sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Homossexualidade no esporte: debate aumenta e lei gera polêmica

Após um 2013 com um bom número de atletas assumindo sua orientação sexual, criação de lei antigay russa coloca o tema no foco nas Olimpíadas de Inverno de Sochi

Por Rio de Janeiro

Do alto de uma plataforma de 10m, Tom Daley se coloca na ponta dos pés, de costas para o "abismo". O salto escolhido foi repetido à exaustão. Ele se joga, executa os movimentos da maneira que queria, comemora. Mas ainda precisa passar pela avaliação subjetiva dos juízes. Aos 19 anos, o astro britânico, medalhista olímpico nos Jogos de Londres, aprendeu a lidar com o julgamento alheio desde muito cedo. Força da profissão. Em dezembro do ano passado, com a mesma coragem, decidiu dar um salto no escuro. E esse seria avaliado por bem mais do que sete pessoas. Depois de conversar com a família e amigos, de ouvir suas opiniões, ligou a câmera, gravou um vídeo e o publicou na internet. Queria que os fãs soubessem que estava apaixonado por alguém e que esse alguém era "um cara". Não sabia o que leria ou ouviria após a revelação. Só tinha uma certeza: estava feliz e isso lhe trazia segurança. 

Tom Daley salto plataforma natação (Foto: Getty Images) 
Tom Daley conquistou o bronze na plataforma 
nos Jogos de Londres (Foto: Getty Images)

Sem olhar para trás, tocou a vida como de costume. As fotos ao lado do namorado ganharam lugar em seu álbum virtual. Os rumores haviam acabado e o que veio depois foi apoio. Do público e da mídia. Tom agradeceu e entendeu que o ano de mudanças pessoais e profissionais não poderia ter começado de melhor maneira. Sentindo-se à vontade na própria pele, ele se vê ainda mais forte para buscar um objetivo: a medalha de ouro nos Jogos do Rio, em 2016. O passo dado por Daley foi mais um no caminho também trilhado por um bom número de atletas que em 2013 assumiram sua orientação sexual. O pivô da NBA Jason Collins foi o primeiro jogador de uma liga profissional americana a dizer que era gay. Atitude que o fez receber os cumprimentos do presidente Barack Obama. Orlando Cruz enfrentou mais resistência. Com seu calção nas cores do arco-íris, o boxeador de Porto Rico recebeu críticas de compatriotas e gritos homofóbicos durante uma luta. Lili e Larissa vestiram branco, trocaram alianças e jogaram seus buquês. Cada um, a seu modo, ajudou a alimentar a discussão a respeito da homossexualidade no meio esportivo. 


Assim como a lei antigay da Rússia, que tem roubado os holofotes das Olimpíadas de Inverno de Sochi.

Nesse comecinho de 2014, o quebra-cabeças ganhou mais três peças: o saltador brasileiro Ian Matos, o nadador finlandês Ari-Pekka Liukkonen e Thomas Hitzlsperger, ex-meia da seleção de futebol da Alemanha que esperou se aposentar para sair do armário e provocar um debate nacional sobre tolerância. Sonha com o dia em que jogadores de futebol poderão conversar com os companheiros de time sobre seus namorados sem que isso pareça incomum. 

De acordo com um levantamento do site Outsports, especializado na cobertura de esportes voltada ao público gay, os Jogos de Londres 2012 contaram com a participação de 23 atletas homossexuais assumidos. Número maior do que o registrado em Atenas 2004 (11) e Pequim 2008 (10), mas ainda considerado muito baixo num universo de 10.500 competidores. Em Sochi, são seis entre os 2.500 inscritos. Todas mulheres. 

Tom Daley com o namorado (Foto: Reprodução / Instagran)Tom Daley e seu namorado (Foto: Reprodução / Instagram)
 
- Na mitologia, os atletas sempre foram os homens mais perfeitos para homenagear os deuses. São vistos como guerreiros e heróis. O que precisa fazer é dissociar isso de sexualidade. A homossexualidade sempre esteve presente na história da humanidade e no esporte algumas modalidades legitimavam mais essa condição. Hoje esse preconceito, esse tabu, está se quebrando e fazendo pessoas serem quem elas são. Há muito mais informação a respeito. Novelas e redes sociais estão mostrando o lado positivo das pessoas como mulher, homem ou gay e tudo isso vem fazendo as pessoas levarem a identidade com mais leveza. E isso no esporte só vem a favorecer porque sua autoestima aumenta. Hoje os atletas que estão buscando sua orientação estão sendo estimulados a revelar para a comunidade quem são. E goste quem gostar - disse Alessandra Dutra, psicóloga do esporte, que trabalha com a seleção feminina de handebol, atletas do judô, tênis, futebol e lutas.

