No Dia da Consciência Negra, goleiro do Peixe conta como a música influenciou sua trajetória e o incentivou a não se calar diante dos insultos que ouviu em Porto Alegre
O meu orgulho é ser um negro verdadeiro. Porque tem muito negro que não está nem aí. Se hoje eu caio aqui, é aqui mesmo que me levanto. Somos descendentes de um povo sofrido. O Brasil carrega vícios, de pai pra filho, pra neto. O trauma que carrego para não ser mais um preto fodido. Na rua está tudo misturado. Você não muda, mas as pessoas ao redor mudam com você. Para alguns, dinheiro é tudo. Pra mim, não é. Quem é que vai pagar por isso?
A
mensagem do rap e o discurso de Aranha se misturam e se completam. No
trecho
acima, há versos das músicas que o goleiro do Santos costuma escutar e
declarações que ele deu em uma entrevista de mais de uma hora, no CT Rei
Pelé, em Santos. A essência é a mesma. Parece até o mesmo som, a mesma
opinião. Mas são diferentes canções, momentos distintos da conversa.
Aranha completou 34 anos no último dia 17 de
novembro. Ele nasceu em Pouso Alegre-MG
(Foto: Marcos Ribolli)
Hoje,
20 de novembro, é o Dia Nacional da Consciência Negra. Mas por que não
considerar que houve outro dia de consciência negra em 2014? O caso de injúria
racial contra Aranha, em 28 de agosto, em Porto Alegre, marcou a história do
goleiro, dos negros, do futebol e da sociedade brasileira. A reação do santista
aos gritos de "macaco" de alguns gremistas teve como consequência a eliminação do
Grêmio da Copa do Brasil, punição aplicada pelo STJD por conta da atitude dos torcedores. Mas até reagir
naquela noite e gritar contra o racismo, Aranha sofreu.
-
Não é o barulho dos ruins que incomoda. É o silêncio dos bons que
atrapalha o andamento das coisas - resume Aranha, parafraseando Martin
Luther King, um dos maiores líderes da luta contra o racismo nos Estados
Unidos.
infância
"Aprendi mais com o rap do que na escola", diz (Foto: Marcos Ribolli)
Pouso
Alegre,
Minas Gerais. Na cidade mineira, no dia 17 de novembro de 1980, nascia
Mario Lúcio Duarte Costa. Filho de uma dona de casa e um pedreiro, o
garoto teve uma infância simples. Na base do improviso, como gosta de
dizer. Pela zona rural do pequeno município, ele e seus amigos faziam o
que podiam para montar um campo de futebol.
-
Brincadeira de moleque é na rua. Mas sempre com improviso. A marcação do
campo era feita com tijolo, as traves com bambu. Eu era atacante
naquela época - conta Aranha.
Atacante com a bola nos
pés, defensivo nas relações pessoais. O menino Mario nunca foi muito
extrovertido. Preferia observar a falar. Perdeu o pai cedo, num acidente
de trabalho. Mas nunca deixou de ter, em casa, a referência masculina. O
avô esteve sempre por perto. E a mãe foi seu porto seguro nesse
período.
- Tive a felicidade de sempre ter a minha
mãe e meu avô por perto. Era outra época, de outros valores. Hoje em dia
está tudo invertido. Mas naquela época o respeito prevalecia. Cresci
com bons valores em volta de mim. E isso me ajudou a ser o que sou
atualmente.
Respeito é algo que Aranha prega em
várias de suas declarações. Até por ser extremamente reservado, o
goleiro do Santos não aceita que invadam seu espaço. Lições da infância.
adolescência
O
interesse pela escola era mínimo. A bola chamava mais a atenção. O que o
menino Mario via em Pouso Alegre, especialmente na zona rural em que
vivia, não o motivava a ver nos livros um futuro melhor. O futebol,
embora fosse apenas uma diversão até então, era um caminho mais
promissor para quem desde cedo aprendeu a espalmar para escanteio o
racismo.
