quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Artilheiro, polêmico e mártir: conheça o zambiano que 'desbancou' Messi


Os 106 gols de Chitalu em 1972, segundo a federação local, são só a parte mais famosa de uma carreira marcada por polêmicas e um trágico acidente

Por Felipe Schmidt Rio de Janeiro

Túmulo de Godfrey Chitalu na Zâmbia (Foto: Reprodução)O túmulo de Godfrey Chitalu na Zâmbia: ídolo do
futebol nacional (Foto: Reprodução)

Há um mês, Godfrey "Ucar" Chitalu era apenas um nome obscuro conhecido por poucos fãs africanos de futebol e longe de fazer parte do Olimpo do futebol. De repente, porém, tudo mudou: o ex-atacante da Zâmbia, falecido em 1993, foi envolvido em uma polêmica com ninguém menos que Lionel Messi, o maior jogador da atualidade. De acordo com as contas da federação de seu país, o ex-atleta anotou 106 gols em jogos oficiais em 1972 (pelo Kabwe Warriors e pela seleção), contra 90 do argentino em 2012, o que o transformaria no maior artilheiro em um ano na história.
Contas à parte, a carreira de Chitalu é muito mais interessante do que apenas a disputa pelo recorde com Messi. Antes mesmo de toda a polêmica sobre seus gols em 1972 vir à tona, Chitalu já era considerado o maior ídolo do futebol da Zâmbia. Ao todo, ele venceu o prêmio de melhor jogador do país em cinco oportunidades, foi artilheiro do campeonato local seis vezes, e conquistou, ao todo, 10 troféus por Kitwe United e Kabwe Warriors, clubes que defendeu. Pela seleção, fez parte do elenco que foi vice-campeão da Copa Africana de Nações em 1974. Em 2006, foi incluído pela Confederação Africana de Futebol na lista dos 200 melhores jogadores da história do continente.

Apesar deste currículo, pouco se sabia sobre o jogador antes de toda a confusão com Messi. Aliás, controvérsia parece fazer parte de toda a carreira futebolística do artilheiro zambiano, nascido em 1947. Comparado a Edmundo pelo historiador Jerry Muchimba, responsável pela pesquisa que listou todos os seus gols, Ucar colecionou histórias curiosas dentro e fora de campo da mesma maneira que balançou as redes adversárias.

- Ele era explosivo e muito temperamental, especialmente quando começou a carreira. Por outro lado, não há registro de que tinha um comportamento condenável fora de campo. Também era muito criticado por não colaborar na marcação e ser individualista. Não acho que Balotelli se pareça com ele, porque Mario faz coisas loucas e sempre desaponta em campo. A habilidade de Chitalu nunca foi questionada. Acho que Edmundo é mais parecido com ele. Controverso, mas um brilhante jogador – contou Muchimba.

Godfrey Chitalu, da Zâmbia (Foto: Zambian Football)Chitalu em ação: zambiano teria superado Messi em número de gols em um ano  (Foto: Zambian Football)

Suspenso por “falsidade ideológica”
Entre os casos mais emblemáticos da personalidade de Chitalu estão as reclamações contra a deslealdade dos adversários e as constantes discussões com árbitros. Em uma ocasião, em 1967, quando defendia o Kitwe United num duelo contra o Lusaka, foi advertido por diversas entradas violentas. Ao ser questionado pelo juiz sobre seu nome, respondeu que era Dennis Law (um ex-jogador escocês, tido como ídolo do zambiano) e foi expulso imediatamente. Inconformado, se recusou a sair de campo e teve de ser acompanhado por policiais. Acabou suspenso pelo resto da temporada pelas autoridades.

Por outro lado, a qualidade técnica de Chitalu não era questionada. Afinal, no ano seguinte à confusão contra o Lusaka, anotou 81 gols pelo Kitwe, segundo os registros, ajudando o time a chegar à decisão da Castle Cup.

- Eu era criança quando vi Chitalu jogar. Ele era ambidestro e tinha um bom chute de fora da área. Também era muito rápido e driblava os defensores com facilidade. E, fisicamente, era tão forte quanto Pelé – disse Andrew Kamanga, atual presidente do Kabwe Warriors, clube pelo qual Chitalu brilhou em 1972.