Nos últimos anos, ela passou a perceber o interesse maior dos técnicos das modalidades com que trabalha a respeito do tema. Também viu se diluir uma preocupação comum nas décadas de 80 e 90: a preocupação de atletas heterossexuais de terem de dividir o quarto durante as viagens com companheiros de equipe que eles sabiam ou suspeitavam terem outra orientação.


- Isso foi sendo desmistificado. O respeito é a base. Com relação aos treinadores, eles querem entender melhor um pouco isso. Porque performance é uma coisa e preferência sexual é outra, e quanto mais o atleta se sentir bem com ele mesmo, mais terá uma performance melhor. Em 21 anos de profissão, nunca peguei um treinador preconceituoso. Pelo contrário. E sempre mostrei que o fato de um atleta ser gay não significa que não possa ser um craque, um goleiro extraordinário, por exemplo, e isso facilita. Eu fui bailarina profissional, tive que conviver com homossexuais e para mim isso é muito natural. Numa equipe é importante mostrar que performance é diferente de gênero e quanto mais o atleta for informado e formado, vai conseguir lidar muito positivamente com a identidade dele. Dentro de uma equipe o homofóbico tem duas saídas: ou começa a trabalhar isso ou sai. Se o esporte é coletivo tem que estimular a lidar com as diferenças sejam de personalidade ou sexualidade. Todos são profissionais. Nos esportes em que trabalhei isso sempre foi tratado naturalmente. Temos que, desde as categorias de base, orientar, não banalizar, não erotizar e nem colocar como uma doença. 

Alessandra Dutra handebol (Foto: Reprodução/Facebook)Alessandra Dutra, psicóloga do time de handebol campeão mundial (Foto:Reprodução/Facebook)
 
A decisão entre revelar ou não requer coragem e envolve muitas questões. Desde o medo do olhar da sociedade, até o receio da rejeição do patrocinador. Mas nada parece se equiparar com a preocupação a respeito do julgamento dos pais, e a exposição ou sofrimento que isso possa vir a provocar nos familiares. De acordo com Alessandra, já houve atletas que vieram a público, se assustaram com a repercussão e acharam que os pais não estavam preparados para os comentários que poderiam surgir. Em outra situação, uma ouviu palavras duras da mãe: "Se soubesse que ia virar isso, não teria tido você".

- É difícil e isso pode prejudicar um desempenho. Você é um atleta carismático, é ovacionado por todos e, de repente, você é gay. E aí vão falar: E o que isso vai fazer na cabeça das crianças? Acho a questão aqui não é de ser gay ou não, mas de caráter. O exemplo que ele passa para a sociedade. É melhor dar exemplo ou mostrar que é machão e que está em balada toda semana traindo sua esposa? Precisamos trabalhar muito bem no esporte o que chamo de tríade: formação, informação e humanidade. O que leva alguém a esconder é não se sentir apoiado ou seguro no staff dele para se revelar. E aí a pessoa fica presa na profissão, não consegue evoluir. O que combate o preconceito é a informação e o Brasil ainda é um país atrasado nesse quesito. Lá fora o preconceito é menor. 
sochi e a lei antigay

Não na Rússia. Até 1993 a homossexualidade era considerada crime no país e encarada como doença mental até 1999. Na metade do ano passado, a criação da lei antigay gerou polêmica. Ao promulgá-la, o presidente Vladimir Putin determinou a proibição de atos de propaganda homossexual diante de menores de idade e punição com multas para quem desobedecê-la. A reação contrária ultrapassou fronteiras. Fez ainda mais eco depois que Yelena Isinbayeva, rainha do salto com vara, mostrou discurso afinado com o governo russo. 

No Mundial de atletismo de Moscou, ela disse que os estrangeiros que disputarão as Olimpíadas de Inverno de Sochi devem respeitar as regras e manterem a discrição. Ao saber que naquele campeonato algumas atletas competiram com unhas pintadas nas cores do arco-íris em apoio ao movimento gay, Isinbayeva declarou que os costumes de seu povo deveriam ser respeitados. Diante da grande repercussão, disse que foi um mal-entendido e que era contra qualquer tipo de discriminação, mas que os russos são totalmente diferentes das outras nações europeias com relação ao assunto. 

