quinta-feira, 19 de março de 2015

Livio Oricchio: Entenda por que a hegemonia da Mercedes será longa

Mudança radical no regulamento da F1 faz disputa tecnológica dominar a categoria


Por
São Paulo
 
Livio Oricchio - Especialista GloboEsporte.com (Foto: GloboEsporte.com)


A mudança radical do regulamento da F-1, na temporada passada, fez da Mercedes uma equipe imbatível, ao menos em condições normais. Venceu 16 das 19 etapas de 2014, com 11 dobradinhas, conquistou o Mundial de Pilotos, com Lewis Hamilton, e de Construtores com quase o dobro de pontos da RBR, segunda colocada: 701 a 405. 

Este ano, seu notável modelo W06 Hybrid demonstrou ser ainda mais veloz e confiável que o carro dos concorrentes. Na abertura do campeonato, domingo, na Austrália, Hamilton ganhou a primeira e Nico Rosberg, o companheiro, ficou em segundo, sem dificuldade alguma, depois de largarem na primeira fila.

Lewis Hamilton Mercedes pole GP da Austrália (Foto: AFP)
Mercedes tem dominado a Fórmula 1 desde 
o ano passado (Foto: AFP)

Está claro para a maioria dos fãs da competição, profissionais da F-1 e da imprensa, que não existe grande perspectiva de que esse cenário será distinto até o fim da temporada e, por mais incrível que possa parecer - em razão das regras do jogo, de como a F-1 híbrida se estabeleceu, da sua natureza - de essa hegemonia não se estender até mesmo mais para a frente.

O regulamento atual da F-1 fez da eficiência da unidade motriz, ou seja, o motor de 1,6 litro, turbo, e os dois sistemas de recuperação de energia, MGU-K, cinético, e MGU-H, térmico, algo sem precedentes na história da competição em termos de importância para as conquistas. A disputa tecnológica passou a dominar a cena numa proporção desmedida. A concorrência esportiva tornou-se bem mais dependente do que já era da eficácia do domínio da tecnologia. Em outras palavras, o engenheiro tornou-se ainda mais importante que o piloto.

De tempos em tempos um time passa a se impor na F-1 e às vezes por temporadas seguidas. No passado, Lotus, McLaren, Williams, Ferrari e RBR também tiveram seus campeonatos onde correram sozinhas, sem adversários a ameaçá-las. Portanto, o fato de Hamilton e Rosberg estarem ganhando tudo não representa uma novidade. Certo? Errado. 

Há diferenças profundas entre o que acontece hoje na F-1 e em outras eras quando determinada equipe dominava. E são essas distinções que estão tirando o sono de Christian Horner e Adrian Newey, da RBR, e mesmo Bernie Ecclestone, promotor do Mundial. Eles e outros personagens do espetáculo sabem que não será a curto e nem a médio prazo que a Mercedes será desafiada.


viagem no tempo
Vale a pena rever o que levou certas escuderias a apresentarem desempenho bem superior ao dos adversários e depois confrontar com o cenário atual a fim de compreendermos como será bem mais complexo passar a vencer a Mercedes.

Num breve resgate histórico, encontramos na distante temporada de 1959 o Cooper-Climax T51 de Jack Brabham, primeiro carro com motor traseiro a vencer o campeonato. A Lotus-Climax 25 de Jim Clark introduziu o conceito de chassi tipo monocoque, em substituição aos tubulares. O escocês seria campeão em 1963 e 1965.

O criador do revolucionário Lotus 25, o genial Colin Chapman, desenvolveu ainda mais o conceito de monocoque ao fazer do motor Ford Cosworth a sua extensão no Lotus 49, de 1967. Não era mais necessário um nicho para acomodar o motor. Com a Lotus 49, Graham Hill conquistou o título de 1968. Esse conceito permanece na F-1 até hoje.

