quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Alfabetizado pelo rap, calejado pela vida: como Aranha reagiu ao racismo

No Dia da Consciência Negra, goleiro do Peixe conta como a música influenciou sua trajetória e o incentivou a não se calar diante dos insultos que ouviu em Porto Alegre


Por
Santos, SP


O meu orgulho é ser um negro verdadeiro. Porque tem muito negro que não está nem aí. Se hoje eu caio aqui, é aqui mesmo que me levanto. Somos descendentes de um povo sofrido. O Brasil carrega vícios, de pai pra filho, pra neto. O trauma que carrego para não ser mais um preto fodido. Na rua está tudo misturado. Você não muda, mas as pessoas ao redor mudam com você. Para alguns, dinheiro é tudo. Pra mim, não é. Quem é que vai pagar por isso?    

A mensagem do rap e o discurso de Aranha se misturam e se completam. No trecho acima, há versos das músicas que o goleiro do Santos costuma escutar e declarações que ele deu em uma entrevista de mais de uma hora, no CT Rei Pelé, em Santos. A essência é a mesma. Parece até o mesmo som, a mesma opinião. Mas são diferentes canções, momentos distintos da conversa.

Aranha Santos (Foto: Marcos Ribolli)
Aranha completou 34 anos no último dia 17 de 
novembro. Ele nasceu em Pouso Alegre-MG 
(Foto: Marcos Ribolli)


Hoje, 20 de novembro, é o Dia Nacional da Consciência Negra. Mas por que não considerar que houve outro dia de consciência negra em 2014? O caso de injúria racial contra Aranha, em 28 de agosto, em Porto Alegre, marcou a história do goleiro, dos negros, do futebol e da sociedade brasileira. A reação do santista aos gritos de "macaco" de alguns gremistas teve como consequência a eliminação do Grêmio da Copa do Brasil, punição aplicada pelo STJD por conta da atitude dos torcedores. Mas até reagir naquela noite e gritar contra o racismo, Aranha sofreu.

- Não é o barulho dos ruins que incomoda. É o silêncio dos bons que atrapalha o andamento das coisas - resume Aranha, parafraseando Martin Luther King, um dos maiores líderes da luta contra o racismo nos Estados Unidos.
infância

Aranha Santos (Foto: Marcos Ribolli)"Aprendi mais com o rap do que na escola", diz  (Foto: Marcos Ribolli)


Pouso Alegre, Minas Gerais. Na cidade mineira, no dia 17 de novembro de 1980, nascia Mario Lúcio Duarte Costa. Filho de uma dona de casa e um pedreiro, o garoto teve uma infância simples. Na base do improviso, como gosta de dizer. Pela zona rural do pequeno município, ele e seus amigos faziam o que podiam para montar um campo de futebol.

- Brincadeira de moleque é na rua. Mas sempre com improviso. A marcação do campo era feita com tijolo, as traves com bambu. Eu era atacante naquela época - conta Aranha.
Atacante com a bola nos pés, defensivo nas relações pessoais. O menino Mario nunca foi muito extrovertido. Preferia observar a falar. Perdeu o pai cedo, num acidente de trabalho. Mas nunca deixou de ter, em casa, a referência masculina. O avô esteve sempre por perto. E a mãe foi seu porto seguro nesse período.

- Tive a felicidade de sempre ter a minha mãe e meu avô por perto. Era outra época, de outros valores. Hoje em dia está tudo invertido. Mas naquela época o respeito prevalecia. Cresci com bons valores em volta de mim. E isso me ajudou a ser o que sou atualmente.

Respeito é algo que Aranha prega em várias de suas declarações. Até por ser extremamente reservado, o goleiro do Santos não aceita que invadam seu espaço. Lições da infância.
adolescência

O interesse pela escola era mínimo. A bola chamava mais a atenção. O que o menino Mario via em Pouso Alegre, especialmente na zona rural em que vivia, não o motivava a ver nos livros um futuro melhor. O futebol, embora fosse apenas uma diversão até então, era um caminho mais promissor para quem desde cedo aprendeu a espalmar para escanteio o racismo.

