Pacto contra rival entre clubes da mesma cidade origina episódio da taça dividida em torneio que virou causo popular e tem pouco registro histórico
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As duas metades: taças do São Paulo e do Rio Grande (Foto: Willy Cesar/Arquivo Pessoal)
Mas não foi bem assim. A divisão da Taça Confraternização realmente aconteceu entre São Paulo e Rio Grande. Porém, por outro motivo. Que envolve o Riograndense, terceiro time da cidade e que completa o enredo das "Histórias Incríveis" que o GloboEsporte.com narra a seguir.
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rompimento e reconciliação
Tal cenário de pioneirismo ajuda a entender como, em 1939, o Riograndense, criado em 1912 e, portanto, o mais jovem local, sagrou-se campeão estadual diante do Internacional. A realidade, porém, era de disputas intensas. Rivalidade. Tanto que... em 1940, incomodados com o sucesso do rival, São Paulo, o irmão do meio, nascido em 1908 e dono do caneco gaúcho de 1933, e Rio Grande, melhor do estado em 1936, se uniram. Decidiram boicotar o torneio municipal, vencido pelo Riograndense desde 1937 e que indicava o representante da cidade no certame maior. A fixação por quebrar a hegemonia adversária era tanta que batizaram a aliança de eixo RG-SP, uma referência nada politicamente correta ao eixo Berlim-Roma-Tóquio, que colocava a Europa em escombros e assombrava o mundo na disputa da Segunda Guerra Mundial.
A verdade é que a tática deu certo. Encabeçada pelos presidentes J.J. Oliveira Cardoso (RG) e Octavio Varella (SP), esvaziou os estádios da cidade. Jogos eram marcados, mas não aconteciam. O primeiro foi justamente o clássico Rio-Rio de 19 de maio, pois o Rio Grande não compareceu. Estava comprometido com o São Paulo para a disputa de amistosos e partidas contras equipes de Pelotas, cidade vizinha, no que a imprensa da época, especialmente o jornal "Rio Grande", definiu como "caravana da boa vizinhança". Não demorou para o público perder interesse. E o cofre do Riograndense, sem renda, começou a esvaziar. A lógica era que o prejuízo financeiro se estenderia para dentro de campo – Rio Grande e São Paulo só começaram a se preocupar com a ameaça de punição severa após o não pagamento das constantes multas aplicadas pela associação local.
Jornal 'Diário de Notícias' fala da pacificação
no futebol de Rio Grande: um triangular
entre os rivais (Foto: Reprodução)
A paz se resumia a um triangular entre os times - turno único, pontos corridos e em estádio neutro - que arrecadaria dinheiro e o destinaria ao pagamento das multas. A disputa, que começaria dois dias depois, foi batizada de Taça Confraternização, oferecida pelo presidente da FRG, Cícero Ahrends. Tudo estava acertado para a retomada do citadino, que, embora o boicote, seria vencido pelo Riograndense. Mas o mais inverossímil do enredo estaria por vir.
As circunstâncias da reunião mostram o quão forte era a aliança entre São Paulo e Rio Grande. Até então. E, especialmente, após a paz ter sido selada. J.J. Oliveira Cardoso, presidente do Rio Grande, foi ao encontro com uma procuração do colega Octavio Varella. Pense bem: o seu clube está prestes a ser punido, faltou a jogos, tem uma chance de ser perdoado e, bem ou mal, atingir o feito proposto lá atrás e, mesmo assim, o dirigente máximo dele não comparece? Manda um representante, de outro clube? Foi o que aconteceu. Além de Cardoso e de Ahrends, Jaime Ramos, presidente da Associação Rio-Grandense de Futebol, assinou o acordo. Não há registro público de quem representou o Riograndense.
Alívio geral, claro. As manchetes da época comprovam.
"Os amantes do futebol terão indenização pelo tempo de inatividade esportiva", anunciou o jornal "Rio Grande", de 26 de julho de 1940.
"Esquecer rancores e malquerenças é a missão dos desportistas de Rio Grande", completou o jornal "O Tempo", mesma data, igualmente da mesma cidade.
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A DISPUTA E O VENCEDOR
Lá foram, então, os três clubes disputar o torneio. E os jogos tiveram os seguintes placares:
- 28/07/1940: São Paulo 4 x 1 Riograndense
- 04/08/1940: São Paulo 1 x 1 Rio Grande
- 11/08/1940: Rio Grande 2 x 4 Riograndense
E a seguinte pontuação – na época, a vitória rendia dois pontos: São Paulo, três pontos, Riograndense, dois pontos, e Rio Grande, um ponto. Não houve empate. Não houve necessidade de disputa de pênaltis. Não houve necessidade de inúmeras partidas. O São Paulo foi o legítimo campeão. Dentro de campo. Sem choro nem vela. Tudo registrado pela imprensa local:
Texto do 'Jornal Rio Grande' em 21 de
outubro de 1940 comprova entrega da
taça ao São Paulo (Foto: Reprodução)
Há registro inclusive da entrega do troféu ao São Paulo, pelo mesmo jornal. Foi em 21 de outubro, matéria publicada um dia depois da cerimônia, que antecedeu a partida entre Riograndense e Bancário, pelo campeonato regional. Estavam presentes o presidente da federação, Remy Gorga, e o prefeito da cidade, Roque Aíta Jr., que inclusive discursou. Diz o jornal:
"Foi entregue ao valoroso SC São Paulo a Taça Confraternização oferecida pela FRDG."
