sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Histórias Incríveis: lendas e verdades da taça cortada ao meio no RS

Pacto contra rival entre clubes da mesma cidade origina episódio da taça dividida em torneio que virou causo popular e tem pouco registro histórico

Por Porto Alegre


Montagem Taça cortada dividida (Foto: Paulo Ludwig)As duas metades: taças do São Paulo e do Rio Grande (Foto: Willy Cesar/Arquivo Pessoal)
 
O futebol ainda engatinhava em Rio Grande, cidade portuária no sul gaúcho e berço do clube homônimo, que disputa com a Ponte Preta o posto de mais antigo do Brasil. Alguns chamavam o esporte de "bolapé", e ele mantinha os termos em inglês, uma espécie de homenagem à pátria-mãe do esporte, a Inglaterra. O gramado era "green", e a partida, "match", por exemplo. A maioria dos clubes não pagava salários - auxiliava seus jogadores a conseguir emprego. Apesar da existência de emissoras de rádio e jornais, a cobertura esportiva não tinha a velocidade do mundo contemporâneo. Terreno fértil, portanto, para o surgimento de causos curiosos - de dar inveja a qualquer fofoqueiro de plantão ou romancista talentoso. Foi neste cenário que uma mentira, repetida diversas vezes, virou verdade e se transformou em uma das maiores lendas do esporte dos Pampas: duas equipes, em uma decisão de campeonato, após inúmeros empates e incontáveis decisões por pênaltis, cansadas de tentar decidir o campeão, combinaram cortar o troféu ao meio tal qual o personagem bíblico Salomão, que, para decidir a maternidade de um bebê, mandou um serviçal separá-lo em duas partes entre as supostas mães.

Mas não foi bem assim. A divisão da Taça Confraternização realmente aconteceu entre São Paulo e Rio Grande. Porém, por outro motivo. Que envolve o Riograndense, terceiro time da cidade e que completa o enredo das "Histórias Incríveis" que o GloboEsporte.com narra a seguir.


01
rompimento e reconciliação
A Rio Grande de 1940 não era o polo naval e petrolífero das atuais plataformas da Petrobras. Porém, referência no futebol. O Rio Grande, fundado em 19 de julho de 1900, abriu a porteira para o surgimento do esporte no estado. Seu time, criado por imigrantes alemães, três anos depois, excursionaria a Porto Alegre, de barco, para uma exibição do "esporte que se praticava com os pés", conforme definição da época, em um campo improvisado onde está atualmente o Parque da Redenção - fato que influenciaria na criação do Grêmio.

Tal cenário de pioneirismo ajuda a entender como, em 1939, o Riograndense, criado em 1912 e, portanto, o mais jovem local, sagrou-se campeão estadual diante do Internacional. A realidade, porém, era de disputas intensas. Rivalidade. Tanto que... em 1940, incomodados com o sucesso do rival, São Paulo, o irmão do meio, nascido em 1908 e dono do caneco gaúcho de 1933, e Rio Grande, melhor do estado em 1936, se uniram. Decidiram boicotar o torneio municipal, vencido pelo Riograndense desde 1937 e que indicava o representante da cidade no certame maior. A fixação por quebrar a hegemonia adversária era tanta que batizaram a aliança de eixo RG-SP, uma referência nada politicamente correta ao eixo Berlim-Roma-Tóquio, que colocava a Europa em escombros e assombrava o mundo na disputa da Segunda Guerra Mundial.


A verdade é que a tática deu certo. Encabeçada pelos presidentes J.J. Oliveira Cardoso (RG) e Octavio Varella (SP), esvaziou os estádios da cidade. Jogos eram marcados, mas não aconteciam. O primeiro foi justamente o clássico Rio-Rio de 19 de maio, pois o Rio Grande não compareceu. Estava comprometido com o São Paulo para a disputa de amistosos e partidas contras equipes de Pelotas, cidade vizinha, no que a imprensa da época, especialmente o jornal "Rio Grande", definiu como "caravana da boa vizinhança". Não demorou para o público perder interesse. E o cofre do Riograndense, sem renda, começou a esvaziar. A lógica era que o prejuízo financeiro se estenderia para dentro de campo – Rio Grande e São Paulo só começaram a se preocupar com a ameaça de punição severa após o não pagamento das constantes multas aplicadas pela associação local.

Taça cortada dividida - Reprodução Diário de Notícias (Foto: Reprodução) 
Jornal 'Diário de Notícias' fala da pacificação 
no futebol de Rio Grande: um triangular 
entre os rivais (Foto: Reprodução)
 
O impasse se estendeu. Por mais de dois meses. Não foi resolvido na primeira reunião na sede da antiga Federação Rio-Grandense de Futebol (atual Federação Gaúcha de Futebol), centro de Porto Alegre. Precisou de uma segunda, saudada pelos jornalistas da capital, como os do "Diário de Notícias", em edição de 26 de julho, com o título de "Pacificado o Futebol Riograndino".