Até mesmo um combinado de jogadores brasileiros encarou o “Rei do Gol”, como Chitalu ficou conhecido. Muchimba conta que, durante sua pesquisa para catalogar os feitos do artilheiro, se deparou com uma reportagem num jornal local detalhando um amistoso entre a seleção da Zâmbia e uma equipe que dizia representar a seleção brasileira sub-23.


Godfrey Chitalu, da Zâmbia (Foto: Reprodução/Nieuwsblad.be)Chitalu com a seleão da Zâmbia na Copa Africana
de 1974  (Foto: Reprodução/Nieuwsblad.be)

- A equipe brasileira estava numa turnê pela África, e enfrentou a Zâmbia em maio de 1973. Antes do jogo, todos estavam preocupados de que aquela não era a verdadeira seleção brasileira, e logo se descobriu que era um time composto por jogadores paulistas. Palmeiras, São Paulo e Corinthians tinham colaborado com três atletas cada. A Zâmbia venceu por 2 a 1, e Chitalu fez um gol. Após a partida, o técnico brasieiro, Roberto Sanchez, afirmou: ‘O Godfrey Chitalu de vocês é muito bom. É o tipo de jogador que queremos no Brasil”. Os times se enfrentaram outras duas vezes, com um empate em 3 a 3 e outra vitória por 2 a 1 da Zâmbia – relatou o historiador.

Companheiro de Chitalu na época de Kabwe, o ex-jogador Edward Musonda também tem boas memórias do colega. Tanto que, ao ser questionado sobre o temperamento, preferiu despistar.

- Ele era um excelente jogador. Se tinha um comportamento explosivo (risos)? Ele era um grande jogador – brincou Musonda, por telefone.

Apelido surgiu de nome de bateria para carros

OS TÍTULOS DE GODFREY CHITALU
Campeonato Zambiano: 1971, 1972
Castle Cup: 1972
Challenge Cup: 1972
Chibuku Cup: 1970, 1971 e 1972
Charity Shield: 1971, 1972 e 1973
Artilheiro do Campeonato Zambiano: 1968, 1971, 1972, 1974, 1977, 1980
Melhor Jogador da Zâmbia: 1968, 1970, 1972, 1978, 1978
 Chitalu chegou ao Kabwe em 1971, mas não sem polêmica. Seu antigo clube relutou em liberá-lo, e a transação só foi concluída com a intervenção da federação. A briga pelo artilheiro, entretanto, valeu a pena para os Warriors: em 1972, ano do recorde de Ucar, a equipe conquistou todos os cinco títulos nacionais que disputou. O atleta só sairia do time em 1981, quando encerrou a carreira após sofrer uma lesão no braço. No ano seguinte, recebeu um prêmio da Fifa em reconhecimento aos feitos da carreira.

Apesar das polêmicas, Ucar era um ídolo na Zâmbia. Seu apelido, aliás, provém de uma marca de bateria de carro de mesmo nome, da qual ele se tornou garoto-propaganda. Tanta popularidade foi explorada pela política. No auge de Chitalu, o presidente da Zâmbia, Kenneth Kaunda, impediu o jogador de se transferir para clubes estrangeiros, afirmando que o atleta era um tesouro nacional.

- A influência de Chitalu era tanta que inspirou muitos jovens do país. Além do caso das baterias UCAR e do presidente, ele também teve um LP, intitulado “Godfrey Chitalu”, gravado com as narrações de seus gols, e o disco se tornou um bestseller, vendendo mais do que discos de música – contou o historiador Muchimba.

- Na época de Chitalu, muitos garotos jogavam futebol descalços na rua, chamando a si mesmos de Ucar – lembrou o jornalista zambiano Leonard Kotoko, da revista local “Touchline Soccer”, que escreveu uma matéria sobre o artilheiro em 2007.
Sucesso como treinador

Godfrey Chitalu, da Zâmbia (Foto: Zambian Football)Chitalu foi técnico da Zâmbia após pendurar
as chuteiras (Foto: Zambian Football)

Após se aposentar, Chitalu não ficou muito tempo longe dos gramados. Em 1983, ele se tornou auxiliar técnico do Kabwe Warriors, mas não deixou de se envolver em polêmicas. Em uma partida contra o Nkana Red Devils, invadiu o gramado e acertou um soco no árbitro, que suspendeu o jogo. O ex-jogador acabou punido pela federação: foi banido do futebol para o resto da vida, masacabou perdoado após dois anos de castigo.

