GloboEsporte.com resgata noite de terror e dor em acidente de ônibus do Brasil-RS. Histórias de luto, saudade e superação de quem sobreviveu e não consegue superar
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Danrlei,
então com 35 anos, história feita no Grêmio, passagens por outros
grandes clubes, voltando da Europa, não era para estar naquele ônibus.
Meses antes, havia decidido se aposentar. Um telefonema do técnico e
amigo Armando Desessards muda seus planos. Resolve dar a última cartada.
Já André Guerreiro era para estar naquele ônibus. A troca de data do
jogo-treino, de quarta para quinta, o fez cancelar o embarque com a
delegação, tinha cirurgias marcadas. Um telefonema do massagista Luiz
Carlos Borges muda os planos do médico.- O ônibus virou - repetia, atônito, às 23h23m da noite de 15 de janeiro de 2009, antes de a ligação se perder.
Começava ali, no choro de Luiz Carlos, uma das páginas mais tristes e trágicas da história do futebol brasileiro. O ônibus vermelho Scania, prefixo 5009, de dois andares, que carregava a delegação do Brasil de Pelotas, clube da zona sul do Rio Grande do Sul, voltava para casa de um jogo-treino no Vale do Sol, diante do Santa Cruz. Vitória por 2 a 1. Mas faltou vencer a curva no acesso da RS-471 à BR-392, no km 150, em Canguçu, a 83 quilômetros de Pelotas. Sobrou apenas a medonha escuridão de um barranco de 40 metros, ou um prédio de 15 andares. Segundos de horror que, cinco anos depois, ainda não terminaram.
Isso que aquela quinta-feira havia começado promissora. O jogo-treino contra o Santa Cruz resultara em boa vitória, gol de pênalti de Claudio Milar, que ficara um bom tempo sem cobrar penalidades por sucessivos erros. Desta vez, guardou. Um triunfo com tensão. O zagueiro Alex Martins, outro símbolo xavante, fora expulso. Danrlei, que estreava e teve bela atuação, havia até levado chute no traseiro em confusão durante o confronto. No ônibus, o goleiro passou a rir do ocorrido. Aliás, boa parte do grupo já se divertia com a confusão no Vale do Sol. Alguns se entretinham com música. Outros conversavam.
Caso do expulso Alex Martins. Que tinha como colega de zaga o melhor amigo, o “irmão” Régis. Brincavam junto quando criança. Depois, deram os primeiros passos também lado a lado. O entrosamento chegava a ser covardia. Antes de cada jogo, não dispensavam o ritual do abraço no vestiário. Uma forma de proteção mútua. Clichê à parte, se entendiam no olhar. Isso porque Régis não era de falar. Já Alex… adotava o estilo orientador, com gestos, urros. Muitas vezes, repreendia o amigo em campo só para ver se recebia uma reação ríspida. Que nada. Régis era um poço de tranquilidade. Os dois não formavam uma defesa muito alta (1m81cm e 1m79cm). Mas se completavam e viravam um só gigante. E, claro, a parceria seguia no ônibus.
tragédia
Ônibus do Brasil tomba em curva e cai de
barranco; relembre
emergênciaHospital recebe os feridos após acidente em
Canguçu
dor em pelotasTorcedores do Brasil se emocionam com morte
de três integrantes
régis teimou em sentar na janela
- Quando a gente entrou no ônibus, ele correu de novo para a janela. Ele me chamava de “louco” e insistiu na hora, queria ficar ali na volta também - conta Alex.
Sem saber, a teimosia de Régis funcionou como aqueles repetidos abraços no vestiário antes de a bola rolar. A teimosia de Régis salvou a vida de Alex. Régis morreu. O ônibus girava enquanto despencava-se barranco abaixo. Ninguém sabia o que estava acontecendo. O lateral-esquerdo Alemão, no entanto, viu que a curva venceria a batalha com o veículo. Segurou a mão do colega Xuxa:
- Te segura, irmão. Vamos tombar.
Quando o veículo acalmou-se sobre a grama, rodas para cima, Danrlei arregalou os olhos no breu e, mesmo na dramática escuridão, conseguiu ligar as peças em sua cabeça atordoada:
- Estou vivo. Estou vivo.