- Nunca me interessei muito pela escola. A
maioria estudava para aprender a ler, escrever, fazer conta e depois
nada mais que isso. Para ser doméstica, a mulher não precisava saber de
raiz quadrada. E para trabalhar na obra, você não precisa de diploma. E
como o acesso à faculdade era muito caro, a maioria estudava só até a
oitava série - diz o goleiro do Peixe.
"Em 15 anos de futebol, se eu juntar todos os
dias que vi minha mãe, deve dar uns três
meses" (Foto: Marcos Ribolli)
Aranha
só fez o que hoje se chama de Ensino Fundamental, assim como a maioria
dos amigos. Mas nem imaginava que a vida lhe colocaria em uma outra
escola: o futebol. Foi no esporte que o ainda adolescente Mario Lúcio
viu a chance de construir um futuro melhor para sua família. Vencer o
preconceito com a bola nas mãos foi o caminho escolhido pelo garoto
mineiro.
- Nunca enxerguei isso com clareza. Futebol é
muita incerteza. Tem muito craque que fica pelo caminho. Mas, no
momento em que saí de Pouso Alegre, resolvei arriscar. Só de ter
alojamento, alimentação e ajuda de custo... Foi a partir daí que comecei
a traçar metas. Para muitos, não passava de um sonho, mas eu fui
agarrando as oportunidades - lembra Aranha.
fase adulta
Aranha tem a seriedade como marca principal (Foto: Marcos Ribolli)
Aranha
completou 34 anos na última segunda-feira. Titular absoluto no Santos, o
goleiro tem uma vida bem melhor agora do que há 15 anos, quando iniciou
essa caminhada no instável mundo do futebol. Conseguiu comprar uma casa
para sua mãe e tem segurança para planejar melhor o futuro de sua
família. Mesmo assim, as dores de tanto sacrifício ainda incomodam.
-
Eu posso dizer que em 15 anos de futebol, se eu juntar todos os dias
que vi minha mãe, deve dar uns três meses. E isso é picado. Abri mão de
muitos momentos para chegar onde cheguei. E não há dinheiro que pague
isso. Eu não reclamo, mas tem coisas que não dá para voltar. Tem muitos
momentos em que você quer estar presente, mas não está - lamenta o
jogador.
A diversão virou profissão e a profissão
virou sacrifício. O goleiro Aranha pode ser considerado um sobrevivente
no futebol. Principalmente diante da sua constante vontade de desistir.
-
Até hoje eu penso em desistir. Nunca deixei de pensar em desistir.
Muita gente critica, persegue e isso começa a refletir na sua vida. E
quando você é jogador, as pessoas começam a te cobrar algumas coisas.
Roupas boas, carros do ano, uma casa... Você não muda, mas as pessoas ao
seu redor mudam com você - diz o santista.
Apesar da
intenção de desistir em vários momentos, Aranha valoriza o que
conquistou. Gosta de lembrar da época em que foi servente de pedreiro,
plantador de feijão e empacotador para não desistir precocemente da
profissão que lhe deu tanta segurança. Foi nessa labuta, no entanto, que
Mario Lúcio conheceu as várias faces do preconceito racial.
personalidade
Aranha
tem aversão a aparecer. Não gosta de posar para fotos. Toma muito
cuidado em não usar o futebol como meio de promoção pessoal. Tanto que
ele recusou vários convites de programas esportivos para falar do caso
de injúria racial sofrido em Porto Alegre. Preferiu se preservar para
não ser acusado de querer holofotes. Mesmo sendo por uma causa mais do
que justa.
-
Não
quero fingir ter que ser outra pessoa para ter sucesso. Eu poderia ser muito
mais do que sou hoje se me vendesse mais, se quisesse aparecer mais. Não entrei
no futebol para ser uma estrela, badalado. Entrei no futebol porque eu gostava
de futebol. E porque uma hora eu vi que aquilo era uma profissão e que poderia
viver daquilo - resume o goleiro.
