Três décadas após morte de Garrincha,
distrito de Magé perpetua a paixão pelo ponta direita, e descaso de
autoridades com sua memória é evidente
Por Vicente Seda
Pau Grande, RJ
Mitologia, entre outras definições, é a história dos mistérios,
cerimônias e cultos com que os pagãos reverenciavam os seus deuses e
heróis. Histórias que, no mundo da bola, com o passar dos anos, se
fundem à realidade, se misturam à paixão de torcedor, ganham contornos
mais dramáticos, heroicos, divinos. A lenda do "demônio das pernas
tortas" ainda paira no ar de Pau Grande, o pacato distrito do interior
fluminense que deu ao Brasil um dos maiores gênios do futebol. Neste
domingo, a morte de Mané Garrincha completa 30 anos. O homem simples que
três décadas depois é lembrado como herói, que ainda suscita a mistura
entre realidade e ficção sobre seus dribles em cada "João", continua a
ser a alegria do povo, como descrito em seu local de descanso.
Túmulo de Garrincha tem frase ilustrativa: 'Aqui descansa em paz aquele que foi a alegria do povo'
(Foto: Vicente Seda / GLOBOESPORTE.COM)
O ponto mais óbvio de visita, já que não há sequer um museu sobre o
craque que tornou a cidade do distrito de Magé famosa mundialmente, é o
cemitério. Um túmulo sem adornos exibe uma modesta lápide avisando que
ali jaz o ponta-direita que fez Nilton Santos pedir sua contratação no
Botafogo para não ter de enfrentá-lo. Ninguém era capaz de enfrentar
Garrincha. E enfrentar esse "dogma" em Pau Grande, no maior dos
eufemismos, é pouco prudente. Não são raros os cabeças brancas da região
que clamam ter tomado um gole disso ou daquilo com o Mané. Tomam, além
dos goles, as dores ao menor sinal de contestação.
Manezinho, companheiro de pelada e de bar (Foto: Vicente Seda / GLOBOESPORTE.COM)
Experimente dizer ao senhor Manuel Machado Duarte, não por acaso
chamado de Manezinho, de 65 anos, ex-peladeiro e amigo do ilustre xará -
o que é confirmado pelos moradores locais -, que Pelé jogava mais do
que Garrincha. Incluir Messi nessa conversa, então, é uma afronta.
- O Pelé perto do Garrincha era uma m...! Messi? O time de Pau Grande
era melhor que o Barcelona (risos). Ninguém marcava o Garrincha. Ele
passava por qualquer um. Era uma festa toda vez que vinha aqui - conta.
A mais brilhante estrela solitária alvinegra foi enterrada "com todo
respeito e carinho" pelo coveiro rubro-negro José Carlos Nascimento
Lopes, de 49 anos. Em 20 de janeiro de 1983, tinha 19, mas a lembrança
persiste.
- Aqui não teve quase ninguém do futebol. Não veio nenhum colega dele.
Mas tinha bastante gente da cidade, isso (o cemitério) estava lotado.
Teve gente que chegou a subir nos túmulos. Deu um trabalho danado. A
cidade ficou marcada. Passou a vir muita gente para cá porque o
Garrincha nasceu em Pau Grande. No domingo farão uma homenagem aqui no
cemitério.
O coveiro que enterrou Garrincha há 30 anos (Foto: Vicente Seda / GLOBOESPORTE.COM)
Logo acima da lápide de Garrincha, há outra inscrição em pedra com o
nome de um menino que morreu com 9 anos em 1955, atropelado. Jorge
Rogonisky era sobrinho do Mané.
- O túmulo não é dele, é emprestado, quem paga a manutenção é outra pessoa.
Quase tudo o que resta de homenagens ao campeão mundial de 1958 e 62 é
contaminado pela política, como o busto exibido em frente à fábrica
têxtil onde trabalhou - hoje uma indústria de refrigerantes - ou o
monumento construído no cemitério. Como acontecia em vida pela
ingenuidade e desapego do Mané, ainda há quem queira pegar uma carona em
sua genialidade com os pés. Mas falta quem o faça de forma a colocar
Pau Grande à altura do número de visitantes que recebe por conta de seu
legado.
Os moradores relatam que forasteiros, especialmente estrangeiros
fascinados pelo futebol brasileiro, são vistos com certa frequência por
lá, mas há pouco para apreciar. Um pequeno memorial no Esporte Clube Pau
Grande, onde jogou, seu túmulo, os campos onde brincava com a bola e a
memória de quem vive na localidade. Fora isso, uma escola municipal e
uma choperia carregam sua alcunha. A casa onde Garrincha nasceu tem
acesso proibido. O sisudo sobrinho chamado pelos locais de Neném Baleia
reclama de nunca ter recebido ajuda para reformar o local e, assim,
explica o motivo de proibir até imagens do portão que levaria à infância
do Mané. Mora com dois outros sobrinhos do craque.
O campo de peladas onde Garrincha brincava com a bola (Foto: Vicente Seda / GLOBOESPORTE.COM)
O discurso é recorrente entre familiares, em intensidades variadas,
cada qual com sua justificativa e reclamação sobre a ausência de apoio
para valorização dos locais que marcaram a história de Garrincha. A
família é grande. Uma das netas, Alexsandra dos Santos, contabiliza, de
cabeça, mais de 20 parentes, entre filhos, netos, bisnetos, primos e
sobrinhos vivendo no distrito.