Boicotes passaram a ser cogitados, campanhas tomaram a grande rede, protestos passaram a ser feitos, marchas em solo olímpico passaram a ser coibidas, patrocinadores viraram alvos, o Comitê Olímpico Internacional (COI) passou a ser questionado e respostas políticas foram dadas. Em mensagem de clara oposição, a Casa Branca anunciou que o presidente Barack Obama decidiu incluir na delegação americana a ex-tenista Billie Jean King e a jogadora de hóquei, medalhista olímpica, Caitlin Cahow - as duas assumidamente lésbicas. Na quarta-feira, King comunicou que não poderia viajar devido a um problema de saúde da mãe, que acabou falecendo nesta sexta. Já o líder americano alegou problemas de agenda para justificar a sua não ida a Sochi. Os da Alemanha e da França também não estarão presentes.   

protesto gay russia moscou (Foto: AP) 
Ativistas fazem protesto contra lei antigay em 
Moscou (Foto: AP)

Pouco antes do início dos Jogos, o presidente do COI, Thomas Bach, confirmou em entrevista que os atletas estão livres para pedir igualdade nas coletivas de imprensa, sem risco de sanções. Mas durante as competições e cerimônias de premiação, os protestos não serão tolerados. 

- Está muito claro que os Jogos não podem ser usados como uma plataforma para manifestações políticas, não importa o quão boa seja a causa - afirmou. 

Na contramão de Bach veio Dmitry Chernyshenko. Presidente do comitê organizador, ele disse que os que quiserem falar sobre o assunto terão de fazê-lo nas zonas de protesto, a 18km da Vila Olímpica. Na tentativa de minimizar a polêmica, Putin disse recentemente que não haverá qualquer tipo de discriminação e que os Jogos estarão alinhados com o espírito olímpico. 
Um grupo formado por 52 atletas e ex-atletas olímpicos de diversas modalidades e nacionalidades, fez uma petição para que as autoridades russas reconsiderem a lei antigay. Doze dele estarão competindo em Sochi. As críticas foram extensivas ao COI e patrocinadores oficiais. Os signatários entendem que eles poderiam ter feito mais e pressionado as autoridades russas. 

Tomam por base o princípio 6 da Carta Olímpica que diz que "qualquer forma de discriminação no que se refere a um país ou uma pessoa por motivos de raça, religião, política, de gênero ou de outro tipo, é incompatível com a participação no Movimento Olímpico". 

Entre os que se posicionaram estão nomes como Martina Navratilova, Andy Roddick, Steve Nash e Greg Louganis. O meio-fundista americano Nick Symmonds também faz parte da lista. Depois de ter conquistado a prata nos 800m no Mundial de Moscou, ele criticou a lei a seu modo. Aproveitou a presença dos jornalistas, inclusive russos, na zona mista do estádio e dedicou a medalha a todos os seus amigos gays. Sentiu a necessidade de falar sobre o assunto depois de ter visto um vídeo de pessoas do mesmo sexo sendo empurradas na rua por estarem de mãos dadas ou se beijando. A imagem de intolerância o incomodou.  

Embora os protestos durante as Olimpíadas sejam esperados, a psicóloga Alessandra Dutra acredita que os movimentos organizados possam não ser a opção mais eficiente.

 - Esses tipos de movimento anti-homofobia criam mais preconceito. Divulgam de forma errada. Acho que tem que ser uma coisa naturalizada, mostrar que o atleta é homossexual e é bom dentro da quadra, do campo e da pista. O fato de ganhar medalha e falar "eu sou gay", esse sim é o movimento mais forte. 

a experiência de michael
A frase curta precisou de um "empurrão" para ser proferida por Michael. Em 2011, durante a semifinal da Superliga entre Vôlei Futuro e Cruzeiro, os gritos vindos da arquibancada tinham endereço certo. Embora já tivesse passado por situações semelhantes, sendo chamado de "bicha" por um grupo de quatro ou cinco pessoas, naquele dia o central se surpreendeu com o tamanho do coro. O comportamento preconceituoso, os insultos incomodaram também os companheiros de equipe, que se aproximaram dele para saber como o central estava. Deu pouca atenção, fez ouvido de mercador para manter a concentração no jogo. Só depois da partida, quando assistiu ao VT, percebeu que era hora de dar uma resposta.

Michel vôlei (Foto: July Stanzioni / SM Press)Michael defende o time de São Bernardo (Foto: July Stanzioni / SM Press)
 
- Lembro que quando me perguntaram como eu estava respondi: "Estão me chamando de Mica e não de bicha". Depois eu assisti ao vídeo e quis falar sobre tudo porque foi pior do que imaginei. E depois que revelei aquilo tomou uma dimensão grande. Tenho que agradecer a Deus e fico lisonjeado de ter algo para falar. Só aconteceram coisas boas depois daquilo. Sempre vai ter alguém que vai apontar o dedo, mas sempre tem muita gente que parabeniza pela iniciativa. Hoje minha vida continua como era antes. Só sou mais conhecido. Era um tabu falar sobre isso e eu achava que não tinha tanto nome como outros atletas para falar sobre essa situação. Se aquilo não tivesse acontecido não sei se teria assumido - disse o meio de rede do São Bernardo.
Antes do episódio, nunca viu necessidade de tornar pública sua orientação sexual. Desde os 12 anos, a mãe tinha conhecimento e mostrava preocupação com as dificuldades que o filho poderia vir a enfrentar no futuro. Naquela época, o tom das brincadeiras feitas por amigos e conhecidos nunca pareceu desrespeitoso. Quando ficou mais velho, a internet passou a mostrar seu lado mais cruel. 

