segunda-feira, 11 de agosto de 2014

Cobaias que viraram astros do vôlei: a trajetória pioneira da Geração de Prata

Das loucuras das fãs para ficar perto dos primeiros astros do vôlei brasileiro aos treinos experimentais e inusitados: os primeiros passos de jogadores desbravadores


Por São Paulo

 
Fãs fazem loucuras para ficar perto dos ídolos do vôlei do Brasil: se escondem no ônibus, hospedam-se no mesmo hotel da seleção, correm atrás dos jogadores na busca por autógrafos. São cenas até comuns hoje em dia, mas que foram chocantes há 30 anos. De anônimos amadores de um esporte até então pouco popular no Brasil, os jogadores da Geração de Prata passaram a ser ídolos, exemplos de garra, símbolos sexuais. Brilhavam as primeiras estrelas do vôlei verde e amarelo. Um grupo que ficou marcado pelo pioneirismo, seja no saque, nos treinos experimentais nas instalações militares ou nas relações com mídia, patrocinadores e torcedores apaixonados.

- Eles eram os Beatles. Representaram um determinado momento aqui no Brasil a euforia do público da forma dos Beatles. Esses caras saíam pelo Brasil para jogar e vocês não têm ideia do que era. A histeria, gritos. Realmente foi uma coisa inesperada e bateu em cada um de uma forma diferente - recordou o técnico da Geração de Prata, Bebeto de Freitas.

ilustração Vôlei 1984 (Foto: infoesporte / cláudio roberto)
Geração de Prata tinha "rota de fuga" 
para deixar os ginásios e se livrarem 
das fãs (Foto: infoesporte 
/ cláudio roberto)

O assédio das fãs aos novos ídolos era tamanho que em jogos no Brasil, especialmente no Nordeste do país, os jogadores combinavam com a comissão técnica uma “rota de fuga” para poder deixar o ginásio ao fim das partidas. O preparador físico mandava o time dar uma volta na quadra para soltar o corpo. Tudo era uma cena para que os jogadores corressem para o ônibus estrategicamente posicionado.

- Quando acabava treino ou jogo e liberava para autógrafos, não conseguíamos ir embora. Acho que na nossa época tinha até mais (assédio).
 Não conseguíamos andar na rua, não conseguíamos entrar no ginásio. As fãs da época tinham uma idade um pouco maior. Hoje em dia é muita “meninadinha”. Era diferente. Os ginásios tipo Maracanãzinho, Ibirapuera, do Minas Tênis Clube... Não cabia mais gente - lembrou William, levantador e capitão da Geração de Prata.

- No próprio Rio de Janeiro e em Niterói, nós temos histórias de ter de sair correndo. Saiu na época no Jornal Nacional. Na época elas correndo atrás do Bernardinho e do Renan. A gente via nosso trabalho. A gente via o que a gente alcançou, estava conseguindo atingir uma massa e principalmente no público feminino - completou Domingos Maracanã.

renan william volei brasil x canada pan-americano 1983 especial volei geração de prata (Foto: Agência Estado)
Jogos do Brasil passaram a ter arquibancadas 
cheias mundo afora a partir da década de 
1980 (Foto: Agência Estado)

brasil, muito prazer!
Essa popularização do vôlei é apontada por quase todos os membros da Geração de Prata como o maior legado daquele grupo. Um fenômeno que se iniciou dois anos antes daquele vice-campeonato nas Olimpíadas de Los Angeles 1984. Até o fim da década de 1970, o vôlei não estava no gosto popular. Até mesmo alguns jogadores da Geração de Prata não queriam praticar a modalidade quando crianças - casos de William e Montanaro. Só em 1982 que o Brasil foi apresentado ao esporte, pouco depois da derrota da Seleção de futebol nos campos da Espanha na Copa do Mundo.

Tabela resultados geração de prata (Foto: infoesporte)

- Tudo aconteceu depois do Mundialito que teve no Maracanãzinho. Até então nunca tinha tido uma transmissão ao vivo de uma partida de vôlei. Da noite para o dia, um bando de pé-rapados, atletas conhecidos intimamente no meio do voleibol, passou a ser ídolo nacional. A União Soviética era imbatível, e nós os vencemos numa final com Jornada nas Estrelas. No dia seguinte disso, a gente não podia andar na rua. Era capa de jornal, entrevista o dia inteiro. Foi uma mudança muito radical - contou Bernard.