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A LENDA E A VERDADE
Mas, então, como surgiu a história da divisão do troféu? E a lenda dos inúmeros jogos? Empates? Pênaltis? Há de tudo. Invenção, falta de registros, má informação e o contexto de uma época difícil para a comunicação.
- A falta de informação criou as condições para o surgimento da lenda. A biblioteca aqui de Rio Grande tem a história, mas as pessoas não se preocuparam com ela. Apelaram para a imaginação. Quem conta um conto, aumenta um ponto, diz o ditado. Foi o que aconteceu. Apelaram para a ficção. O fato é o que os jornais da época noticiaram: o São Paulo foi o campeão. Até porque não se conhecia a disputa por pênaltis ainda – atesta o jornalista e escritor Willy Cesar, autor do livro "Um século de futebol popular", que conta a história do São Paulo, e responsável pela correção de uma passagem inverídica.
As pessoas não se preocuparam com a história. Apelaram para a imaginação.
Quem conta um conto, aumenta um ponto, diz o ditado. Foi o que
aconteceu. Apelaram para a ficção
Willy Cesar, jornalista e escritor
"A taça dividida é uma lenda urbana. As lendas não resistem à pesquisa documental", apontou Luiz Carlos Pegas no livro "SCRG, Apontamentos", ao conseguir ter acesso à tabela dos jogos do campeonato.
Por qual razão, então, a lenda foi criada? Não há provas, apenas suposições. A principal: a lealdade entre os clubes. Basta ver o que aconteceu. Para retribuir a demonstração de apoio na aliança contra o Riograndense, a direção do São Paulo decidiu dar metade da taça ao Rio Grande. Contou com a ajuda de um torcedor e sócio do clube: Emidio Mondini, mecânico-chefe da Viação Férrea. A ele foi dada a missão de concluir o que, guardadas as proporções e pegando apenas como simbolismo, Salomão desistiu depois que a mãe verdadeira disse preferir ver o filho vivo mesmo nas mãos de outra do que morto. Quem lembra é o filho dele, Emidio Mondini Jr, atualmente com 80 anos, um técnico em contabilidade aposentado.
- Tinha sete anos na época e me lembro do pai trabalhando na oficina de casa. Ele chegou com a taça e contou que tinha de dividi-la. Que seria uma homenagem. Anos depois, todos falavam que eram pelos empates decisivos. O pai cortou porque a direção do clube pediu a ele. E foi um lindo trabalho – conta Emidio Jr.
Durou uma semana. A taça precisou ser suspensa, com arame. Uma serra, específica para madeira, foi usada. Para não causar danos ao material de ferro. Tudo foi feito à mão, calculado milimetricamente. O tio de Emidio Jr, Alfredo Mondini, marceneiro na cidade, foi o responsável por fazer as bases de madeira. Para cada uma das partes. Tudo nos fundos da casa, que ficava na Avenida Marechal Deodoro, em Rio Grande.
- Eles as colocaram na mesa de casa. A maior preocupação era não perder o alinhamento da taça. Que as duas ficassem iguais. Conseguiram – completa Emidio Mondini Jr.
Recontar esta parte da história é difícil. Emidio Mondini Jr. é o único vivo que tem alguma relação com o fato. Dirigentes e jogadores morreram. Testemunhas não foram identificadas. E, mais uma vez, os registros são escassos. Sabe-se apenas que uma comitiva do São Paulo foi à sede do Rio Grande.
- A direção do São Paulo decidiu não dar publicidade à incrível decisão, o que parece fazer parte de uma estratégia do clube. Não se sabe a data do ocorrido. Há duas versões: 26 de dezembro ou 28 de dezembro de 1940. Os jornais não publicaram uma linha. E não há documentos nos museus dos clubes. A lealdade prevaleceu. E, se fosse o contrário, suponho, o Rio Grande faria o mesmo – diz Willy Cesar.
A prova cabal é a taça dividida. Cada uma no museu dos clubes. A do São Paulo tem os seguintes dizeres: "Taça Confraternização. Oferecida pela FRGD. Vencedor SC São Paulo. 1940." A do Rio Grande, estes: "Sport Club São Paulo. Ao Sport Club Rio Grande".
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O FUTURO
O que sugere uma reflexão interessante, proposta por Helena Portella, conselheira do Rio Grande, voluntariamente responsável pelo memorial do clube:
- Não encontramos nenhuma explicação para o que aconteceu, embora o episódio seja recente. Muito material se perdeu. A cidade é antiga, deveria ter mais acervos, mas não é a realidade. O tempo aqui é úmido, o papel da época era seda. É difícil a preservação. Isso explica a falta de informação, embora, para mim, pouco importe o que aconteceu: não quero mudar a história. Ela existe. Por algum motivo, eles decidiram dividir a taça. Não há como provar. Eu fico com a visão das pessoas da época sobre o futebol. O estado deveria ter orgulho da sua história. Temos o clube mais antigo do Brasil e pouco valorizamos. Há muita briga no futebol. As pessoas se jogam pedras. O esporte é bonito. Basta ver a sua história. É o que eu sempre repito nas palestras e nas visitas aqui. E é o que ainda vamos conseguir.
FONTE:
http://globoesporte.globo.com/rs/noticia/2014
/01/historias-incriveis-lendas-e-verdades-da-
taca-cortada-ao-meio-no-rs.html
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