No dia em que o Flamengo tem chance de ganhar outro título nacional, treinador relembra o hexa e decepção no ano seguinte: ‘Me deixaram sozinho’
Quase quatro anos depois, o Rubro-Negro novamente chega a uma decisão nacional. Quando Leandro Vuaden apitar o início da partida contra o Atlético-PR, em vez da adrenalina e da atmosfera do Maracanã, Andrade terá a companhia do buldogue Imperador – sim, uma homenagem ao atacante Adriano -, o sofá de casa na Barra da Tijuca e interrogações.
Do título ao desemprego não se passaram cinco meses. Tudo desmoronou e o treinador teve de lidar com uma sucessão de decepções. Ele cita que o título assoberbou jogadores – que já não se dispunham a treinar como antes -, dirigentes – que passaram a não consultá-los sobre dispensas e contratações – e o fez descobrir que havia boicote na própria comissão técnica. Brigas, intrigas e segredos que Andrade guarda daquele período.
- Fui traído. Sujeira – resumiu.
Sem atacar o Flamengo (“A entidade não tem nada a ver com as pessoas”, diz), Andrade tenta recomeçar. Há uma proposta do São João da Barra, que disputa a Série B do Campeonato Carioca. Não será por vaidade que deixará de aceitar. A falta de um emprego o angustia e aperta as finanças - no momento, as contas são pagas com o trabalho de técnico do Fla-Master.
- Ganho milzinho num jogo e quito o condomínio. Faço outra viagem e dá para pagar o plano de saúde. Tenho poupança ainda da época que joguei na Itália, mas quando não entra dinheiro, uma hora acaba – declarou o ex-jogador, que teve curtas passagens por Brasiliense, Paysandu e Boavista desde que deixou o Flamengo.
Confira a entrevista completa:
GloboEsporte.com: Nesta quarta, o Jayme pode repetir o enredo do auxiliar que acabou campeão. Sua experiência pode norteá-lo daqui para frente?
Andrade: Ele tem em mim um exemplo do lado positivo e negativo, do que deve ou não fazer. Acontece com o Jayme mais ou menos como foi comigo. Eu e ele estávamos dentro do clube, nem precisamos de empresário para o acerto para ser técnico. Eu conhecia o grupo, fui campeão, dei sequência depois. Só que, no meu caso, quando fui procurar empresário já não tinha mais as portas abertas, muitos times já tinham seus treinadores. De repente, no tempo em que fiquei trabalhando, posso não ter colocado alguns jogadores que eram deles. Isso cria uma antipatia
Andrade durante a entrevista (Foto: Janir Júnior)
Não, até porque o tempo em que trabalhei no Flamengo não procurei saber de quem era o empresário de tal jogador. Nunca me preocupei em saber se era de fulano ou beltrano. Sempre escalei o que tinha de melhor.
Jayme está perto do título. Foi assim com você, mas a conquista do Brasileiro não evitou a sua demissão no ano seguinte...
No
nosso país, tudo é possível, tudo pode acontecer. O título não é
garantia de permanência, ainda mais no Flamengo. É um clube onde as
coisas acontecem com muita euforia e oba-oba. Pela grandeza, as pessoas
querem um técnico de seleção. O Flamengo vive muito isso. Acaba se
deslumbrando um pouco, não tem muito aquela coisa de manter os pés no
chão. Primeiro vem com o pezinho no chão por conta da dificuldade
financeira para contratar e daqui a pouco é campeão da Copa do Brasil e
começa a dar um salto maior do que as pernas. A gente sabe como
acontece, não existe o meio-termo na Gávea.
Essa
forma de agir acaba atropelando as pessoas e nem sempre aquela coisa
grande dá certo. Vieram o Vanderlei, o Mano... Treinadores de ponta
chegaram depois de mim e não deram certo.
Por que os treinadores mais renomados geralmente fracassam e os da casa conseguem mais resultados?
Acho
que nós não disputamos espaço com jogador. Não temos essa pretensão de
ser maior do que eles. Eu, como ex-jogador, sei que as estrelas são
eles, que vão para campo e decidem os jogos. São as peças importantes e
você está ali para dar suporte e passar sua experiência para eles. Não
vou disputar página de jornal com ninguém.
No
jogo de ida, o Flamengo jogou como se estivesse em casa, em momento
algum se abalou. Foi um time equilibrado emocionalmente o tempo todo.
Tem que ter esse equilíbrio no Rio também. A torcida vai empurrar e se o
Flamengo sair de uma forma desorganizada perde o jogo. Tem que tomar
iniciativa, sim, mas de forma inteligente e organizada.
O
time entrou com muita ansiedade. O Grêmio vinha como franco-atirador, o
resultado era indiferente para eles e a nossa responsabilidade era
imensa diante de 100 mil pessoas no estádio, mais 30 milhões
acompanhando. Tínhamos um elenco de 18 jogadores, sem muita peça de
troca. Era a conta do chá. Muitos torcedores não acreditavam em
jogadores como Fierro, mas ele era importante para mim. Tinha o Toró,
David Braz, Everton Silva, o Everton que está no Atlético-PR.