- Nunca me interessei muito pela escola. A maioria estudava para aprender a ler, escrever, fazer conta e depois nada mais que isso. Para ser doméstica, a mulher não precisava saber de raiz quadrada. E para trabalhar na obra, você não precisa de diploma. E como o acesso à faculdade era muito caro, a maioria estudava só até a oitava série - diz o goleiro do Peixe.

Aranha Santos (Foto: Marcos Ribolli)
"Em 15 anos de futebol, se eu juntar todos os 
dias que vi minha mãe, deve dar uns três 
meses" (Foto: Marcos Ribolli)

Aranha só fez o que hoje se chama de Ensino Fundamental, assim como a maioria dos amigos. Mas nem imaginava que a vida lhe colocaria em uma outra escola: o futebol. Foi no esporte que o ainda adolescente Mario Lúcio viu a chance de construir um futuro melhor para sua família. Vencer o preconceito com a bola nas mãos foi o caminho escolhido pelo garoto mineiro.

- Nunca enxerguei isso com clareza. Futebol é muita incerteza. Tem muito craque que fica pelo caminho. Mas, no momento em que saí de Pouso Alegre, resolvei arriscar. Só de ter alojamento, alimentação e ajuda de custo... Foi a partir daí que comecei a traçar metas. Para muitos, não passava de um sonho, mas eu fui agarrando as oportunidades - lembra Aranha.
fase adulta

Aranha Santos (Foto: Marcos Ribolli)Aranha tem a seriedade como marca principal (Foto: Marcos Ribolli)


Aranha completou 34 anos na última segunda-feira. Titular absoluto no Santos, o goleiro tem uma vida bem melhor agora do que há 15 anos, quando iniciou essa caminhada no instável mundo do futebol. Conseguiu comprar uma casa para sua mãe e tem segurança para planejar melhor o futuro de sua família. Mesmo assim, as dores de tanto sacrifício ainda incomodam.

- Eu posso dizer que em 15 anos de futebol, se eu juntar todos os dias que vi minha mãe, deve dar uns três meses. E isso é picado. Abri mão de muitos momentos para chegar onde cheguei. E não há dinheiro que pague isso. Eu não reclamo, mas tem coisas que não dá para voltar. Tem muitos momentos em que você quer estar presente, mas não está - lamenta o jogador.

A diversão virou profissão e a profissão virou sacrifício. O goleiro Aranha pode ser considerado um sobrevivente no futebol. Principalmente diante da sua constante vontade de desistir.

- Até hoje eu penso em desistir. Nunca deixei de pensar em desistir. Muita gente critica, persegue e isso começa a refletir na sua vida. E quando você é jogador, as pessoas começam a te cobrar algumas coisas. Roupas boas, carros do ano, uma casa... Você não muda, mas as pessoas ao seu redor mudam com você - diz o santista.

Apesar da intenção de desistir em vários momentos, Aranha valoriza o que conquistou. Gosta de lembrar da época em que foi servente de pedreiro, plantador de feijão e empacotador para não desistir precocemente da profissão que lhe deu tanta segurança. Foi nessa labuta, no entanto, que Mario Lúcio conheceu as várias faces do preconceito racial.

personalidade

Aranha tem aversão a aparecer. Não gosta de posar para fotos. Toma muito cuidado em não usar o futebol como meio de promoção pessoal. Tanto que ele recusou vários convites de programas esportivos para falar do caso de injúria racial sofrido em Porto Alegre. Preferiu se preservar para não ser acusado de querer holofotes. Mesmo sendo por uma causa mais do que justa.

- Não quero fingir ter que ser outra pessoa para ter sucesso. Eu poderia ser muito mais do que sou hoje se me vendesse mais, se quisesse aparecer mais. Não entrei no futebol para ser uma estrela, badalado. Entrei no futebol porque eu gostava de futebol. E porque uma hora eu vi que aquilo era uma profissão e que poderia viver daquilo - resume o goleiro.

Aranha Santos (Foto: Marcos Ribolli)
Em 2014, Aranha teve papel importante na luta 
contra o racismo no Brasil (Foto: Marcos Ribolli)


Todos aqueles que convivem com Aranha relatam o quão reservado ele é. Seja em Minas Gerais, Campinas ou Santos, as pessoas mais próximas do goleiro ressaltam a preocupação dele com suas convicções. Muito embora tenha quebrado um paradigma ao esbravejar contra a injúria racial no Sul, ele não gosta de sair do roteiro. Fala de futebol quando o assunto é futebol, de racismo quando o assunto é racismo... Definitivamente, prefere não misturar as estações.

