Das loucuras das fãs para ficar perto dos primeiros astros do vôlei brasileiro aos treinos experimentais e inusitados: os primeiros passos de jogadores desbravadores
- Eles eram os Beatles. Representaram um determinado momento aqui no Brasil a euforia do público da forma dos Beatles. Esses caras saíam pelo Brasil para jogar e vocês não têm ideia do que era. A histeria, gritos. Realmente foi uma coisa inesperada e bateu em cada um de uma forma diferente - recordou o técnico da Geração de Prata, Bebeto de Freitas.
Geração de Prata tinha "rota de fuga"
para deixar os ginásios e se livrarem
das fãs (Foto: infoesporte
/ cláudio roberto)
- Quando acabava treino ou jogo e liberava para autógrafos, não conseguíamos ir embora. Acho que na nossa época tinha até mais (assédio).
Não conseguíamos andar na rua, não conseguíamos entrar no ginásio. As fãs da época tinham uma idade um pouco maior. Hoje em dia é muita “meninadinha”. Era diferente. Os ginásios tipo Maracanãzinho, Ibirapuera, do Minas Tênis Clube... Não cabia mais gente - lembrou William, levantador e capitão da Geração de Prata.
- No próprio Rio de Janeiro e em Niterói, nós temos histórias de ter de sair correndo. Saiu na época no Jornal Nacional. Na época elas correndo atrás do Bernardinho e do Renan. A gente via nosso trabalho. A gente via o que a gente alcançou, estava conseguindo atingir uma massa e principalmente no público feminino - completou Domingos Maracanã.
Jogos do Brasil passaram a ter arquibancadas
cheias mundo afora a partir da década de
1980 (Foto: Agência Estado)
brasil, muito prazer!
- Tudo aconteceu depois do Mundialito que teve no Maracanãzinho. Até então nunca tinha tido uma transmissão ao vivo de uma partida de vôlei. Da noite para o dia, um bando de pé-rapados, atletas conhecidos intimamente no meio do voleibol, passou a ser ídolo nacional. A União Soviética era imbatível, e nós os vencemos numa final com Jornada nas Estrelas. No dia seguinte disso, a gente não podia andar na rua. Era capa de jornal, entrevista o dia inteiro. Foi uma mudança muito radical - contou Bernard.
O Mundialito foi uma competição idealizada pelo locutor e apresentador de TV Luciano do Valle, que foi homenageado pela Geração de Prata dias após sua morte, em abril deste ano. O campeonato servia de aclimatação para as seleções europeias de olho no Mundial da Argentina. Na principal competição do ano, o Brasil chegou à sua primeira final, mas acabou levando o troco dos soviéticos em uma derrota por 3 a 0 também transmitida ao vivo na televisão. Foi a primeira prata da geração. Uma medalha celebrada no Brasil.
- O pessoal associou que o voleibol tinha garra. Mesmo perdendo o Mundial, quando chegamos a São Paulo ou ao Rio de Janeiro foi um choque, uma loucura de gente esperando no aeroporto. Daí em diante, virou uma febre. Esgotavam-se camisas de clube e de seleção. Passamos a ir a todos os programas de televisão, a fazer comerciais, a ser o centro das atenções. Dividíamos programas de televisão com jogador de futebol, com o Ayrton Senna. Programas que não eram só de esportes. Passamos a ser conhecidos nacionalmente - disse William.
de virar a cabeça
- O que elas faziam para chegar perto de Renan e Montanaro era uma coisa que tinha de dar risada mesmo. Eu e o Montanaro tínhamos uma revista chamada saque. Nessa revista, fazíamos uma história em quadrinhos na qual eu e o Montanaro éramos super-heróis. Era uma brincadeira nossa. Criou-se uma personagem por causa de uma fã que meio que perseguia ele. De certa forma, a gente contava a história dessa fã. Ela entrava em toda historinha. Ela aparecia nos ginásios, em todo lugar, atrás do Montanaro. Ele vivia correndo dessa fã. Sempre tem umas mais ousadas. A gente escuta essas histórias de fãs que se escondiam em hotel. Hall de hotel estava sempre lotado. Era uma coisa fantástica - contou William.
Por vezes, uns se deixavam levar pelos prazeres da fama e se desviavam do foco dos treinos.
- Eu era o mais novo. Tinha 19 anos no Mundial e 21 anos nas Olimpíadas. Comecei a aparecer todo dia na televisão, todo dia eu dava entrevista, eu achava que era o mais bonito do mundo, mais forte do mundo, que eu namorava quem eu quisesse, era reconhecido em todos os lugares. Isso realmente mexe um pouco com a cabeça da gente, principalmente por ser uma geração que estava começando isso no Brasil - disse Marcus Vinícius.
O ápice dessa popularização ocorreu em 1983. Como os ginásios não suportavam mais os fãs da Geração de Prata, Luciano do Valle encabeçou a ideia de promover um desafio entre Brasil e União Soviética no Maracanã. O jogo foi adiado por duas vezes por causa da chuva que caía no Rio de Janeiro e também se fez presente no dia do confronto. Nada que afastasse uma multidão. Alguns falam em 93 mil torcedores, 95 mil, 105 mil, nunca menos de 90 mil. Um recorde para um duelo de vôlei que dificilmente será superado.