O Mundialito foi uma competição idealizada pelo locutor e apresentador de TV Luciano do Valle, que foi homenageado pela Geração de Prata dias após sua morte, em abril deste ano. O campeonato servia de aclimatação para as seleções europeias de olho no Mundial da Argentina. Na principal competição do ano, o Brasil chegou à sua primeira final, mas acabou levando o troco dos soviéticos em uma derrota por 3 a 0 também transmitida ao vivo na televisão. Foi a primeira prata da geração. Uma medalha celebrada no Brasil.

- O pessoal associou que o voleibol tinha garra. Mesmo perdendo o Mundial, quando chegamos a São Paulo ou ao Rio de Janeiro foi um choque, uma loucura de gente esperando no aeroporto. Daí em diante, virou uma febre. Esgotavam-se camisas de clube e de seleção. Passamos a ir a todos os programas de televisão, a fazer comerciais, a ser o centro das atenções. Dividíamos programas de televisão com jogador de futebol, com o Ayrton Senna. Programas que não eram só de esportes. Passamos a ser conhecidos nacionalmente - disse William.

de virar a cabeça
Os jogadores, jovens, logo ganharam fama de galãs, especialmente Renan e Montanaro. Foram muitos os pedidos de casamento, incontáveis cartas de amor. Fãs no Brasil e mundo afora, principalmente no Japão, onde a seleção passou longas temporadas para competições. No ano passado, Bernardinho voltou ao país, dessa vez como comandante da seleção brasileira. Ele encontrou uma antiga fã de Montanaro. Keiko sempre acompanhava os jogos do Brasil no Japão, era daquelas torcedoras que até seguiam o time nos shinkansens - os trens-bala nipônicos. A japonesa apresentou o filho de quase 30 anos ao técnico brasileiro. O japonês se chamava José, em homenagem a José Montanaro. No Brasil, o cenário era muito semelhante.

Comecei a aparecer todo dia na televisão, todo dia eu dava entrevista, eu achava que era o mais bonito do mundo, mais forte do mundo, que eu namorava quem eu quisesse, era reconhecido em todos os lugares. Isso realmente mexe um pouco com a cabeça da gente
Marcus Vinícius, medalhista de prata

- O que elas faziam para chegar perto de Renan e Montanaro era uma coisa que tinha de dar risada mesmo. Eu e o Montanaro tínhamos uma revista chamada saque. Nessa revista, fazíamos uma história em quadrinhos na qual eu e o Montanaro éramos super-heróis. Era uma brincadeira nossa. Criou-se uma personagem por causa de uma fã que meio que perseguia ele. De certa forma, a gente contava a história dessa fã. Ela entrava em toda historinha. Ela aparecia nos ginásios, em todo lugar, atrás do Montanaro. Ele vivia correndo dessa fã. Sempre tem umas mais ousadas. A gente escuta essas histórias de fãs que se escondiam em hotel. Hall de hotel estava sempre lotado. Era uma coisa fantástica - contou William.

Por vezes, uns se deixavam levar pelos prazeres da fama e se desviavam do foco dos treinos.

- Eu era o mais novo. Tinha 19 anos no Mundial e 21 anos nas Olimpíadas. Comecei a aparecer todo dia na televisão, todo dia eu dava entrevista, eu achava que era o mais bonito do mundo, mais forte do mundo, que eu namorava quem eu quisesse, era reconhecido em todos os lugares. Isso realmente mexe um pouco com a cabeça da gente, principalmente por ser uma geração que estava começando isso no Brasil - disse Marcus Vinícius.

O ápice dessa popularização ocorreu em 1983. Como os ginásios não suportavam mais os fãs da Geração de Prata, Luciano do Valle encabeçou a ideia de promover um desafio entre Brasil e União Soviética no Maracanã. O jogo foi adiado por duas vezes por causa da chuva que caía no Rio de Janeiro e também se fez presente no dia do confronto. Nada que afastasse uma multidão. Alguns falam em 93 mil torcedores, 95 mil, 105 mil, nunca menos de 90 mil. Um recorde para um duelo de vôlei que dificilmente será superado.

volei brasil x russia maracana 1983 especial volei geração de prata (Foto: Agência Estado)
Brasil X URSS no Maracanã tem o recorde 
de público de vôlei, com mais de 90 mil 
torcedores (Foto: Agência Estado)

- Lembro que a gente comentava: “Vai ser um fiasco, porque nosso público é de 20 mil pessoas.” Se você coloca 20 mil pessoas no Maracanã antigo, é vazio. Aí como vai ser? O pessoal vendo lá de longe? Chegando ao redor do Maracanã, gente para caramba. O Bebeto saía a toda hora do vestiário e dizia: “Vai encher isso aí.” “Ah, Bebeto, para com isso.” Lembro as personalidades que foram ao jogo. O Zico foi ao vestiário, o Emerson Fittipaldi. Foi muito legal. O Luciano do Valle fez para a época tipo um show. Estava tudo apagado. Anunciava o nome tipo: “Willian.” Vinha só aquele foco de luz naquele tipo tapete vermelho. Estava escuro ainda, só escutamos o barulho. Não tínhamos noção. Quando começou a acender as luzes, foi chocante, porque vimos aquele negócio lotado de gente e com garoa - recordou William.

