Contra fama de omissa em casos de violência e problemas extracampo, entidade cria código e órgãos para estabelecer regras na terra de ninguém
Catimba em campo, jogadores violentos, confusões entre torcidas e
problemas de acessos aos vestiários e estádios. O clima bélico da Taça
Libertadores da América e da Copa Sul-Americana tem seus dias contados a
partir de 2013. Pelo menos essa é a intenção da Confederação
Sul-Americana de Futebol (Conmebol). Após quase 97 anos, a entidade vira
a página da terra de ninguém - marcada por várias confusões, poucas
punições e muitas omissões nos torneios continentais - para a da era
disciplinar. A adoção da suspensão automática
por três cartões amarelos foi o primeiro passo. E quem vai ditar as
regras nessa nova jurisdição é uma espécie de Supremo Tribunal de
Justiça Desportiva (STJD).
Os clubes que abrem a disputa da Libertadores nesta terça-feira - Tigre
(Argentina) x Deportivo Anzoátegui (Venezuela), e León (México) x
Deportes Iquique (Chile) - já estarão sob o crívo do código de
disciplina da Conmebol, em casos de distúrbios nos jogos ou problemas
extracampo. Elaborado ao longo do ano passado pela entidade, o documento
é o embasamento legislativo do Tribunal de Disciplina e da Câmara de
Apelações, órgãos judiciais recém-criados que entraram em vigor na
última sexta-feira. São formados por um advogado de cada um dos dez
países membros da Conmebol, distribuídos em cinco para cada câmara, e
responsáveis por civilizar as competições. Entretanto, não há a figura
da procuradoria - que toma a iniciativa de denunciar. Os clubes que se
sentirem lesados poderão entrar com um comunicado formal, através da
federação de seu país, para pedir um julgamento.
- É a iniciativa de criar um tribunal nos moldes do STJD, que é vinculado à CBF. Na Conmebol não existia isso, não havia um código para disciplinar essas questões. Há a necessidade de ser mais rigoroso com as infrações. Era uma questão comum de se escutar no júri esportivo, das queixas que se faziam ao regulamento, de serem meramente penas de multas. Antigamente estabeleciam as penas sem levar em consideração nenhuma referência. As partes ficavam numa situação de insegurança, não existia um parâmetro, uma regra. A situação vai mudar muito. Há previsão de penas severas para situações que ficavam ao limbo. Clubes, jogadores, treinadores e árbitros terão noção do que eles estão sujeitos - explicou Caio César Rocha, representante do Brasil e presidente do Tribunal de Disciplina da Conmebol.
Além do brasileiro, que também é vice-presidente do STJD, o órgão tem o uruguaio Adrián Leiza (vice-presidente), o chileno Carlos Tapia Aravena, o colombiano Orlando Morales e o boliviano Alberto Lozada. A sua função é fazer o julgamento em primeira instância, analisar os lances violentos, as expulsões e os problemas extracampo dentro de um prazo de até 48 horas. Os julgamentos, porém, são diferentes dos habituais no Brasil. A portas fechadas, eles não precisam ser presenciais, e tudo acontece por escrito. Além disso, podem ter júri colegiado ou um juiz único designado para o caso.
Já a Câmara de Apelações tem o equatoriano Guillermo Saltos como
presidente e é composta ainda pelo peruano Miguel Morales Lavaud
(vice-presidente), o argentino Alejandro Marón, o venezuelano Carlos
Manuel Terán e o paraguaio Eduardo Gross Brown. Este órgão é o de
segunda instância e será mais restrito. Julgará apenas os casos mais
complexos, como doping, corrupção ou casos de penas de maior gravidade,
seja pela sanção imposta ou pela infração. Ele não tem tanta preocupação
com a questão do tempo e, eventualmente, poderá conceder efeitos
suspensivos.