Brasil X URSS no Maracanã tem o recorde
de público de vôlei, com mais de 90 mil
torcedores (Foto: Agência Estado)
O jogo histórico entre Brasil e União Soviética no Maracanã (Foto: Arquivo / Ag. O Globo)
Com a imagem em alta junto aos torcedores brasileiros, os então amadores foram cercados por empresários e patrocinadores. Por vezes, houve atritos no grupo por causa de questões contratuais - acordos, aliás, firmados pelos próprios jogadores quase sempre sem a ajuda de um assessor. Até no meio das Olimpíadas uma disputa de marcas de tênis abalou o grupo, mas os problemas eram sempre contornados, mesmo que a duras penas.
- Tomamos o choque de não saber lidar tanto com isso. Acho que atrapalhou nossa concentração. Na própria Vila Olímpica éramos as estrelas da Vila. Éramos o time que todos falavam que ia ganhar as Olimpíadas. Não sei a opinião dos meus amigos, mas tirou um pouco o foco. Até nisso a geração de prata influenciou positivamente as futuras gerações. Depois disso a seleção foi mais blindada. Isso ajudou nos títulos que vieram depois - afirmou William.
cobaias de treinos
Os bons resultados do Brasil que impulsionaram o boom do vôlei no início da década de 1980 não foram um acaso. Se 1982 foi o marco em termos de popularização, muitos jogadores da Geração de Prata apontam o Mundial Juvenil de 1977, no Brasil, como o embrião do grupo medalhista, o primeiro passo rumo à profissionalização. Hoje presidente do Comitê Olímpico do Brasil e na época presidente da Confederação Brasileira de Voleibol, Carlos Arthur Nuzman reuniu os jovens atletas na primeira seleção permanente.
- Eu entendi que essas seleções deveriam seguir os moldes do que eu via lá fora, ou seja, uma equipe permanente que treinasse o dia todo e ficasse à disposição. Lógico que isso tinha um problema, o lugar onde eles moravam, pelo Brasil inteiro, e a parte de estudos, como eles iriam estudar. Então eu levei esse projeto, na época, ao presidente do Conselho Nacional de Esportes, o brigadeiro Gerônimo Bastos, e ao ministro da Educação, a quem o esporte era subordinado, que era o ministro Ney Braga. No início, eles acharam uma ideia maluca, mas resolveram apoiar, talvez pela minha pouca idade como dirigente - recordou.
Nuzman não parou por aí. O bom desempenho do Brasil no Mundial da Itália em 1978 (ficou em quinto lugar) fez com que os clubes italianos se encantassem com os jogadores brasileiros. William, Montanaro e Bernard foram os primeiros a jogar no país europeu. Renan e Badá seguiram o mesmo caminho. Foi quando Nuzman reuniu os brasileiros e criou uma lei para que os jogadores permanecessem no vôlei nacional, que passou a se concentrar em duas equipes: o paulista Pirelli e o carioca Atlântica Boavista, que mais tarde se tornou o Bradesco. Assim, a seleção permanente sobreviveu, o entrosamento entre os jogadores cresceu, os resultados vieram, e a paixão do torcedor aflorou.
- Lembro bem que o Nuzman, quando chegou em 1980, nos reuniu em uma sala e falou: “Quem aqui acredita que nós podemos ser medalhistas olímpicos? Quem não acreditar pode pegar essa porta aqui e ir embora.” Ele deu como exemplo a NBA: “Vamos fazer o voleibol aqui ser como a NBA.” Confesso que na época demos aquele sorrisinho de lado: “Está louco.” Ele tinha razão. Talento sempre tivemos. O que diferenciava a gente do pessoal de fora era justamente essa estrutura física que não tínhamos - contou William.
Corridas faziam parte da rotina de treinos
da Geração de Prata (Foto: Eurico
Dantas / Agência OGlobo)
- Nós fizemos muitas coisas erradas, fomos cobaias de muitas experiências (risos), algumas deram certo, outras não. Enfim, isso tudo fez parte da evolução do voleibol. Hoje em dia não existe mais a corrida no treinamento do voleibol, porque ele foi caracterizado como uma atividade anaeróbica e alática, que não envolve a corrida, então todo o trabalho é feito na academia, dentro de uma quadra, um pouco na piscina também, mas em doses bem menores - disse Montanaro.
As eternas corridas marcaram os treinos da Geração de Prata. Quem não é do Rio de Janeiro costuma dizer que conheceu a cidade correndo. O major Paulo Sérgio da Rocha viajava no grupo, guiando uma bicicleta. Ainda assim, alguns jogadores pegavam caronas.
Prata das Olimpíadas de 1984 ajudou a mudar a cara do vôlei brasileiro (Foto: Marcos Guerra)
Como resultado dos experimentos, as lesões apareceram. Apenas William e Bernard não operaram um joelho. Por outro lado, os brasileiros passaram a compensar a baixa estatura com o bom preparo físico. Foi mais um fator para mudar o futuro do vôlei verde-amarelo.
- A gente conseguiu transformar um produto que era o voleibol em um grande negócio, em uma grande paixão. Mais do que um negócio. Que culminou com o jogo no Maracanã com mais de 90 mil pessoas. Então isso demonstrava o quanto o brasileiro se apaixonou pelo voleibol - disse Renan.
- Até hoje o pessoal nos assedia. Nem acredito porque estamos diferentes, carecas, enrugados, barrigudos. A idade chega, mas as pessoas nos reconhecem na rua ainda - completou Montanaro.
* Participaram desta produção: Diogo Venturelli, Helena Rebello, Lydia Gismondi, Marcos Guerra, Pedro Veríssimo, Renata Heilborn e Stephanie de Billy.
FONTE:
http://globoesporte.globo.com/volei/noticia/2014/08/cobaias-que-viraram-astros-do-volei-trajetoria-pioneira-da-geracao-de-prata.html
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