Badalhoca na partida de vôlei do Brasil contra a URSS no Maracanãzinho (Foto: Arquivo / Ag. O Globo)O jogo histórico entre Brasil e União Soviética no Maracanã (Foto: Arquivo / Ag. O Globo)

- A torcida não ia embora: “Joga, joga!” Como é que você não joga? E o piso molhado, porque montaram um tablado, e enxugavam, tiramos os tênis, enxugavam com rodos, com panos. Os soviéticos a mesma coisa. Até que os soviéticos tiveram a ideia: o campo tinha passarelas de borracha para você sair do vestiário, passar pelo gramado e chegar ao tablado. Eles perceberam que não escorregavam tanto aquelas borrachas. Eles sugeriram que a gente colocasse a passarela em cima do tablado de madeira. Foi o que deu certo. Na hora, tivemos de adaptar a forma de jogar. Nós conseguimos nos adaptar acho que melhor que os soviéticos, e a gente conseguiu vencê-los ali por 3 a 1, mas o principal foi encantar a torcida - contou Montanaro.

Com a imagem em alta junto aos torcedores brasileiros, os então amadores foram cercados por empresários e patrocinadores. Por vezes, houve atritos no grupo por causa de questões contratuais - acordos, aliás, firmados pelos próprios jogadores quase sempre sem a ajuda de um assessor. Até no meio das Olimpíadas uma disputa de marcas de tênis abalou o grupo, mas os problemas eram sempre contornados, mesmo que a duras penas.

- Tomamos o choque de não saber lidar tanto com isso. Acho que atrapalhou nossa concentração. Na própria Vila Olímpica éramos as estrelas da Vila. Éramos o time que todos falavam que ia ganhar as Olimpíadas. Não sei a opinião dos meus amigos, mas tirou um pouco o foco. Até nisso a geração de prata influenciou positivamente as futuras gerações. Depois disso a seleção foi mais blindada. Isso ajudou nos títulos que vieram depois - afirmou William.
cobaias de treinos



Os bons resultados do Brasil que impulsionaram o boom do vôlei no início da década de 1980 não foram um acaso. Se 1982 foi o marco em termos de popularização, muitos jogadores da Geração de Prata apontam o Mundial Juvenil de 1977, no Brasil, como o embrião do grupo medalhista, o primeiro passo rumo à profissionalização. Hoje presidente do Comitê Olímpico do Brasil e na época presidente da Confederação Brasileira de Voleibol, Carlos Arthur Nuzman reuniu os jovens atletas na primeira seleção permanente.

- Eu entendi que essas seleções deveriam seguir os moldes do que eu via lá fora, ou seja, uma equipe permanente que treinasse o dia todo e ficasse à disposição. Lógico que isso tinha um problema, o lugar onde eles moravam, pelo Brasil inteiro, e a parte de estudos, como eles iriam estudar. Então eu levei esse projeto, na época, ao presidente do Conselho Nacional de Esportes, o brigadeiro Gerônimo Bastos, e ao ministro da Educação, a quem o esporte era subordinado, que era o ministro Ney Braga. No início, eles acharam uma ideia maluca, mas resolveram apoiar, talvez pela minha pouca idade como dirigente - recordou.

Nuzman não parou por aí. O bom desempenho do Brasil no Mundial da Itália em 1978 (ficou em quinto lugar) fez com que os clubes italianos se encantassem com os jogadores brasileiros. William, Montanaro e Bernard foram os primeiros a jogar no país europeu. Renan e Badá seguiram o mesmo caminho. Foi quando Nuzman reuniu os brasileiros e criou uma lei para que os jogadores permanecessem no vôlei nacional, que passou a se concentrar em duas equipes: o paulista Pirelli e o carioca Atlântica Boavista, que mais tarde se tornou o Bradesco. Assim, a seleção permanente sobreviveu, o entrosamento entre os jogadores cresceu, os resultados vieram, e a paixão do torcedor aflorou.

