, os direitos sociais, que fazem parte de cláusula pétrea. São a base dos direitos fundamentais de quem é cidadão brasileiro. Tanto que em direitos humanos, falamos em direitos civis e políticos de um lado e econômicos e sociais de outro. São as duas faces de uma mesma moeda. O artigo 7º é inviolável.
Agora, vai depender muito da atitude do PGR de questionar isso diante do STF e a atitude do Supremo acolher, uma vez que vemos muitos ministros falando contra os direitos trabalhistas, dizendo que a justiça do trabalho é um laboratório do PT.
Portanto, até que medida o STF está apto para defender o que a Constituição determina? Podemos confiar neste guardião da Constituição?
Estamos vendo os consensos que montaram nossa democracia depois da ditadura sendo dissolvidos. E quando isso se desmancha as pessoas já não se empenham mais pelos valores constitucionais. Tudo se torna relativo.
Vale para um, não vale para outro. Por exemplo, quando prenderam o Daniel Dantas e colocaram uma algema nele, nasceu uma súmula vinculante proibindo que se algemasse. Agora, quando se algema Palocci, o Supremo, que baixou a súmula vinculante, não fala nada.
Então, a gente vê que esses conceitos estão virando pó, e isso traz uma insegurança jurídica muito grande. A quem recorrer?
A quem recorrer?
Acho que se a sociedade não se organizar e cobrar, seja por meio dos mecanismos legais ou da voz das ruas, podemos sepultar nossa democracia.
Estamos vendo que o Judiciário e o MP estão sujeitos a qualquer tipo de pressão da mídia. Tudo é questão de saber quem grita mais alto numa hora dessas. E se a sociedade não se organizar para gritar, não será ouvida.