A paz se resumia a um triangular entre os times - turno único, pontos corridos e em estádio neutro - que arrecadaria dinheiro e o destinaria ao pagamento das multas. A disputa, que começaria dois dias depois, foi batizada de Taça Confraternização, oferecida pelo presidente da FRG, Cícero Ahrends. Tudo estava acertado para a retomada do citadino, que, embora o boicote, seria vencido pelo Riograndense. Mas o mais inverossímil do enredo estaria por vir.


As circunstâncias da reunião mostram o quão forte era a aliança entre São Paulo e Rio Grande. Até então. E, especialmente, após a paz ter sido selada. J.J. Oliveira Cardoso, presidente do Rio Grande, foi ao encontro com uma procuração do colega Octavio Varella. Pense bem: o seu clube está prestes a ser punido, faltou a jogos, tem uma chance de ser perdoado e, bem ou mal, atingir o feito proposto lá atrás e, mesmo assim, o dirigente máximo dele não comparece? Manda um representante, de outro clube? Foi o que aconteceu. Além de Cardoso e de Ahrends, Jaime Ramos, presidente da Associação Rio-Grandense de Futebol, assinou o acordo. Não há registro público de quem representou o Riograndense.

Alívio geral, claro. As manchetes da época comprovam.
"Os amantes do futebol terão indenização pelo tempo de inatividade esportiva", anunciou o jornal "Rio Grande", de 26 de julho de 1940.

"Esquecer rancores e malquerenças é a missão dos desportistas de Rio Grande", completou o jornal "O Tempo", mesma data, igualmente da mesma cidade.

02
A DISPUTA E O VENCEDOR

Lá foram, então, os três clubes disputar o torneio. E os jogos tiveram os seguintes placares:
- 28/07/1940: São Paulo 4 x 1 Riograndense
- 04/08/1940: São Paulo 1 x 1 Rio Grande
- 11/08/1940: Rio Grande 2 x 4 Riograndense


E a seguinte pontuação – na época, a vitória rendia dois pontos: São Paulo, três pontos, Riograndense, dois pontos, e Rio Grande, um ponto. Não houve empate. Não houve necessidade de disputa de pênaltis. Não houve necessidade de inúmeras partidas. O São Paulo foi o legítimo campeão. Dentro de campo. Sem choro nem vela. Tudo registrado pela imprensa local:


Taça cortada dividida - Reprodução Jornal Rio Grande (Foto: Reprodução) 
Texto do 'Jornal Rio Grande' em 21 de 
outubro de 1940 comprova entrega da 
taça ao São Paulo (Foto: Reprodução)
 
"O São Paulo conquista a Taça Confraternização. O cotejo de ontem marcou um triunfo nítido do Riograndense", anunciou o jornal "Rio Grande", em 12 de agosto, um dia após o Riograndense vencer o Rio Grande - e o São Paulo ser campeão.

Há registro inclusive da entrega do troféu ao São Paulo, pelo mesmo jornal. Foi em 21 de outubro, matéria publicada um dia depois da cerimônia, que antecedeu a partida entre Riograndense e Bancário, pelo campeonato regional. Estavam presentes o presidente da federação, Remy Gorga, e o prefeito da cidade, Roque Aíta Jr., que inclusive discursou. Diz o jornal:
"Foi entregue ao valoroso SC São Paulo a Taça Confraternização oferecida pela FRDG."

03
A LENDA E A VERDADE

Mas, então, como surgiu a história da divisão do troféu? E a lenda dos inúmeros jogos? Empates? Pênaltis? Há de tudo. Invenção, falta de registros, má informação e o contexto de uma época difícil para a comunicação.


- A falta de informação criou as condições para o surgimento da lenda. A biblioteca aqui de Rio Grande tem a história, mas as pessoas não se preocuparam com ela. Apelaram para a imaginação. Quem conta um conto, aumenta um ponto, diz o ditado. Foi o que aconteceu. Apelaram para a ficção. O fato é o que os jornais da época noticiaram: o São Paulo foi o campeão. Até porque não se conhecia a disputa por pênaltis ainda – atesta o jornalista e escritor Willy Cesar, autor do livro "Um século de futebol popular", que conta a história do São Paulo, e responsável pela correção de uma passagem inverídica.

