GLOBOESPORTE.COM visita a pequena Veranópolis, terra do goleiro do Corinthians, e reconta sua trajetória de dificuldades e superação
Cássio, ainda como jogador de linha, aos 11 anos
(Foto: Lucas Rizzatti/Globoesporte.com)
(Foto: Lucas Rizzatti/Globoesporte.com)
- Ô, guri!
A cena esboçada linhas acima bem que poderia contar a história de algum treino do Corinthians no Japão, na última semana. Afinal, lá, do outro lado do mundo, havia frio, havia jogadores, havia bate-bola, havia traves. Havia Tite. Havia Cássio. Mas, na verdade, é o início de tudo. De quando Tite, ainda um treinador desconhecido em busca da primeira divisão do Gauchão, chamava Cássio de 'guri', como os demais garotos que catavam bolas nos treinos do Veranópolis, idos de 1992, 1993. O primeiro encontro entre técnico e goleiro, o embrião do título mundial de domingo.
Coincidência? O dicionário empresta uma definição mais assertiva: destino.
É ele, grandioso como Cássio fora contra o Chelsea, que rege a vida desse gaúcho de 25 anos.Que começou com pouco brilho - bife no domingo era banquete e as lavagens de carro valiam R$ 5 por semana. Agora, tudo reluz como a Bola de Ouro aninhada em suas mãos intermináveis. O mundo é de Cássio. Isso todos sabem. Já o mundo de Cássio, de Veranópolis (cidade serrana a 170 km de Porto Alegre, conhecida como a Terra da Longevidade) a Yokohama, você vai conhecer um pouco mais agora.
Família em frente à casa construída por Cássio, em 2007 (Foto: Lucas Rizzatti/Globoesporte.com)
Um pouco mais de Veranópolis |
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- Localizada na Serra Gaúcha - A 170 km de Porto Alegre - 23 mil habitantes - Capital brasileira da longevidade |
- Não deu para eu treinar hoje...
Bife? Só no domingo
Ganhava R$ 5 por semana das mãos do tio, que também lhe dava almoço. Mas gostava mesmo era de sanduíche. De surpresa, às vezes, rompia a porta da pequena casa, apenas um quarto e uma cozinha, sem banheiro, com uma sacola forrada de queijo, presunto e maionese. Presente para ele? Sim, mas, principalmente para a sua família.
Cuidava dela com zelo. Não apenas repartindo as benesses do minguado "salário", mas também protegendo os mais novos - a mãe chegava do serviço apenas às 23h. A distância de Lurdes ajudou Cássio a criar vínculos fortes com a avó, Dona Maria Luiza, de 65 anos. Tanto que, até hoje, a chama de 'mãe', provocando confusão aos menos chegados.
Kojac mostra faixa e apresenta a local em que Cássio trabalhava (Foto: Lucas Rizzatti/Globoesporte.com)
ro dos campinhos da cidade. A "mãe real" se enchia de uma preocupação: colocar comida na mesa.
- Arroz e feijão nunca faltou. Tinha todo o dia. Mas eu ia dormir pensando se ia conseguir colocar uma carne no domingo. Domingo tinha de ser algo diferente - conta Maria de Lurdes.
Não pense, no entanto, que o tio de apelido incomum era carrasco. Kojac também soube e, muito, ser pai. Massagista do Veranópolis, era o "culpado" pelos encontros entre Tite e Cássio. Levava o seu "carrapato" a todos os treinos. Virava ajudante.
- Eu tinha a sacolinha de gelo, de água gelada. Ele também ficava no vestiário ouvindo as coisas, sentado num banquinho - recorda, sentado em sua pequena casa de madeira, envolvido por três grandes pôsteres de Cássio pendurados nas paredes.
Mesmo criança, fechava o gol contra adultos
Kojac estampa o orgulho pelo sobrinho na parede
de casa (Foto: Lucas Rizzatti/Globoesporte.com)
de casa (Foto: Lucas Rizzatti/Globoesporte.com)
Além de massagista e lavador de carros, o polivalente Kojac era técnico de equipes amadoras da região. Gente adulta, nada de garotos de 11, 12, 13 anos. Certa vez, numa partida do Municipal, colocou o jovem Cássio sob as traves. Resultado: pouca idade, muito sucesso. O narrador de uma rádio local se indignou e queria saber do treinador por que não havia usado antes aquele garoto no gol.