- As pessoas sempre tinham aquela curiosidade: "Será que ele é ou não?" Mas aquelas piadinhas na internet me incomodavam muito. Pensava: sou atleta, minha vida é pública, mas aquilo me irritava mesmo. Minha mãe, por ser lésbica, se preocupava. Só que depois que assumi não tenho mais preocupação em esconder nada, e não estou mais na boca do povo (risos). O esporte é um meio machista, mas sempre tive o respeito dos meus companheiros e eles o meu. Nunca vou poder dizer que fui discriminado ou cortado de um time ou seleção de base por ser homossexual. Tem gente que passou por situações mais difíceis. Tenho amigos que sofreram muito, de se trancar em casa, de se isolar e viver numa mentira. E tem atleta que sofre muito com isso. Deve ser angustiante.  

Michael sentiu todos os medos. No entanto, conseguiu lidar bem com a pressão e os olhares que se voltaram em sua direção. Nunca deixou que eles o prejudicassem em quadra. Nem todos conseguem. E a maioria prefere resguardar a vida pessoal. 

- Esse é um tema que está muito em voga hoje, e que já é mais discutido do que nos meus tempos como jogador. Acho que muitos não querem falar, vivem esse drama de não quererem se expor para não serem julgados. Atletas e artistas veem a pressão do  escrutínio público do que fazem e não fazem. Eu acho que não é preciso se expor, mas falar ou não é uma questão de foro íntimo.

 Como treinador me preocupo com problemas pessoais que possam interferir na performance dos atletas. Quando se vive um dilema ou dúvida em qualquer área você não tem a tranquilidade, a autoestima e a segurança necessárias. Temos que lembrar que ali não está uma máquina, mas uma pessoa. Ao longo da minha vida trabalhei com vários sem problemas. E sempre fui assim: se quiser conversar sobre a questão, conversamos - disse o técnico Bernardinho.

fred bousquet e florent manaudou campanha (Foto: Divulgação)Florent Manaudou e Fred Bousquet participaram da campanha (Foto: Divulgação)
 
Os progressos em torno das discussões feitos nos últimos cinco anos são comemorados por Michael. Ele acredita que no Brasil as novelas, abrindo cada vez mais espaço para personagens gays em suas tramas, têm dado uma boa contribuição para uma maior aceitação. As campanhas estreladas por grandes nomes do esporte mundial contra a homofobia, também. Ele mesmo viu um ser feita em seu apoio, depois daquele jogo na Superliga. A arquibancada se vestiu de cor de rosa, assim como seus então companheiros de Vôlei Futuro. Todos contra o preconceito. Recentemente, remadores britânicos posaram nus para um calendário. Na França, o campeão olímpico dos 50m livre, Florent Manaudou e seu cunhado Fred Bousquet, foram personagens da exposição "Casais Imaginários". Na Alemanha, os jogadores de vôlei de praia Jonas Reckermann e Julius Brink, ouro nos Jogos de Londres, aceitaram fazer parte de uma campanha na qual heterossexuais beijaram-se contra a intolerância. 

- Isso é legal porque tanta gente morre ou sofre com agressão... A homofobia assusta. Tudo que sirva para alertar as pessoas de que somos iguais, que temos os mesmos objetivos e condições de crescer é válido. Eu torci pelo beijo gay entre Félix e Niko em Amor à Vida. Então, vejo essa lei antigay e penso em como a Rússia está atrasada. Nesse momento quase o mundo inteiro faz campanha para aprovação do casamento e lá é o contrário.  Eu tenho vontade de um dia casar e ter filhos. Assumir publicamente é algo muito particular e é preciso que a pessoa esteja bem resolvida. Não tem que fazer isso para agredir a sociedade e sim para estar feliz. Acho que como nos últimos tempos está sendo mais aceito, os atletas estão se assumindo mais e as pessoas estão vendo que ali, independentemente da orientação sexual, há um bom profissional, responsável, que tem sonhos e trabalha pelas vitórias. Isso ajuda a tirar um pouco o rótulo de homossexual - admitiu o jogador. 


FONTE:
http://globoesporte.globo.com/olimpiadas/noticia/2014/02/homossexualidade-no-esporte-debate-aumenta-e-lei-gera-polemica.html

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