As pessoas não se preocuparam com a história. Apelaram para a imaginação. Quem conta um conto, aumenta um ponto, diz o ditado. Foi o que aconteceu. Apelaram para a ficção
Willy Cesar, jornalista e escritor

Foi a pesquisa de Willy, especialmente nos jornais locais, que comprovou os resultados de campo. E a entrega da taça ao São Paulo. Acontece que o assunto fora esquecido pela imprensa de Porto Alegre. Até 1967, diz ele, não há uma linha sobre o tema. Mais de 20 anos depois, a versão fictícia apareceu. Baseada em depoimentos de ex-jogadores e ex-dirigentes. Das duas equipes. E perdurou. O jornal "Zero Hora", em 1999, por exemplo, publicou uma entrevista com Ernani Ramos Lages, ex-presidente do Rio Grande, que tinha 25 anos em 1940. Ele confirmou a versão, o último relato público encontrado por Willy.

"A taça dividida é uma lenda urbana. As lendas não resistem à pesquisa documental", apontou Luiz Carlos Pegas no livro "SCRG, Apontamentos", ao conseguir ter acesso à tabela dos jogos do campeonato.

Por qual razão, então, a lenda foi criada? Não há provas, apenas suposições. A principal: a lealdade entre os clubes. Basta ver o que aconteceu. Para retribuir a demonstração de apoio na aliança contra o Riograndense, a direção do São Paulo decidiu dar metade da taça ao Rio Grande. Contou com a ajuda de um torcedor e sócio do clube: Emidio Mondini, mecânico-chefe da Viação Férrea. A ele foi dada a missão de concluir o que, guardadas as proporções e pegando apenas como simbolismo, Salomão desistiu depois que a mãe verdadeira disse preferir ver o filho vivo mesmo nas mãos de outra do que morto. Quem lembra é o filho dele, Emidio Mondini Jr, atualmente com 80 anos, um técnico em contabilidade aposentado.

- Tinha sete anos na época e me lembro do pai trabalhando na oficina de casa. Ele chegou com a taça e contou que tinha de dividi-la. Que seria uma homenagem. Anos depois, todos falavam que eram pelos empates decisivos. O pai cortou porque a direção do clube pediu a ele. E foi um lindo trabalho – conta Emidio Jr.

Durou uma semana. A taça precisou ser suspensa, com arame. Uma serra, específica para madeira, foi usada. Para não causar danos ao material de ferro. Tudo foi feito à mão, calculado milimetricamente. O tio de Emidio Jr, Alfredo Mondini, marceneiro na cidade, foi o responsável por fazer as bases de madeira. Para cada uma das partes. Tudo nos fundos da casa, que ficava na Avenida Marechal Deodoro, em Rio Grande.

- Eles as colocaram na mesa de casa. A maior preocupação era não perder o alinhamento da taça. Que as duas ficassem iguais. Conseguiram – completa Emidio Mondini Jr.

Recontar esta parte da história é difícil. Emidio Mondini Jr. é o único vivo que tem alguma relação com o fato. Dirigentes e jogadores morreram. Testemunhas não foram identificadas. E, mais uma vez, os registros são escassos. Sabe-se apenas que uma comitiva do São Paulo foi à sede do Rio Grande.

- A direção do São Paulo decidiu não dar publicidade à incrível decisão, o que parece fazer parte de uma estratégia do clube. Não se sabe a data do ocorrido. Há duas versões: 26 de dezembro ou 28 de dezembro de 1940. Os jornais não publicaram uma linha. E não há documentos nos museus dos clubes. A lealdade prevaleceu. E, se fosse o contrário, suponho, o Rio Grande faria o mesmo – diz Willy Cesar.

A prova cabal é a taça dividida. Cada uma no museu dos clubes. A do São Paulo tem os seguintes dizeres: "Taça Confraternização. Oferecida pela FRGD. Vencedor SC São Paulo. 1940." A do Rio Grande, estes: "Sport Club São Paulo. Ao Sport Club Rio Grande".

04
O FUTURO

O que sugere uma reflexão interessante, proposta por Helena Portella, conselheira do Rio Grande, voluntariamente responsável pelo memorial do clube:

- Não encontramos nenhuma explicação para o que aconteceu, embora o episódio seja recente. Muito material se perdeu. A cidade é antiga, deveria ter mais acervos, mas não é a realidade. O tempo aqui é úmido, o papel da época era seda. É difícil a preservação. Isso explica a falta de informação, embora, para mim, pouco importe o que aconteceu: não quero mudar a história. Ela existe. Por algum motivo, eles decidiram dividir a taça. Não há como provar. Eu fico com a visão das pessoas da época sobre o futebol. O estado deveria ter orgulho da sua história. Temos o clube mais antigo do Brasil e pouco valorizamos. Há muita briga no futebol. As pessoas se jogam pedras. O esporte é bonito. Basta ver a sua história. É o que eu sempre repito nas palestras e nas visitas aqui. E é o que ainda vamos conseguir.


FONTE:
http://globoesporte.globo.com/rs/noticia/2014
/01/historias-incriveis-lendas-e-verdades-da-
taca-cortada-ao-meio-no-rs.html

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