- Esse formato ainda vai ser estabelecido com o passar do tempo. É
impossível a realização de sessões solenes. Vai ser muita comunicação
por meio eletrônico, com prazos estipulados. As competições da Conmebol
são curtas, e nós temos uma preocupação grande, que é tentar não
burocratizar demais, justamente para evitar que as penas sejam cumpridas
na próxima competição. No Brasil, se um clube que não for jogar mais
for punido, ele vai cumprir (a pena) no próximo ano. Mas na Libertadores
o clube que está neste ano pode não estar no ano que vem - alertou
Rocha.
O primeiro caso julgado pelo Tribunal de Disciplina foi na semana passada, no Sul-Americano Sub-20, que está sendo realizado na Argentina. Marcelo Trobbiani, técnico da seleção anfitriã, foi suspenso por um jogo após invadir o campo e ser expulso durante o empate por 2 a 2 com a Bolívia. Já o segundo caso deve ter um brasileiro: o São Paulo. A confusão com o Tigre, da Argentina, na final da Sul-Americana 2012, não seria de incumbência do novo formato por ter acontecido antes da criação das câmaras. Mas o comitê executivo confiou o julgamento ao Tribunal. Nessa situação, o uruguaio Adrián Leiza assumirá momentaneamente a presidência, já que um julgamento não pode ter a participação de advogados dos países dos clubes envolvidos.
Punições sem critério marcam quase cem anos de história
A estrutura antiga da Conmebol era muito precária quanto às questões disciplinares. Tanto que funcionou durante 96 anos sem um código de disciplina para aplicar punições. Com isso, a tarefa era de responsabilidade do comitê executivo, que também é formado por um membro dos países ligados à entidade. Eles recebiam um relatório para análise, e cada um dava seu parecer. Com fama de política, as penas aplicadas pela confederação não adotavam um padrão, e o único critério visível era de aplicar punições mais rigorosas para atletas ou clubes reincidentes.
- Agora tem uma câmera disciplinar de primeiro grau e segundo grau. Ficou muito melhor, pois são tratados aspectos bem jurídicos, todos são advogados preparados para o processo. No comitê executivo sempre tem um aspecto menos jurídico (não são todos advogados). Antes, era declarado o fato ao infrator para preparar a defesa, e o comitê analisava com base no estatuto da entidade. Hoje isso caiu por terra - contou Marco Polo Del Nero, presidente da Federação Paulista de Futebol e membro brasileiro do comitê executivo da Conmebol.
Nos torneios organizados pela entidade, a figura do delegado do jogo
tem mais importância do que no Brasil. No país, a atividade é meramente
burocrática, como colher assinaturas, transportar verba, levar as
súmulas... Já o delegado da Conmebol tem a palavra final para decisões
fora da regra de jogo. O relato dele, ao fim de cada partida, tem peso
igual ou até maior que a súmula do árbitro.
Sem respostas da Conmebol, clubes brasileiros se adaptam
Se já não bastasse a dificuldade de enfrentar um Boca Juniors na Bombonera, por exemplo, enfrentar problemas fora do campo tem sido ato corriqueiro para os clubes brasileiros na Libertadores ou na Sul-Americana. Pancadarias entre jogadores, objetos arremessados pelos torcedores e outros contratempos criados pelos adversários formam o clima bélico que as equipes precisam superar para se tornarem campeãs continentais.
- No jogo contra o Boca em 2004, fomos bem recebidos na Argentina, mas na hora de ir para o estádio nos mandaram uns batedores que começaram a dar voltas pela cidade. Por fim, chegamos a uma rua onde o ônibus não conseguia passar, e os jogadores tiveram que andar uns cem metros no meio da torcida deles. Entramos pelo vestiário do Boca faltando dez minutos para o jogo. Não deu para fazer o aquecimento direito e sofremos um gol com dois minutos. Serviu de lição, depois sempre nos precavíamos, mandávamos pessoas para fazer o itinerário. Dá para reclamar (na Conmebol), mas não acontece nada. Informalmente, uma vez ou outra reclamamos, mas conosco não teve providência - contou Fernando Carvalho, ex-presidente do Inter.