- Perdemos de 3 a 2, mas o que ele pegou... - recorda Kojac, brilho no olho, enquanto divide atenções da entrevista com a reportagem na TV sobre as defesas do sobrinho no Mundial - Depois dos 11 anos, resolveu ser goleiro. Dei um par de luvas para ele.
A partir daí, o sonho começou a tomar contornos mais firmes. Cássio realmente queria seguir carreira no futebol. Alguns anos depois, Evandro, ex-jogador e amigo da família, foi ao Juventude pedir um teste para o garoto. Ouviu de um dirigente:
- Temos goleiro melhor por aqui.
O empurrão de Lelo
O Tubarão, de Santa Catarina, acolheu o jovem de mãos grandes. Cássio, quase chegando aos 15 anos, ficou apenas 15 dias lá, em testes. Não gostou. Voltou para os braços das suas duas mães. Por pouco tempo. Paulo César Magalhães, lateral campeão do mundo pelo Grêmio e que era responsável por uma escolinha de futebol em Canoas, precisava de jovens valores. Procurou Marcos Aurélio Ayres, então meio-campo do Canoas. Hoje, ele é preparador físico do Veranópolis e, anos atrás, havia jogado no clube e criado raízes na cidade.
- Tem alguns meninos lá em Veranópolis para a escolinha? - questionou.
Paulo Cesar mal havia completado a frase, e Lelo, como é mais conhecido, lembrou-se de Cássio, o garoto que vivia na cola do tio Kojac nos treinos do Veranópolis. Ligou para o massagista. Kojac foi até Cássio, aos berros, eufórico. Uma chance de ouro. A escolinha era conveniada ao Grêmio. Para o Olímpico, foi um pulo.
- Você tem que comer grama! - aconselhou Kojac.
'Campo dos padres', um dos primeiros palcos de
Cássio (Foto: Lucas Rizzatti/Globoesporte.com)
Cássio, como sempre, ouviu os conselhos do "meio tio, meio pai". O primeiro ano na gigantesca Porto Alegre foi na casa de familiares. Depois, morou no alojamento do Olímpico mais quatro anos. Não sem percalços. Com dois anos anos de Grêmio, sacou o telefone e discou o prefixo 54. O telefone tocou na casa de Kojac. O tom de voz, triste.
- Eu não estou nem pegando banco... Acho que vou voltar.
Resignada, a mãe já estava planejando o retorno do primogênito. Kojac não admitiu a desistência. Do outro lado da linha, Cássio ouviu uma bronca digna de seus 1m95cm:
- Tem mil caras por dia querendo o seu lugar. Vai querer ir embora para voltar a lavar carro?
Cássio engoliu em seco. Voltou a vestir as luvas. Afinal, sempre ouviu o tio Kojac. Bom para ele, para o Grêmio, para as seleções de base. Foi campeão do Sul-Americano Sub-20, em 2007, substituindo o amigo e companheiro no clube gaúcho, Marcelo Grohe. A família Ramos se orgulhava cada vez mais do filho que deixou Veranópolis para fazer sucesso no futebol. Mas Cássio também queria orgulhar os seus. Preparou, naquele ano, a mudança de endereço para a mãe. Chegava a hora de dar adeus às idas ao banheiro na casa da avó e às noites de sono no chão.Com um sorriso de orelha a orelha, deu a Maria de Lurdes duas opções de plantas.
- Escolhi esta - relembra, apontando para a imensidão de sua bela casa verde, sem nenhuma referência ao Palmeiras, lógico, e já travestida de Timão, com uma larga bandeira alvinegra na sacada do segundo piso.
- Quer a minha opinião? Bom, vou dar. Tem de ir. Vai ganhar um dinheiro bom. E mais: com a experiência internacional, qualquer clube no Brasil vai querer você de volta - avisou.
Mãe e irmão agradecem título mundial a Santa Rita de Cássia (Foto: Lucas Rizzatti/Globoesporte.com)
- Pensei que ele ia voltar para um time de segunda divisão, para retomar o rumo, pegar ritmo de novo... Jamais imaginei ser em um clube como o Corinthians - admite Eduardo, 18 anos, que segue os passos do irmão sob as traves.
