Após prisão, jogadores da equipe patrocinada pelo goleiro são chamados de 'assassinos'. Amigos do ex-camisa 1 tentam recomeço em Minas
Criado há 18 anos, o 100% Futebol Clube teve uma fonte de inspiração para escolher as cores do seu uniforme: o verde representava a esperança; o branco, a paz. Apadrinhado pelo goleiro Bruno - chamado de “paizão” pelos jogadores - e tendo Luiz Henrique Romão, o Macarrão, como presidente e goleiro, o time do bairro da Liberdade, em Ribeirão das Neves, Minas Gerais, sucumbiu desde a prisão da dupla, em julho de 2010, envolvida na morte de Eliza Samudio. A época de “vacas gordas”, quando o ex-camisa 1 do Flamengo patrocinava a equipe, com direito a festas e regalias, ficou no passado. Chegou a hora passar por apuros e ouvir provocações das torcidas adversárias, incluindo gritos de “assassinos”, encarar debandada de atletas, falta de dinheiro e o rótulo de “maldição de Eliza Samudio” (assista ao vídeo acima).
Acabou a paz. Restou o verde da esperança por dias melhores.
- Fomos chamados de time de assassinos. Antes do que aconteceu, éramos os mais requisitados para jogar a Copa Vagalume, campeonato amador mais disputado da região. Depois da prisão do Bruno e do Luiz Henrique, logo no jogo de estreia, levamos o primeiro gol, e o pessoal começou a gritar que era a maldição da Eliza Samudio, por isso o time estava desse jeito. O psicológico da galera foi lá embaixo, desmotivou. Depois, falaram que nosso uniforme era de presidiário, pois era listrado. Fomos à Liga de Ribeirão das Neves para regularizar algumas coisas e vimos a diferença. Maltrataram a gente, não aparecia arbitragem em jogo nosso. Diziam que éramos time de arruaça. Sujaram a nossa imagem. Então, montamos um elenco totalmente diferente – afirmou Roberto da Silva, jogador, organizador e amigo de Macarrão, cria do bairro onde nasceu o 100%.
Time
que já teve Bruno e Love agora luta pelo recomeço em campo de terra
batida chamado de La Bambonera. Um dos fundadores da equipe, Ratinho
abriu um salão (Fotos: Janir Júnior e arquivo)
Fabiano Moreira, o Ratinho, era tratado como o “menino de ouro” por Bruno. Um dos fundadores e hoje presidente do 100% FC, ele teve que depor quando o assassinato veio à tona. Agiu como testemunha de defesa e não teve problemas com a Justiça. Dublê de atacante e lateral-esquerdo, ele lembra o baque no time apadrinhado pelo goleiro quando o jogador foi preso.
- O 100% desmoronou, foi para o chão. Tínhamos jogadores de qualidade, e todos foram embora. Todo mundo no bairro queria ter uma camisa do 100%. Isso acabou. Íamos ao shopping com a camisa e ficavam olhando para a gente. Tentamos recomeçar do zero. Mas sempre tinha a piadinha de que era o time do Bruno – recordou Ratinho.
Macarrão: presidente, goleiro e o elo com Bruno
O time do 100% começou com peladas nas ruas do bairro Liberdade, onde nasceu Macarrão. No início, sobrevivia à base de “vaquinhas” e premiações com Ki-Suco. Depois de campeonatos de futsal, começaram a chegar jogadores, e o time foi para o campo. O nome foi ideia de Maka e Ratinho.
- Já que somos unidos para caramba, uma família, vamos colocar o nome de 100% - sugeriu Macarrão, fazendo referência ao grupo de pagode 100% Amizade.
Roberto da Silva, organizador do time, tem boaslembranças de Bruno (Foto: Janir Júnior)
- Começamos a disputar campeonatos, nossos jogos lotavam. O Luiz Henrique (Macarrão) sempre foi apaixonado por futebol. Era um grande goleiro, pegava pênalti, todo mundo conhece a fama dele. Batizamos o time e fizemos o primeiro uniforme do 100%, com emblema. Começamos a jogar, ficamos conhecidos e fomos campeões por quatro anos seguidos.
O time começou na Terceira Divisão da liga amadora de Ribeirão das Neves, subiu para Segunda e, a partir de 2005, ganhou Bruno como padrinho. Ou “paizão”, como é chamado até hoje.
- Macarrão disse: “vou apresentar o Bruno”. E ele começou a nos ajudar – recordou Ratinho.
Bruno, então, foi até o bairro da Liberdade para fazer sua estreia como atacante do 100%, formando dupla com Ratinho no campo de terra apelidado de La Bombonera. Titular absoluto do gol do Rubro-Negro, o goleiro amargou uma nova realidade. Mas simpatizou logo de cara.
- Ele (Bruno) veio participar de um jogo aqui e o Macarrão disse: “Esse é meu time de coração, são meus amigos”. Bruno achou bacana e quis jogar. Mas foi para o banco. Ele era profissional lá (no Flamengo), aqui, não. A gente brincava. Ele ficou no banco, entrou na linha, meteu gol e disse: “Gostei do time”. Fizemos uma diretoria, o presidente era o Macarrão e inscrevemos o time na Liga. Conseguimos. Aí começou o negócio de time do Bruno, paizão tá aí, famosão, joga no Flamengo – lembrou Ratinho.
No 100%, Bruno era atacante e usava a camisa 18.