Ainda Chapman, em 1970, lançou outro carro muito além do seu tempo, o modelo 72, com a frente em cunha, radiadores nas laterais, suspensão com barra de torção e discos de freios internos. Jochen Rindt tornou-se campeão em 1970 e Emerson Fittipaldi, em 1972. Mais uma vez Chapman fez escola em 1978, ao lançar o conceito do carro-asa, no modelo Lotus-Ford 78. Mario Andretti venceu o campeonato de 1978 com seu sucessor, o Lotus 79.

A Williams criou, em 1992, novo padrão de desempenho com o FW14B-Renault e sua eficiente suspensão ativa. Nigel Mansell celebrou o Mundial. Em 2009, Ross Brawn coordenou o projeto do modelo BGP001-Mercedes, com o duplo difusor, com o qual Jenson Button foi campeão.

vettel rbr gp da austrália (Foto: agência Reuters)
RBR-Renault de 2011: moda conceitual na F1 
(Foto: agência Reuters)


Encerrando essa rápida viagem pelos monopostos que lançaram moda conceitual na F-1 está o RB7-Renault da RBR, de 2011. Newey e os técnicos da Renault desenvolveram o chamado escapamento aerodinâmico, responsável pelo domínio de Sebastian Vettel naquele ano, 11 vitórias, 17 pódios, em 19 etapas, e com responsabilidade na conquista dos títulos nas duas temporadas seguintes.


era fácil copiar
Todas essas revoluções técnicas na F-1, com exceção do escapamento aerodinâmico da RBR, eram bem visíveis e fáceis de serem compreendidas pelos projetistas das escuderias adversárias. Haja vista que em alguns casos acabaram sendo copiadas no mesmo ano em que foram lançadas.

Descobrir que o adversário adotou o motor atrás do piloto, o chassi tipo monocoque, as asas invertidas nas laterais para fazer o carro asa, a suspensão ativa e o duplo difusor não exigia grandes esforços. E a adoção dessas soluções, da mesma forma, ao menos de um ano para o outro, também não representava nenhum mistério maior. Os novos conceitos empregados e suas inegáveis vantagens eram bem identificáveis. Não era tão difícil reduzir a diferença de desempenho para o time responsável por introduzir o novo conceito.

Com relação ao escapamento aerodinâmico da RBR a história é um pouco diferente. Entender como funcionava e descobrir a importância do mapa de gerenciamento do motor para obter esse efeito não foi de imediato. Mas também uma vez decifrado o enigma, os adversários da RBR adaptaram seus carros para recebê-lo rapidamente. A razão da hegemonia dos monopostos da RBR pode ser atribuída a esse recurso em 2011, mas não em 2012 e 2013. Os concorrentes já dispunham do escapamento aerodinâmico.

Michael Schumacher foi o primeiro vencedor do GP do Bahrein, em 2004, com Rubinho em segundo (Foto: Getty Images)
Projetos da Newey para a RBR lembraram os 
dos carros dos cinco títulos de Schumacher (
Foto: Getty Images)


Os projetos de Newey para a RBR nesses dois anos lembraram os dos carros dos cinco títulos de Michael Schumacher na Ferrari, de 2000 a 2004. Eram excepcionalmente bem concebidos e construídos, mas não incorporavam nada de revolucionário, ao menos nada que os concorrentes não tinham. O motivo principal de sua maior velocidade era a eficiência da integração das refinadas soluções aerodinâmicas e mecânicas do projeto.


Portanto, um grupo de engenheiros de outro time poderia potencialmente conceber um modelo capaz de lutar com a RBR, em 2012 e 2013, e a Ferrari, nos anos de ouro de Schumacher. Essas equipes não tinham segredos tecnológicos.


o que acontece hoje na f-1?
A principal vantagem da Mercedes está na capacidade de produzir trabalho de elevada precisão da complexíssima unidade motriz. E para desvendar seus segredos não basta percorrer o grid, antes da largada, como historicamente os projetistas fazem, observar o carro sem carenagem, instruir os seus fotógrafos a registrar tudo e depois na sede analisar as imagens.


Cowell, o novo Newey
Enquanto o foco das atenções da engenharia da F-1 esteve por vários anos em Newey, pelo sucesso dos monopostos da RBR, agora se concentra em outro engenheiro inglês, Andy Cowell, o diretor responsável pela unidade motriz da Mercedes. Não foi por outra razão que a Ferrari fez uma proposta milionária para Cowell em agosto do ano passado. E não para Newey. Cowell não aceitou.