O retorno ao Kabwe aconteceu em 1990, quando Chitalu assumiu o desafio de recuperar a equipe, que havia acabado de ser rebaixada para a segunda divisão. Sob o comando do ídolo, os Warriors subiram imediatamente para a elite e ainda conquistaram dois títulos: a Challenge Cup e o Troféu Campeão dos Campeões. Como resultado, o “Rei do Gol” foi considerado o melhor treinador da temporada.

Tragédia transforma ídolo em mártir
Com o bom trabalho no Kabwe, Chitalu foi chamado para assumir a seleção da Zâmbia em dezembro de 1992. O otimismo no país era geral, já que a geração era considerada a melhor da história. A classificação inédita para a Copa do Mundo de 1994 era vista com confiança. Afinal, seis anos antes, na Olimpíada de Seoul, a equipe havia chegado às quartas de finais do torneio, após golear a Itália por 4 a 0 na fase de grupos.

De fato, a Zâmbia correspondeu às expectativas. A equipe se classificou com facilidade para a fase final e caiu num grupo com Marrocos e Senegal. Entretanto, no dia 27 de abril de 1993, o avião que levava a delegação para o duelo contra os senegaleses caiu no Gabão. Chitalu, toda a comissão técnica e os 18 jogadores morreram. Marrocos acabou se classificando para o Mundial.

- A maioria dos zambianos, inclusive eu, acreditavam que o time iria se classificar para a Copa. Pouco antes do acidente, uma revista africana havia colocado o time como o favorito para vencer o grupo. Os dias após o desastre foram o período mais tenebroso da história do país. Foi difícil acreditar que um time tão excepcional havia sido dizimado – lembrou Muchimba.

Para Andrew Kamanga, presidente do Kabwe Warriors, a forma trágica como Chitalu morreu transformou o ex-jogador em um mártir na Zâmbia.

- Em seus anos como técnico, Godfrey era um exemplo de verdadeiro líder. Ele morreu em uma missão pelo país e é lembrado como um herói.
O legado de Chitalu

Godfrey Chitalu, da Zâmbia (Foto: Reprodução)Ídolo nacional, Chitalu era tema de
reportagens na imprensa  (Foto: Reprodução)

A recuperação do futebol zambiano demorou a acontecer após a tragédia. A seleção segue sem disputar um Mundial, mas, em 2012, conquistou pela primeira vez a Copa Africana de Nações. Por outro lado, o Kabwe Warriors, time que teve Chitalu no auge, sofreu com diversos problemas econômicos e passou a ter dificuldades para ficar na elite local.

- O clube foi patrocinado pela empresa Zambia Railways de 1962 até 2002, quando foi privatizada através de uma concessão. Manter um time na primeira divisão é muito caro, e nos 10 anos seguintes o Kabwe sofreu com problemas financeiros. Mas, em 2012, o governo cancelou a concessão, e agora esperamos que a empresa volte a nos apoiar – disse Kamanga.

Ainda neste ano, o Kabwe teve outra boa notícia: a equipe conseguiu voltar para a primeira divisão. E Kamanga já planeja aproveitar a nova notoriedade de seu maior ídolo.

- Nós vamos propor que o nosso estádio seja renomeado para Godfrey Chitalu 107, e queremos construir uma estátua para Chitalu. Estamos felizes pelo conhecimento dele, mesmo se a Fifa não aceitar o recorde. Queremos produzir réplicas da camisa do clube com a inscrição “Chitalu 107”. Esperamos conseguir levantar fundos para o clube e também para a família de Chitalu.

Enquanto o Kabwe tenta se levantar, a Zâmbia também busca aproveitar o novo momento de visibilidade proporcionado por seu maior ídolo. Mesmo sem o reconhecimento da Fifa e o desprezo de muitos fãs no mundo, que minimizam seu feito por causa das condições e do local em que foi alcançado, o “Rei do Gol” ainda ajuda seu país.

- O reconhecimento de Chitalu seria uma inspiração para os jovens da Zâmbia. Podemos dizer que ele fez pela Zâmbia o que Pelé fez pelo Brasil – analisou Leonard Kotoko.

FONTE:
http://globoesporte.globo.com/futebol/futebol-internacional/noticia/2012/12/artilheiro-polemico-e-martir-conheca-o-zambiano-que-desbancou-messi.html

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