O ônibus virado, o atendimento na
emergência, o choro de Danrlei e o
caixão do ídolo Milar (Foto:
Editoria de Arte)
Isso porque o médico André Guerreiro já havia usado sua influência para acionar até o último médico e ambulância de Pelotas para rumarem a Canguçu. O Hospital de Caridade de Pelotas começou a receber os feridos - todos os 29 que sobreviveram se machucaram. E também a ser tomado pela angústia xavante. André calcula até mil pessoas em volta do complexo, rua interditada. Os mais experientes foram os primeiros a chegar. Claudio Milar não estava entre eles. Outro expoente da equipe, o volante Cleber Gaucho chamou André para um canto:
- Acho que o Milar e Giovani morreram. Eu vi.
milar não queria viajar
Claudio Milar fazia aquecimento com os inseparáveis Alex e Régis no Bento Freitas, na manhã daquela quinta. Não via razão de um jogo-treino com uma equipe que estava há mais tempo se preparando. Poderia surgir uma derrota e, assim, o abalo na confiança. Chegou a pedir aos zagueiros, que já haviam trabalho com o técnico Armando Desessards:
- Será que vocês não falam com o ‘pai de vocês’ para cancelar o amistoso?
Alex Martins com Régis; jogadores reunidos em
jantar; Alex, Régis e Milar em ação promocional
(Foto: Editoria de Arte)
- Convivi com uma pessoa que, naquele momento, estava realizando todos os seus sonhos ao mesmo tempo. Estava se formando, sua filha pequena começava a falar… Ele dividia comigo cada conquista - lembra o ex-goleiro.
Danrlei só conseguiu diminuir a adrenalina às 4h30m. Sobrou a dor, tristeza e depressão. Afirma que só não quebrou o braço por sua experiência em cair com o corpo, qualidade típica dos goleiros. Na região em que seu braço ficou completamente roxo, outros três ou quatro colegas romperam o osso, garante. Se coube ao camisa 1 ajudar, eram de André Guerreiro as tarefas ainda mais árduas: informar a morte aos parentes - evitou dar a notícia à esposa de Milar, sua amiga Carol - e, claro, tentar salvar vidas.
alívio na dor: edu sente a perna
- Tá louco? - bradou Edu, ainda embebido do cheiro de borracha queimada na estrada.
- Então está sentindo! - exultou André.
Depois, surge o risco de amputação da perna canhota. Havia perdido muita pele e músculo na coxa devido a um galho atravessado na região. Ainda aturdido, André ordena apenas uma limpeza da área molestada. Às 4h, um integrante do bloco cirúrgico o telefona e não vê outra solução se não ceifar a perna.
André insistiu. Chamou os pais do jogador e ofereceu a única alternativa. Um tratamento ainda incipiente no esporte, o Plasma Rico em Plaquetas (PRP). A técnica consiste em manipular e transformar o sangue para regenerar as lesões de tecidos musculares, tendões e cartilagens. Nunca havia sido feito no futebol gaúcho. Mas chegara a hora de aplicar na prática anos de estudo.
- Ele conseguiu recuperar todos os movimentos, corre, joga bola como recreação. É professor de educação física - orgulha-se André.
Edu jamais entraria em campo como jogador profissional, seria o único entre os feridos nessa situação. Ficou dois meses internado. Demoraria mais um mês para voltar a caminhar. Não seria o único trauma. Infelizmente, eles se avolumam. O fotógrafo Carlos Carlos Insaurriaga, único integrante do acidente a ainda trabalhar no clube, demorou quase um ano para embarcar novamente num ônibus. Até hoje, guarda no tornozelo direito a marca oriunda de perda de tecido na região. Por um bom tempo, trabalhou amparado por muletas.
- Não me lembro direito do momento. Estava dormindo. Só deu para ver que o ônibus ia capotar mesmo na hora que capotou. Houve gente que conseguiu se segurar. Lembro que eu tentei me levantar, mas não dava. Me arrastei até a janela. Consegui ter o acesso à rua, o zagueiro Carlão me puxou para fora - resgata Carlos, que hoje é assessor de imprensa do Xavante.
novo drama: o duro recomeçar
- Eu dizia, antes do acidente que existiam quatro pilares: Milar, eu, Cleber Gaucho e o Regis. Quando aconteceu essa tragédia,. a torcida abraçou Cleber e eu. Como os jogadores que iam dar sequência na vida do clube. O carinho da torcida só aumentou - conta Alex.