Em 2014, Aranha teve papel importante na luta
contra o racismo no Brasil (Foto: Marcos Ribolli)
Todos
aqueles que convivem com Aranha relatam o quão reservado ele é. Seja em
Minas Gerais, Campinas ou Santos, as pessoas mais próximas do goleiro
ressaltam a preocupação dele com suas convicções. Muito embora tenha
quebrado um paradigma ao esbravejar contra a injúria racial no Sul, ele
não gosta de sair do roteiro. Fala de futebol quando o assunto é
futebol, de racismo quando o assunto é racismo... Definitivamente,
prefere não misturar as estações.
- Esse caso
ultrapassou a barreira do futebol. E por isso muita gente que não está
nem aí para o futebol ficou me conhecendo. Tive de tomar um cuidado
muito grande com o assédio após isso. Se eu não tivesse essa preocupação
poderia ter passado a ser o agressor, e não a vítima. Não poderia ir a
um debate de futebol falar de racismo, estaria me promovendo - explica
Aranha.
racismo
Aranha durante a entrevista no CT ReiPelé (Foto: Marcos Ribolli)
A
primeira vez ainda foi na infância. Aranha não se lembra ao certo como
foi seu primeiro contato com uma atitude ou gesto racista contra ele.
Foi perceber que aquilo tinha sido agressivo depois de anos. A
ingenuidade quando criança não o permitiu se defender, mas a esperteza
despertada na adolescência o calejou para enfrentar o que viria dali por
diante.
- Desde criança eu tinha noção, mas não
entendia. Tem muita brincadeira, muita piada que você não entende e
quando cresce passa a entender na adolescência. Fui amadurecendo com
essas situações de as pessoas atravessarem a rua quando você está
passando na mesma calçada, de a poltrona ao meu lado no ônibus estar
vazia e ninguém sentar... - lembra.
A dor parece ser
maior quando o preconceito é velado. Talvez porque nesses casos Aranha
não possa ser combativo como foi em Porto Alegre. Ele até explica com
pitada de bom humor.
-
Ninguém está passando na rua e chama um negão de macaco. Por quê?
Porque sabe que vai tomar porrada, que o bicho vai pegar - diz o
goleiro, rindo em seguida.
Aranha, de certa forma, se
assustou com a repercussão do caso de injúria racial na Arena do
Grêmio. Não esperava que fosse tomar tamanha proporção. Mas fala com
orgulho sobre sua atitude, principalmente porque ela provocou reações na
esfera esportiva e também judicial - o Grêmio foi eliminado, torcedores
foram punidos, indiciados...
- Serviu para o pessoal
ver que existe punição e ela pode ser aplicada. Se deixo passar batido
naquele dia, eles estariam se sentindo livres para fazer o mesmo em
outras partidas. Criança não tem respeito pelo pai. Primeiro ela tem
medo, depois que fica mais velha é que tem respeito. O torcedor também é
por aí. Precisa ter medo primeiro - diz o goleiro.
rap
-
Estava lá no casamento do meu tio, quando começou a tocar rap. Vi o
pessoal cantando e não sabia o que era. Comecei a prestar atenção e era
diferente de tudo aquilo que eu já tinha ouvido. Gostei da mensagem e
passei a ir atrás de quem tinha mais músicas, peguei emprestado, passei a
curtir muito. A partir daí, sempre estive envolvido nesse meio.
Consciência
Humana, Racionais MC's, Thaide e DJ Hum, Comando DMC... Grupos que
formam a personalidade de Aranha. Mais do que isso: grupos que ensinaram
o goleiro a viver.
- Nunca fui muito atrás de
informação em jornal, revista, televisão... Ouvia muita coisa no rap.
Ouvia, prestava atenção, conversava com outras pessoas. Aprendi muito
com a música. Aprendi mais com o rap do que na escola - finaliza o
goleiro do Santos.
Aranha tem contrato com o Santos até o final
da próxima temporada (Foto: Marcos Ribolli)
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