- Esse caso ultrapassou a barreira do futebol. E por isso muita gente que não está nem aí para o futebol ficou me conhecendo. Tive de tomar um cuidado muito grande com o assédio após isso. Se eu não tivesse essa preocupação poderia ter passado a ser o agressor, e não a vítima. Não poderia ir a um debate de futebol falar de racismo, estaria me promovendo - explica Aranha.
racismo


Aranha especial (Foto: Marcos Ribolli)Aranha durante a entrevista no CT ReiPelé (Foto: Marcos Ribolli)


A primeira vez ainda foi na infância. Aranha não se lembra ao certo como foi seu primeiro contato com uma atitude ou gesto racista contra ele. Foi perceber que aquilo tinha sido agressivo depois de anos. A ingenuidade quando criança não o permitiu se defender, mas a esperteza despertada na adolescência o calejou para enfrentar o que viria dali por diante.

- Desde criança eu tinha noção, mas não entendia. Tem muita brincadeira, muita piada que você não entende e quando cresce passa a entender na adolescência. Fui amadurecendo com essas situações de as pessoas atravessarem a rua quando você está passando na mesma calçada, de a poltrona ao meu lado no ônibus estar vazia e ninguém sentar... - lembra.

A dor parece ser maior quando o preconceito é velado. Talvez porque nesses casos Aranha não possa ser combativo como foi em Porto Alegre. Ele até explica com pitada de bom humor.
Fui amadurecendo com essas situações de as pessoas atravessarem a rua quando você está passando na mesma calçada, de a poltrona ao meu lado no ônibus estar vazia e ninguém sentar...
Aranha, sobre o racismo

 - Ninguém está passando na rua e chama um negão de macaco. Por quê? Porque sabe que vai tomar porrada, que o bicho vai pegar - diz o goleiro, rindo em seguida.

Aranha, de certa forma, se assustou com a repercussão do caso de injúria racial na Arena do Grêmio. Não esperava que fosse tomar tamanha proporção. Mas fala com orgulho sobre sua atitude, principalmente porque ela provocou reações na esfera esportiva e também judicial - o Grêmio foi eliminado, torcedores foram punidos, indiciados...

- Serviu para o pessoal ver que existe punição e ela pode ser aplicada. Se deixo passar batido naquele dia, eles estariam se sentindo livres para fazer o mesmo em outras partidas. Criança não tem respeito pelo pai. Primeiro ela tem medo, depois que fica mais velha é que tem respeito. O torcedor também é por aí. Precisa ter medo primeiro - diz o goleiro.

rap

O QUE ARANHA CURTE:

- Consciência Humana
- Racionais MC's
- Thaide e DJ Hum
- Comando DMC

* Aranha foi quem escolheu a trilha do vídeo que você pode ver acima.

Aranha e o rap são parceiros inseparáveis. Aliás, os dois se "conheceram" num casamento. Mario Lúcio estava no enlace matrimonial de um tio quando ouviu pela primeira vez as batidas do gênero musical que hoje inspiram seus pensamentos e atitudes. O rap foi fundamental na sua formação.

- Estava lá no casamento do meu tio, quando começou a tocar rap. Vi o pessoal cantando e não sabia o que era. Comecei a prestar atenção e era diferente de tudo aquilo que eu já tinha ouvido. Gostei da mensagem e passei a ir atrás de quem tinha mais músicas, peguei emprestado, passei a curtir muito. A partir daí, sempre estive envolvido nesse meio.
Consciência Humana, Racionais MC's, Thaide e DJ Hum, Comando DMC... Grupos que formam a personalidade de Aranha. Mais do que isso: grupos que ensinaram o goleiro a viver.

- Nunca fui muito atrás de informação em jornal, revista, televisão... Ouvia muita coisa no rap. Ouvia, prestava atenção, conversava com outras pessoas. Aprendi muito com a música. Aprendi mais com o rap do que na escola - finaliza o goleiro do Santos.

Aranha Especial  (Foto: Marcos Ribolli)
Aranha tem contrato com o Santos até o final 
da próxima temporada (Foto: Marcos Ribolli)


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