(Fotos: Janir Júnior/GloboEsporte.com)
Tomamos
o gol no início, então, tínhamos tempo de reação para dar uma resposta.
Seria diferente levar um gol faltando dez minutos, que muda tudo, mexe
com o emocional. No vestiário, passei para eles que parecia que nós
estávamos jogando para cumprir tabela e o Grêmio que disputava a final
de campeonato. Disse que precisávamos de outra atitude senão passaríamos
vergonha. Eles sentiram e voltaram com outra postura, tomando
iniciativa, marcando pressão, e foi outro jogo no segundo tempo. O
primeiro tempo foi horrível.
O Adriano tinha condições de jogo ou a bolha no pé ainda incomodava?
No
jogo contra o Corinthians ele ficou fora por causa disso. Na rodada
final ele estava bem, mas teve um outro jogo em que a bolha incomodava
muito, e ele acabou com a chuteira e o meião cheios de sangue e disse
para mim: “joguei porque era você”. Talvez se fosse outro treinador ele
não teria jogado.
Como foi ter o apoio do Adriano, que defendeu sua efetivação após a saída do Cuca?
Foi
uma relação boa. Em alguns treinamentos sei que ele faltou pois não
tinha condições físicas de comparecer. Esse problema extracampo era mais
de diretoria do que meu. O meu trabalho começava a partir do momento em
que ele chegava ao treino, aí a responsabilidade era minha.
Foi difícil controlar um grupo que, além do Adriano, tinha Bruno, Pet?
Existia
respeito entre a gente. O Adriano no dia a dia é um cara simples,
humilde e agregador. Os mais jovens gostavam dele. O Pet não gosta de
concentração, mas eu disse que ele não estava na Sérvia. Nossa cultura é
diferente, temos que concentrar. Ele dizia que não gostava, mas
concentrava. Não tive problemas, cheguei a conversar duas vezes com Pet
sobre parte tática, sempre me dei bem com ele. O Bruno era capitão do
time, fazia a ligação entre mim e os jogadores. Nem sempre eu reunia o
grupo todo. Pegava o Bruno, mais uns dois ou três e, por exemplo,
explicava que tinha que concentrar dois dias antes, pois o jogo era
importante. Bruno convencia o grupo. Tive um problema com ele antes de
assumir, mas depois ficou zerado. Podia chegar e tirar ele de capitão,
mas não era o caso. Ele sempre me ajudou, um cara tranquilo de lidar. O
único que tive problema mais sério foi o Juan
.
Que tipo de problema?
Foi
no jogo contra o Barueri. O mais chatinho era o Juan (risos). O Juan
não gosta de ficar no banco, não gosta de ser substituído, não pode
isso, não pode aquilo. Mas em compensação era o cara que mais gostava de
treinar. Ele era ranzinza (risos). Ele estava mal no jogo. O time todo
estava, mas ele estava num dia muito ruim. Aí eu o substitui e o Juan
atravessou o campo em direção ao banco. Eu estava com o fone de ouvido, a
torcida bem atrás do banco. Sabia que ele ia falar alguma coisa. Quando
começou a chegar, virei de lado, mas percebi que ele falou algo, não
sabia o quê. Ele tinha falado: “quer me ferrar?” (risos). Na verdade
quem ia me ferrar do jeito que estava jogando era ele (risos). Ele deu
azar porque sentou no banco, a torcida pegou no pé dele, pedindo
respeito e perguntaram: “já chupou laranja com Zico?”. Mas perdemos esse
jogo (2 a 0 Barueri) na véspera.
Por quê?
Por quê?
Na
segunda-feira era aniversário do Léo Moura. Liberamos o pessoal para a
festa e depois tinham que voltar para concentração. Como o Léo era
aniversariante, deixamos ele dormir em casa. Mas houve um mal entendido,
uma pessoa achou que ele teria que voltar no dia e ficou um clima
horroroso. Quando chegou a véspera do jogo o ambiente era horrível,
jogadores chateados, pois houve cobrança em excesso. O Léo Moura ficou
p… Perdemos o jogo ali. Foi falta de comunicação. Mas a situação do
Juan, assim que entrei no vestiário, ele pediu desculpa e logo me
desarmou. Não tinha problema de relacionamento com ninguém. O maior
problema era extracampo.
Noitada, né?! Churrasco, festa... Acaba o treino, eu vou para minha casa, não vou andar atrás dos caras.
Com o título brasileiro de 2009, você acha que os jogadores acharam que estavam acima do bem e do mal?
O
título traz junto a vaidade. Não só de jogadores, mas dirigentes
também. Era o meu sexto título brasileiro, eu não ia achar que era o
cara. Eu conversava uma coisa e eles não queriam fazer no treinamento.
Houve mudança de postura.É prova de que um título não traz só coisa boa?
Traz coisa boa de momento. Mas para o ano seguinte começa a mudar. Foi o primeiro título da maioria. O sacrifício que o cara fazia antes já não quer fazer mais. As contratações foram equivocadas. Em 2009 me consultavam, depois não.