- Convivi muito pouco com o meu avô, eu era nova quando ele morreu e
ele tinha passado a viver em outros lugares. Quando vinha, ficava ali na
varanda com os amigos - disse Alexsandra, apontando para o quintal da
casa de esquina que Garrincha recebeu da fábrica onde trabalhou, após o
Mundial de 58.
Casa que Garrincha ganhou após Copa de 58 Foto: Vicente Seda / GLOBOESPORTE.COM)
Disseram para Garrincha escolher a casa que quisesse em Pau Grande,
conta Manezinho, que a esta altura já se tornara guia. Mas a "página 2"
dessa história releva a "pegadinha". A neta de Garrincha explica e
esclarece também a bronca de alguns dos velhinhos com Pelé.
- Essa casa foi doada pela fábrica, mas nunca teve documentos. Na época
que a fábrica fechou, quiseram vender a casa, e meu pai teve de
comprar. Não tenho nada do meu avô. A minha mãe tinha dois pares de
chuteira, sei que uma delas foi roubada. Levaram para tirar foto, ou
algo assim, e não devolveram. Estamos perto da Copa do Mundo no Brasil e
não tem nada aqui em Pau Grande. Acho que o governo deveria se
envergonhar disso. Algumas pessoas falam mal do Pelé porque acham que
ele não deu atenção, não procurou ajudar o meu avô - disse Alexsandra,
que quer montar uma pequena lanchonete temática no quintal traseiro da
casa.
Alexsandra, neta de Garrincha, e seus filhos (Foto: Vicente Seda / GLOBOESPORTE.COM)
A personalidade do ponta direita espalhou entre amigos, conhecidos e
parentes os objetos que poderiam servir de acervo. Quase todos contam
que não era raro Garrincha dar de presente camisas ou outros acessórios
que usava para jogar, ou mesmo que ganhava no clube. Caso de um manto
número quatro do Botafogo, que um dos moradores afirma ter sido dada ao
seu avô pelo Mané. Em Pau Grande, a memória de Garrincha não está em
objetos arrumados em uma sala. Circulando pela área, Manezinho,
inicialmente arredio, foi tomado pelo orgulho das lembranças do craque.
Cumprimentado a cada esquina ao ser seguido por um forasteiro de bloco
na mão, falava sem parar.
- O Mané era Flamengo, mas foi recusado lá, porque achavam que era um
aleijadinho, e ficou p... Aí, antes de jogo com o Flamengo, dizia: 'Vou
arrebentar com eles". Ele gostava mesmo é de caçar passarinho com a
atiradeira, só passarinho vagabundo. O Pelé perto dele é uma m..., é
pinto, é mesmo. O Garrincha chegava aqui com material de treino na mão
já querendo tomar uma, com dinheiro vivo, de bicho (prêmio por vitórias
no futebol). Mandava eu ir buscar a cachaça. Aprendi a beber com ele. Tomava traçado, que é conhaque com canhaça. Pegava a mulher que queria,
eu peguei muita por causa dele - bradava o senhor, com um sorriso no
rosto.
Memorial
de Garrincha no Esporte Clube Pau Grande no qual fotos antigas do
ex-jogador dividem espaço com os troféus da equipe local (Foto: Vicente
Seda / GLOBOESPORTE.COM)
Às vésperas de passar por uma cirurgia em função de uma hérnia,
Manezinho, com uma disposição ímpar, fez um convite para subir um
matagal próximo da casa de Alexsandra. Um estreito e tortuoso caminho
íngreme levava ao seu santuário, o campinho de peladas onde batia bola
com o Mané. Um pequeno penhasco em uma das laterais era a arquibancada e
o banco de reservas, de madeira, no qual Manezinho diz que Garrincha
nunca sentou, resistiu ao tempo.
- As balizas eram um pouco maiores e de madeira. Isso aqui ficava tudo lotado. Parecia estádio.
Camisa antiga do Botafogo que teria sido dada por Garrincha a um morador de Pau Grande
(Foto: Vicente Seda / GLOBOESPORTE.COM)
No fim do "tour", um outro senhor se aproxima da mesa de bar reservada
para o almoço. Moacir Farias, o Moinha, de 80 anos, perguntava quais
locais foram visitados antes de dizer que também trocou passes com
Garrincha. Manezinho confirmou. Outro pedaço da história do ex-jogador
morreu com seu Toti, o primeiro técnico do Mané, que faleceu em 2012,
aos 89 anos, de acordo com os moradores.
Manuel Francisco dos Santos, o Mané Garrincha, iniciou a trajetória de
52 vitórias, sete empates e uma derrota pela seleção brasileira em 1955
contra o Chile, no Maracanã. É sempre lembrado ao lado de Nilton Santos e
outros craques defendendo o Botafogo, mas no final de sua carreira
atuou por outros clubes. Garrincha morreu de cirrose hepática no dia 20
de janeiro de 1983. Trinta anos não foram suficientes para apagar a
saudade dos tempos em que um par de pernas tortas transformou um pequeno
distrito em capital do futebol - e o Brasil em melhor do mundo.
Foto do Esporte Clube Pau Grande com Garrincha agachado (Foto: Vicente Seda / GLOBOESPORTE.COM)
O banco de reservas que Garrincha nunca esquentou na pelada (Foto: Vicente Seda / GLOBOESPORTE.COM)
Visão geral do cemitério de Raiz da Serra (Foto: Vicente Seda / GLOBOESPORTE.COM)
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