Apesar do afago, essa sequência foi dura. O Brasil não tinha time para colocar em campo. Apenas dez ou 12 jogadores do grupo estavam aptos para a estreia, programada para ocorrer 19 dias depois do acidente. Começavam a brotar jogadores de todos os locais. Emprestados, doados, o importante era preencher número. O primeiro foi a então joia da base do Inter, o centroavante Porcellis. Às vezes, os mais velhos conheciam as caras novas no ônibus, rumo a mais uma partida ou, repentinamente, deparavam com um desconhecido à mesa de jantar no hotel. Era mais um reforço de última hora.
Carlos era fotógrafo em 2009. Hoje como
assessor, é o único profissional que ainda
segue no clube (Foto: Lucas Rizzatti)
- Não tinha escolha. Ou caíamos para a segunda divisão ou jogávamos. Sabíamos que haveria a queda também se jogássemos. Aquilo ali foi o maior erro. Não do clube, mas do campeonato. Era impossível você conseguir. Não tínhamos a menor condição de jogar. As viagens eram de dois em dois dias (para recuperar o calendário atrasado, uma vez que a estreia original seria em 22 de janeiro). No meio do nada, você ouvia um grito. Era algum atleta pedindo para ir mais devagar com o ônibus. Isso que estava a 40 km por hora. Toda viagem era muito estressante. E os outros times usaram isso em campo. O maior erro foi a falta de entendimento dos outros clubes da gravidade da situação. Poderiam deixar o Brasil fora do campeonato e mantê-lo na primeira divisão - reclama Danrlei.- O pessoal dava graças a Deus quando parava o ônibus, eu não me lembro de ter tanta dor de estômago como durante essas viagens. No último jogo da primeira fase, me machuquei. Não tinha como. Você não tinha tempo para trabalhar.
- Joguei com muita dor. Nos treinamentos, qualquer encontrão, qualquer esbarrão, era muita dor nas costelas. Um mês depois, ainda estava tirando cacos de vidro do couro cabeludo. Eu sentia muita dor nos ligamentos dos ombros. Tinha muitas dores pelo corpo. Muito impacto. Foi um sacrifício pela familia dos que partiram. Psicologicamente, não havia nenhum condição de entrar em campo - espanta-se Alex Martins.
De acordo com André Guerreiro, o clube repassou R$ 100 mil às três famílias das vítimas. Mas o que o dinheiro não paga foi a emoção do primeiro jogo após o acidente. Primeiro, no entanto, o estresses dos gabinetes. Cinco dias depois da tragédia, uma reunião com a Federação Gaúcha selou a decisão de jogar o Estadual. Os empresários Gilmar Veloz e Jorge Machado cederam dez de seus jogadores. Empresas também ajudaram. E a torcida… nem se fala.
um gol, três flechas
O tempo de preparação era curto. Para time e torcida. Essa última se esforçou para fazer bonito. Preparam ao menos quatro faixas novas, uma de 45 metros de comprimento. O clube resolveu jogar de preto e aposentar, naquele Gauchão, as camisas 3 e 7, de Régis e Milar. O grupo circense típico da cidade, o Tholl, também prometeu abrilhantar uma noite em que a tristeza deveria dar lugar ao orgulho por quem se foi usando as cores do Brasil.
Dos acidentados, nove foram relacionados. Sete deles seriam titulares. Juntam-se a eles Jorge Mutt, que não viajara, além dos reforços Arghus (zagueiro), Picon (volante) e Magno (meia). Ao todo, 11 reforços aportavam no Bento Freitas.