As reclamações dos brasileiros na entidade na maioria das vezes são
informais. O Cruzeiro foi um dos poucos a entrar com pedido na Conmebol,
em duas ocasiões em que o jogo não acabou na Libertadores de 2008, por
confusões envolvendo a torcida do Cerro Porteño, do Paraguai, e a do
Boca Juniors, da Argentina. Nos dois casos, os clubes foram punidos com
perda de mando de campo (veja quadro acima). Em 2010, o Flamengo também
saiu da competição com um discurso de protesto após os jogadores serem
atingidos por moedas e bola de golfe no fim da partida, que marcou a
eliminação para o Universidad de Chile. Só que nenhuma ação judicial foi
tomada.
- O jurídico da Conmebol era limitado, não tinha um tribunal que pudesse julgar os casos. No Brasil, se acontece algo nesse sentido, a gente entra com uma ação contra o time adversário. Na Conmebol não tem como fazer isso, é só uma representação. O tribunal é uma reivindicação nossa há muito tempo. Antes, ficava a critério de uma decisão que não tinha nem defesa - argumentou Michel Assef Filho, advogado rubro-negro.
A violência dentro e fora de campo, que fez até os clubes europeus pararem de vir jogar o Mundial Interclubes na América do Sul, em 1980, é uma questão cultural para o presidente do Tribunal de Disciplina da Conmebol. Rocha não vê uma solução definitiva para essa situação, mas prevê resultados a longo prazo.
- Essa questão da violência, mesmo em campo, é mais cultural do que disciplinar. Dizer que vamos acabar com a violência completamente é difícil, seria ousadia dizer isso. Mas que essa iniciativa tomada veio no sentido de tentar obter esse resultado, isso é sem dúvida. E vai inibir. Há possibilidades de aplicar determinadas sanções para um estádio que não mostra segurança, para um clube pelo comportamento inadequado de sua torcida. Com o passar do tempo, o torcedor vai perceber que determinadas condutas serão prejudiciais ao próprio clube. Nossa intenção é influenciar culturalmente para inibir esses problemas - advertiu.
Cena comum até então: Carlinhos sai de campo protegido por escudos policiais (Foto: Agência AFP)
- É a iniciativa de criar um tribunal nos moldes do STJD, que é vinculado à CBF. Na Conmebol não existia isso, não havia um código para disciplinar essas questões. Há a necessidade de ser mais rigoroso com as infrações. Era uma questão comum de se escutar no júri esportivo, das queixas que se faziam ao regulamento, de serem meramente penas de multas. Antigamente estabeleciam as penas sem levar em consideração nenhuma referência. As partes ficavam numa situação de insegurança, não existia um parâmetro, uma regra. A situação vai mudar muito. Há previsão de penas severas para situações que ficavam ao limbo. Clubes, jogadores, treinadores e árbitros terão noção do que eles estão sujeitos - explicou Caio César Rocha, representante do Brasil e presidente do Tribunal de Disciplina da Conmebol.
Além do brasileiro, que também é vice-presidente do STJD, o órgão tem o uruguaio Adrián Leiza (vice-presidente), o chileno Carlos Tapia Aravena, o colombiano Orlando Morales e o boliviano Alberto Lozada. A sua função é fazer o julgamento em primeira instância, analisar os lances violentos, as expulsões e os problemas extracampo dentro de um prazo de até 48 horas. Os julgamentos, porém, são diferentes dos habituais no Brasil. A portas fechadas, eles não precisam ser presenciais, e tudo acontece por escrito. Além disso, podem ter júri colegiado ou um juiz único designado para o caso.
O primeiro caso julgado pelo Tribunal de Disciplina foi na semana passada, no Sul-Americano Sub-20, que está sendo realizado na Argentina. Marcelo Trobbiani, técnico da seleção anfitriã, foi suspenso por um jogo após invadir o campo e ser expulso durante o empate por 2 a 2 com a Bolívia. Já o segundo caso deve ter um brasileiro: o São Paulo. A confusão com o Tigre, da Argentina, na final da Sul-Americana 2012, não seria de incumbência do novo formato por ter acontecido antes da criação das câmaras. Mas o comitê executivo confiou o julgamento ao Tribunal. Nessa situação, o uruguaio Adrián Leiza assumirá momentaneamente a presidência, já que um julgamento não pode ter a participação de advogados dos países dos clubes envolvidos.