- Lembro bem que o Nuzman, quando chegou em 1980, nos reuniu em uma sala e falou: “Quem aqui acredita que nós podemos ser medalhistas olímpicos? Quem não acreditar pode pegar essa porta aqui e ir embora.” Ele deu como exemplo a NBA: “Vamos fazer o voleibol aqui ser como a NBA.” Confesso que na época demos aquele sorrisinho de lado: “Está louco.” Ele tinha razão. Talento sempre tivemos. O que diferenciava a gente do pessoal de fora era justamente essa estrutura física que não tínhamos - contou William.

vôlei Montanaro, Bernard, Xando, Marcus Vinicius, William Brasil 1984, Los Angeles especial volei geração de prata (Foto: Eurico Dantas / Agência OGlobo)
Corridas faziam parte da rotina de treinos 
da Geração de Prata (Foto: Eurico 
Dantas / Agência OGlobo)

Em vez de dois treinos semanais, dois treinos diários - por vezes até três sessões no mesmo dia. O pioneirismo da Geração de Prata também se desenvolveu nos treinamentos. Muitos dos jogadores usam o termo cobaias ao recordar os períodos de treinamentos, quase sempre em instalações militares no Rio de Janeiro. Foram vários os experimentos com aqueles jovens nos treinos: subir e descer escadas, saltar degraus, natação, agachamentos com um companheiro nas costas, prender pesos nos tornozelos e correr à exaustão.

- Nós fizemos muitas coisas erradas, fomos cobaias de muitas experiências (risos), algumas deram certo, outras não. Enfim, isso tudo fez parte da evolução do voleibol. Hoje em dia não existe mais a corrida no treinamento do voleibol, porque ele foi caracterizado como uma atividade anaeróbica e alática, que não envolve a corrida, então todo o trabalho é feito na academia, dentro de uma quadra, um pouco na piscina também, mas em doses bem menores - disse Montanaro.

As eternas corridas marcaram os treinos da Geração de Prata. Quem não é do Rio de Janeiro costuma dizer que conheceu a cidade correndo. O major Paulo Sérgio da Rocha viajava no grupo, guiando uma bicicleta. Ainda assim, alguns jogadores pegavam caronas.

Medalha da Geração de Prata das Olimpíadas de Los Angeles (Foto: Marcos Guerra)Prata das Olimpíadas de 1984 ajudou a mudar a cara do vôlei brasileiro (Foto: Marcos Guerra)

- Quando subíamos as Paineiras, ia uma Kombi atrás, com as portas abertas para recolher quem não aguentava. Parece brincadeira, mas não é. Nessas corridas, o Bernard era um dos poucos que já tinham carro, tinha uma Brasília bege, e ele mandava os amigos dele ficarem estacionados em pontos estratégicos. Quando ficava muito íngreme, e ele muito cansado, ele subia no carro. Depois ele descia para completar o trabalho. A gente falava: “Bernard, eu vou te dedurar, desce porque vai fazer falta esse trabalho no jogo.” Era muito engraçado. Os militares, quando correm no seu dia a dia, eles têm músicas e criam letras: “1,2,3,4. 4,3,2,1”. E nós criávamos nossas músicas também, meio que impublicáveis (risos), às vezes envolviam os militares, o técnico. A gente brincava demais - contou Montanaro.

Como resultado dos experimentos, as lesões apareceram. Apenas William e Bernard não operaram um joelho. Por outro lado, os brasileiros passaram a compensar a baixa estatura com o bom preparo físico. Foi mais um fator para mudar o futuro do vôlei verde-amarelo.

- A gente conseguiu transformar um produto que era o voleibol em um grande negócio, em uma grande paixão. Mais do que um negócio. Que culminou com o jogo no Maracanã com mais de 90 mil pessoas. Então isso demonstrava o quanto o brasileiro se apaixonou pelo voleibol - disse Renan.


- Até hoje o pessoal nos assedia. Nem acredito porque estamos diferentes, carecas, enrugados, barrigudos. A idade chega, mas as pessoas nos reconhecem na rua ainda - completou Montanaro.


* Participaram desta produção: Diogo Venturelli, Helena Rebello, Lydia Gismondi, Marcos  Guerra, Pedro Veríssimo, Renata Heilborn e Stephanie de Billy.


FONTE:
http://globoesporte.globo.com/volei/noticia/2014/08/cobaias-que-viraram-astros-do-volei-trajetoria-pioneira-da-geracao-de-prata.html

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