Mais perto da família (era casado, separou-se há dois anos, ainda na Holanda), Cássio, enfim, brilhou. E os Ramos se juntaram de vez ao bando de loucos. Camisetas, bandeiras... até fã-clube. E não só para o familiar. Maria de Lurdes adora o meia Danilo e o atacante Emerson Sheik.
Esteve com Cássio em São Paulo das quartas até a final da Libertadores. Do Pacaembu, viu o filho fazer a sua defesa mais importante, em chute de Diego Souza, justamente contra o Vasco que por pouco não o contratara antes do Timão.
Luva da Libertadores traz iniciais da mãe e dos
irmãos (Foto: Lucas Rizzatti/Globoesporte.com)
irmãos (Foto: Lucas Rizzatti/Globoesporte.com)
Num cantinho de casa, Maria de Lurdes reúne uma galeria de relíquias do filho. A primeira taça conquistada com a base do Grêmio, em 2002, é a preferida. Dorme numa das prateleiras, protegido por um espesso vidro, o uniforme completo usado pelo goleiro na conquista da Libertadores, diante do Boca Juniors. Nas luvas, as iniciais C.R. (Cássio Ramos) e M.E.T (Maria, Eduardo e Tais) dimensionam a importância da família para o jogador.
O tio Kojac não tem homenagem impressa, mas se sente o "fã número 1". Justamente ele, o maior incentivador, que deu as primeiras luvas ao ainda garoto tímido do interior, acabou não curtindo toda a festa no domingo. Enquanto mais de 70 pessoas se espremiam em frente à televisão com Maria de Lurdes, Kojac ficou em sua casa de madeira. Sozinho. Quieto. É assim que assistia a todos os jogos de Cássio. Diante do Chelsea, não seria diferente.
Também religioso, adotou uma tática dos céus. Se Cássio defendia a meta da direita, postava a imagem de Nossa Senhora de Lourdes exatamente do lado direito da televisão. O mesmo valia na inversão, após o intervalo. Só relaxou com o apito final.
- Quando acabou, eu quase quebrei essa casinha - sorri, com um orgulho do tamanho do mundo.
saiba mais
A festa parou Veranópolis. A família foi às ruas. Em frente à
televisão, ficou apenas a mãe, que hoje não precisa mais trabalhar até
as 23h e se dedica exclusivamente ao seu próprio lar. Se não fosse ela,
iam demorar para saber que Cássio foi o Bola de Ouro. Kojac também viu,
no seu cantinho e apreensivo, o sobrinho levar o prêmio máximo do
torneio.- Eu vi que chamaram o Guerrero (bronze) e o David Luiz (prata). Eu pensei: vai ser dele a Bola de Ouro, não tem outro!
Essa família Ramos é pródiga em premonições. Mais uma estava concretizada. Destino? Ato divino? Deem o nome que quiserem. O fato que o mundo é de Cássio. E esse, das linhas acima, é uma boa parte do mundo de Cássio. Que será, a partir de quinta, o seu retiro.
É onde espera deitar no sofá e assistir a futebol internacional e a filmes de aventura, ao estilo Senhor dos Anéis. Também pode ir à cidade vizinha, Nova Prata, e dar um mergulho no rio de sua fazenda, a Pratinha. Claro, antes, deve receber o carinho de toda a Veranópolis e seus mais de 22 mil habitantes. A cidade conhecida como a Terra da Longevidade é agora, graças a Cássio, também um reduto da imortalidade. Afinal, quem conquista o mundo nunca morre.
Cássio
criança, com amiga; Tite comemora acesso do Veranópolis à elite do
Gauchão, em 1993; na foto ao lado, Cássio está sentado comemorando o
acesso com Kojac; Cássio com Marcelo Grohe, na base do Grêmio; última
foto mostra crisma de Cássio e, ao seu lado, Kojac (Foto: Editoria de
Arte / Globoesporte.com)
Cássio
no PSV, com Gomes; mãe segura primeiro troféu do filho, de 2002, no
Grêmio; mais relíquias da final da Libertadores da América (Foto:
Editoria de Arte / Globoesporte.com):
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