Já estava claro para todos que uma unidade motriz como o da Mercedes, mais do que responder com potência e resistência, além do baixo consumo de combustível, permite ao grupo responsável pelo projeto do chassi vantagens importantes. E igualmente decisivas na eficiência do projeto como um todo.

Por exemplo: a unidade da Mercedes disponibiliza potência de forma mais progressiva que as demais. Algo de extrema importância por conta das características naturais dos motores turbo, de serem brutos nesse quesito. A suavidade na resposta de potência da Mercedes garante maior equilíbrio ao carro, notadamente nas saídas de curva.

Nico Rosberg deu mostra do poderio da Mercedes ao fazer segundo melhor tempo com pneus médios (Foto: Getty Images)
Mercedes disponibiliza potência de forma mais 
progressiva que as demais (Foto: Getty Images)


Nunca é demais lembrar que o controle de tração é proibido e os pneus Pirelli são construídos para se degradarem mais rapidamente, o que reforça a importância de uma unidade motriz harmônica como a da Mercedes. Sua influência se estende para todas as áreas do carro.

Outros avanços: a área de radiadores exigida é menor que a da concorrência, facilitando sobremaneira a concepção aerodinâmica, ainda fundamental na F-1. O desenho da unidade motriz como um todo propicia que sua ligação com o monocoque, de um lado, e com o conjunto traseiro, a transmissão e as suspensões, do outro, seja simplificada.

Agora fica mais fácil compreender, também, as razões de o chassi da Mercedes ser tão eficaz como sua unidade motriz. Um é função do outro. Concebidos para trabalhar com um elemento único. A Mercedes tem o que na F-1 define como a complexidade da simplicidade, característica geral dos projetos mais bem-sucedidos.

Como se tudo isso não bastasse, no caso da Mercedes a interação entre motor de combustão interna, turbo, e os dois motores elétricos dos sistemas de recuperação de energia está muito à frente do que fazem Ferrari e Renault. Por essa interação entenda-se os “diálogos” em milissegundos estabelecidos entre os sistemas eletrônicos e mecânicos, responsáveis por armazenar potência e disponibilizá-la.

A programação da central de gerenciamento eletrônico desses sistemas é também uma das áreas de maior avanço da Mercedes.

A maior prova de que é um imenso desafio de engenharia as unidades motrizes responderem, em todos os parâmetros, no nível da unidade da Mercedes é verificar as severas dificuldades que grupos industriais como Ferrari, Renault e Honda estão enfrentando com seus projetos na F-1.

A Ferrari precisou de um ano para melhorar substancialmente sua unidade. A Renault, por enquanto, andou para trás, e a Honda, apesar de estar trabalhando na sua unidade há quase dois anos, quase não consegue fazer o carro da McLaren funcionar.


Williams, Lotus e Force India
Uma questão emerge de imediato dessa história toda: por qual razão escuderias que também competem com a unidade Mercedes, no caso Williams, Lotus e Force India, não produzem monopostos de desempenho pelo menos semelhante? Antes de tudo, é preciso reconhecer a competência dos engenheiros que trabalham sob a coordenação de Aldo Costa na definição das diretrizes do projeto e desenho do carro da Mercedes, e de Geoff Willis, na área de aerodinâmica.

Depois há algo que ajuda a explicar bastante esse sucesso: como a Mercedes produz sua própria unidade motriz, ainda em 2011, quando as pesquisas começaram, chassi e unidade motriz foram concebidas já nessa fase de maneira a integrarem-se, como descrito, para um ser função do outro. Esse casamento com comunhão de bens entre as duas partes que a Mercedes apresenta hoje na F-1 é o resultado dessa possibilidade que a montadora alemã tem por fazer tudo em casa. 


FONTE:
http://globoesporte.globo.com/motor/formula-1/noticia/2015/03/livio-oricchio-entenda-por-que-hegemonia-da-mercedes-sera-longa.html

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