flechada
Brasil estreia após acidente com empate em 3 a
3; os gols
sempre juntoTorcida do Brasil-PEL lota o Bento Freitas para
a estreia no Gauchão
duro recomeçar
Como foi a preparação do Brasil de Pelotas
após a tragédia
A noite estrelada de 4 de fevereiro tinha na arquibancada seu primeiro astro: mais de 15 mil vozes berravam "eu acredito" a todo o momento. Inclusive quando o rival abriu o placar. Empurrados pela emoção, os jogadores do Brasil viravam o jogo. O terceiro gol teve sabor especial para Alex Martins. O zagueiro mistura emoção e orgulho para contar o feito:
- Ali foi superação. Eu só pensava em representar bem o clube. Lembro como se fosse hoje. Saímos perdendo por 1 a 0. Depois viramos. Deu uma falta. A torcida parecia que sabia que eu ia fazer o gol. E eu também, corri para a área pedindo para fazer o gol. O estádio inteiro começou a gritar o meu nome. Loucura, parecia até que eu ia bater um pênalti, de tanta certeza tínhamos de que seria gol. O estádio veio abaixo. Quando eu corri para a tela, vi a torcida, eu até me emociono. Eu fiquei cara a cara com eles, todos chorando muito.
Além do salto no alambrado, Alex Martins fez a comemoração característica de Milar, a flechada do índio xavante, mascote do clube. Nesse caso, foram três disparos para o negro do céu. Pelos três amigos que, certamente, o vigiava lá de cima.
- Era um gesto da nossa amizade. Tem gente que achou que era marketing. Mas só eu sei como eu tinha o direito de fazer esse gesto.
No segundo tempo, no entanto, pesou o que todos esperavam: o cansaço. E o Santa Cruz reagiu, empatou em 3 a 3. No final, todos se abraçaram num jogo em que venceu a emoção.
Alex Martins guarda a camisa preta com a qual
marcou gol histórico (Foto: Lucas
Rizzatti/Globoesporte.com)
marcas para sempre
- É um assunto que machuca. Vou guardar cicatrizes para o resto da vida. A gente sente saudade dos companheiros. Nunca mais ninguém vai esquecer o que aconteceu. Hoje, tranquilamente te falo. Ainda não superei. Tu entra no ônibus e sente ainda aquela impressão ruim. Tenho tudo guardado na memória - desabafa Alex, hoje aos 37 anos e que se dedica à educação física, com residência na praia do Laranjal, ao lado de Pelotas.
Alex Martins, André Guerreiro e Danrlei se
emocionam com lembranças de 2009 (Foto:
Editoria de Arte/Globoesporte.com)
Até pouco tempo, Danrlei ainda tinha guardado o uniforme de passeio com que viajara. Conservou-o como estava, sujo, rasgado. A sua esposa Juliana o demoveu da ideia de manter recordação tão dolorosa em casa. Doou para alguém. Mas as marcas são mais profundas do que um pedaço de tecido.
- Aquilo ali sepultou a possibilidade de um grupo promissor. Tínhamos time até para ser campeão. Hoje, alguns estariam tranquilamente jogando em grandes grupos do país. Foi uma situação que acabou terminando com a carreira e o futuro de muitos atletas - avalia Danrlei. - Eu, por exemplo, voltei ao futebol ali para, quem sabe, reaparecer, fazer uma boa perfomance retornar ao Grêmio, que sempre foi o meu sonho (havia saído em 2003). No fim, eu não sei por que Deus me colocou lá. Até hoje, não sei. Não consigo imaginar uma explicação para isso, tamanha a brutalidade do acontecimento. Mas eu sinto que era para estar lá. Pouca gente vivenciou uma coisa dessas. Dá uns quatro, cinco dias, e ainda me lembro.
- Foi uma coisa muito sofrida para nós. Não sai da cabeça de ninguém. Por mais que o Brasil ganhe e seja campeão, sempre se lembra disso - completa André Guerreiro, 13 anos de clube.
E não é que o Brasil foi campeão? Conquistou em 2012 a segunda divisão e o acesso à elite estadual. A reconstrução após a tragédia ainda é um processo, mas já gera frutos. Mas isso é outra história. Que se mantém viva pela gana em honrar quem se foi. Pela sina obstinada de uma torcida que só pensa em embalar o time no velho Bento Freitas. Para que as metas, desejos e sonhos de Régis, Milar e Giovani não se percam em mais uma curva traiçoeira da vida.
Mosaico na sede do Brasil homenageia
Régis, Milar e Giovani (Foto:
Lucas Rizzatti/Globoesporte.com)f
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