Quando você saiu já estava desgastado?
O
desgaste aconteceu por pessoas que me apoiavam antes e depois mudaram
de lado. Começaram a plantar notícia para me queimar. A renovação de
contrato foi desgastante. Fizeram de tudo para me expor, revelaram o
valor do meu salário. Ganhava R$ 160 mil. Tem quem receba R$ 500, R$ 600
mil e ninguém fala nada. Tinha acabado de ser campeão brasileiro! Veio
outro técnico que nunca conquistou nada e recebia R$ 300 mil. Jogaram na
imprensa para me queimar. Um ou outro falava que eu era mercenário.
Sim, né? Fui traído, foi uma traição. Sujeira. (Andrade olha fixamente para baixo, pensa e, com a voz embargada, para de falar)
Gente da minha própria comissão achou que ia assumir o cargo e se debandou para o outro lado. Me largaram sozinho.
Difícil,
complicado. Começou a existir um movimento pela minha saída. A
prioridade era a Libertadores. Aí eu perdi o Carioca e, mesmo chegando à
final, fui demitido, com 76% de aproveitamento. E o time acabou
passando para as oitavas de final da Libertadores. Coloquei o time na
Libertadores e acho que teria o direito de terminar essa competição.
De
seis títulos brasileiros do Flamengo, eu participei de cinco. Nenhum
jogador foi tão marcante assim num clube só. Tenho uma Libertadores e um
Mundial. Separo a entidade das pessoas que ali passam. Não tenho mágoa
do Flamengo. Fiquei chateado com as pessoas. Mas tenho o reconhecimento
do torcedor, de estar na rua e ouvir parabéns pelo trabalho, até de
torcedor de time adversário. Isso conforta. Não sou muito de guardar
mágoa. Nada melhor do que o tempo.
Você tem algum vínculo com a atual diretoria?
Não.
Conversei rapidamente com algumas pessoas, mas não tenho nenhuma
intimidade. Nunca me procuraram para nada. Eu os procurei. Logo que saí
do hospital, me coloquei à disposição para ajudar o clube como
observador técnico. Mas não tive retorno.
Andrade durante treino do Flamengo
(Foto: Vipcomm)
(Foto: Vipcomm)
Só
por um tempo, pois o dinheiro acaba. Tenho uma poupança de quando
joguei na Itália. E também recebi o prêmio do Brasileiro. Dá para
segurar um tempo. Mas onde só sai e não entra um dia vai acabar. Tenho
minha casa e dois apartamentos que alugo. Mas um deles minha filha vai
morar.
Há propostas?
Recebi
algumas sondagens, me ligaram para ir para fora do país, depois o
negócio esfriou. Tive uma proposta de Minas que foi muito baixa, outra
da Série B do Rio. Continuo sem empresário. Procurei, mas não tive
êxito.
Não
alimento isso. Quero voltar a trabalhar, pois eu preciso, seja em
qualquer clube. Se acontecer de ser no Flamengo tudo bem. Mas acho que
já dei minha pequena contribuição ao Flamengo (risos).
Minha saída do Flamengo foi muito desgastante. Me expuseram muito. Pela história que tenho no clube poderia ter sido preservado. Depois, trabalhei cinco meses no Brasiliense, cheguei lá o time estava praticamente morto. Era um time com jogadores rodados, mas que estava fisicamente mal. Apesar de ter caído, acho que ficou como o Andrade quase salvou o Brasiliense. Fui para Belém, no Paysandu, fiz três jogos para tentar chegar à Série B, mas acabamos não subindo. Depois fiz seis jogos pelo Boavista.
O Jayme também falou que vendo o que aconteceu com você não sabe se continua no ano que vem...
Agora é uma outra diretoria, não sei qual é a filosofia deles.
Arrumar um bom empresário. Naquele meu momento, seu eu tivesse um, estaria mais blindado.
Muito se fala de preconceito com técnico negro no Brasil. Isso existe?
Acho que é mais coincidência por ter pouco técnico negro. Agora, tem o Jayme e o Cristóvão na Série A.
Mas teve algum tipo de problema com isso?
Dentro
do Flamengo, quando era treinador, ouvi algumas coisas, principalmente
dos diretores da base, comentário como: “Ah, agora é Urubu Fla”, pois na
época o Adílio era meu auxiliar. Foi quando assumi como interino. Mas
passou. Deixei para lá, ignorei a situação.
Apesar
das semelhanças na trajetória, no caso do Jayme ele tem um elenco mais
disciplinado e não precisa se preocupar em domar Adriano, Pet, Bruno...
Facilita?
Eu tinha muita dor de cabeça fora
de campo, né?! Ia para sala de imprensa e tinha que responder de
Adriano, Bruno, Willians. É, ainda tinha o Willians de quebra (risos).
FONTE:
http://globoesporte.globo.com/futebol/times/flamengo/noticia/2013/11/de-protagonista-telespectador-solitario-andrade-desabafa-fui-traido.html
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