Punições sem critério marcam quase cem anos de história
A estrutura antiga da Conmebol era muito precária quanto às questões disciplinares. Tanto que funcionou durante 96 anos sem um código de disciplina para aplicar punições. Com isso, a tarefa era de responsabilidade do comitê executivo, que também é formado por um membro dos países ligados à entidade. Eles recebiam um relatório para análise, e cada um dava seu parecer. Com fama de política, as penas aplicadas pela confederação não adotavam um padrão, e o único critério visível era de aplicar punições mais rigorosas para atletas ou clubes reincidentes.
- Agora tem uma câmera disciplinar de primeiro grau e segundo grau. Ficou muito melhor, pois são tratados aspectos bem jurídicos, todos são advogados preparados para o processo. No comitê executivo sempre tem um aspecto menos jurídico (não são todos advogados). Antes, era declarado o fato ao infrator para preparar a defesa, e o comitê analisava com base no estatuto da entidade. Hoje isso caiu por terra - contou Marco Polo Del Nero, presidente da Federação Paulista de Futebol e membro brasileiro do comitê executivo da Conmebol.
Sem respostas da Conmebol, clubes brasileiros se adaptam
Se já não bastasse a dificuldade de enfrentar um Boca Juniors na Bombonera, por exemplo, enfrentar problemas fora do campo tem sido ato corriqueiro para os clubes brasileiros na Libertadores ou na Sul-Americana. Pancadarias entre jogadores, objetos arremessados pelos torcedores e outros contratempos criados pelos adversários formam o clima bélico que as equipes precisam superar para se tornarem campeãs continentais.
- No jogo contra o Boca em 2004, fomos bem recebidos na Argentina, mas na hora de ir para o estádio nos mandaram uns batedores que começaram a dar voltas pela cidade. Por fim, chegamos a uma rua onde o ônibus não conseguia passar, e os jogadores tiveram que andar uns cem metros no meio da torcida deles. Entramos pelo vestiário do Boca faltando dez minutos para o jogo. Não deu para fazer o aquecimento direito e sofremos um gol com dois minutos. Serviu de lição, depois sempre nos precavíamos, mandávamos pessoas para fazer o itinerário. Dá para reclamar (na Conmebol), mas não acontece nada. Informalmente, uma vez ou outra reclamamos, mas conosco não teve providência - contou Fernando Carvalho, ex-presidente do Inter.
Neymar é atingido por pedra durante jogo contra o Bolívar, pela Libertadores de 2012 (Foto: EFE)
- O jurídico da Conmebol era limitado, não tinha um tribunal que pudesse julgar os casos. No Brasil, se acontece algo nesse sentido, a gente entra com uma ação contra o time adversário. Na Conmebol não tem como fazer isso, é só uma representação. O tribunal é uma reivindicação nossa há muito tempo. Antes, ficava a critério de uma decisão que não tinha nem defesa - argumentou Michel Assef Filho, advogado rubro-negro.
A violência dentro e fora de campo, que fez até os clubes europeus pararem de vir jogar o Mundial Interclubes na América do Sul, em 1980, é uma questão cultural para o presidente do Tribunal de Disciplina da Conmebol. Rocha não vê uma solução definitiva para essa situação, mas prevê resultados a longo prazo.
- Essa questão da violência, mesmo em campo, é mais cultural do que disciplinar. Dizer que vamos acabar com a violência completamente é difícil, seria ousadia dizer isso. Mas que essa iniciativa tomada veio no sentido de tentar obter esse resultado, isso é sem dúvida. E vai inibir. Há possibilidades de aplicar determinadas sanções para um estádio que não mostra segurança, para um clube pelo comportamento inadequado de sua torcida. Com o passar do tempo, o torcedor vai perceber que determinadas condutas serão prejudiciais ao próprio clube. Nossa intenção é influenciar culturalmente para inibir esses problemas - advertiu.
Nenhum comentário:
Postar um comentário