'Patrocínio' de Bruno: festas e futebol na favela depois da morte de Eliza
Bruno começou a ajudar com uniformes, mais de 50 bolas usadas pelo Flamengo na Libertadores, tonéis de Gatorade, chuteiras, remédios para recuperação de lesões, pagamento de viagens para o Rio de Janeiro e “bichos”. E também com festas e churrascos que abriram o apetite dos que sonhavam se tornar jogadores de futebol.
- Sempre teve resenha, churrasco, com ou sem o Bruno. Lógico que com o Bruno a situação favoreceu mais. Nós tínhamos mais carne moída, depois era picanha (risos). Bruno dava força. Todo mundo queria comer a bola para conseguir um lugarzinho em algum time do interior. Chegou muito cara bom de bola, não sei se ganhavam algum dinheiro do Bruno – disse Ratinho, que não recebia salários, apenas “bichos”.
Em setembro de 2009, Bruno conseguiu um amistoso do 100% contra o Santa Cruz. Hospedou os jogadores e amigos no seu apartamento na Barra, reservou um quiosque na praia para os companheiros, levou o time a restaurantes badalados e, na véspera da partida, chegou a dar instruções:
- Nada de álcool.
O empate por 2 a 2, depois de o 100% estar perdendo por 2 a 0, deixou Bruno satisfeito.
No Rio, o goleiro acompanhava a evolução do 100% a distância. Comemorava as vitórias e participava das preleções dando palavras de incentivo pelo telefone.
- Antes de entrarmos em campo, passavam o rádio para ele, que dava duas, três palavras e sempre falava com a gente: “Família é tudo”. Ele passava coisas positivas - destacou Roberto Silva.
Ratinho lamenta momento difícil: "Sempre tinha piadinha sobre o Bruno" (Foto: Janir Júnior)
- Bruno alugou um ônibus. Passamos na casa dele. Ele ligou para o Vagner Love, deu parabéns e disse: “Estou com meus meninos, vou levá-los na sua festa”. Chegamos na casa do Love. Era um sonho se tornando realidade. Abraçávamos o Macarrão. Tinha até palco do baile da Furacão 2000. No dia seguinte, fomos jogar, nesse lugar já foi mais complicado. Passamos nos becos e os caras com aqueles fuzis, andando de motona sem capacete, molecão de arma na cintura. Tomamos uma porretada e perdemos. Bruno bateu muita foto.
Na ocasião, o goleiro não escondeu sua alegria com a pelada, acompanhada por centenas de pessoas:
- Isso nos dá muita força. Não tem preço. Essas pessoas só nos conhecem pela televisão e faço de coração. Não custa nada. Acho que isso mostra o comportamento de um ídolo de verdade. Esse contato é fundamental para eles.
No depoimento dado em seu julgamento no início deste mês, Bruno contou que foi a três festas e participou de uma partida de futebol com o time 100% nos dias seguintes à morte de Eliza Samudio. O goleiro revelou que na noite do crime viajou para o Rio de Janeiro e que, no dia seguinte, foi a uma festa de Vagner Love e também a outro evento, em Angra dos Reis. Dois dias depois do assassinato, ele participou do jogo da equipe de Ribeirão das Neves e também de mais uma festa com os jogadores, em uma casa alugada.
A viagem para Angra relatada por Bruno também contou com a presença do 100% e aconteceu na casa de Fernanda Gomes de Castro. Ex-namorada do jogador, ela teve seu nome envolvido no caso Eliza Samudio, sendo acusada de participação no sequestro e cárcere privado da vítima e de Bruninho. Fernanda chegou a ficar quatro meses presa.
- Chegamos em Angra, na casa da Fernanda, parecia um sonho. O Bruno dizia: “Pode ficar à vontade”. Fizemos passeio de lancha, curtimos muito. A família 100% parabenizou o Bruno, que tinha sido campeão brasileiro (no ano anterior), e agradecemos pela força que nos dava. Ele se emocionou muito e disse que ajudava os moleques a se divertir, brincar e rir. E completou: “Faço não é por interesse, fui moleque e estive onde vocês estão. Ano que vem, o 100% não estará no Rio, não. Nós vamos para a Itália” – recordou Ratinho.
À época, Bruno encaminhava uma possível negociação com Milan.
Assassinato vem à tona e bomba atinge 100%
Poucos dias depois do retorno do 100% do Rio para Belo Horizonte, o nome de Bruno foi envolvido no sumiço de Eliza Samudio. Posteriormente, o de Macarrão.
- Aí é a parte triste da história. Viemos embora e apareceu a notícia. Os fortes ficaram, os fracos foram embora, pois só queriam a época das vacas gordas do 100%. É como uma partida de futebol: tem que estar pronto para ganhar e perder. Eu pensei: não sei o que aconteceu com meus amigos, não posso julgar, só Deus. Independentemente da situação, vão ser meus amigos para o resto da vida – recordou Ratinho.
Ex-goleiro Bruno foi condenado a 22 anos e três meses de prisão (Foto: Renata Caldeira / TJMG)
- Tomamos muito murro na cara.
Elenilson, ex-caseiro de Bruno, e Wemerson Marques de Souza, conhecido como Coxinha, deixaram o time.
O 100%, agora, luta por patrocínios que possam reerguer o time. Uma quantia que seja para pagar o “bicho” dos jogos já ajuda. As negociações começaram.
Aos 29 anos, Ratinho lembra os momentos proporcionados por Bruno. Festas e mais festas no sítio em Esmeralda, apontado pela polícia como local do cárcere privado de Eliza.
O sonho de ser jogador profissional foi deixado de lado, mas Ratinho continua à frente do 100%, disputa jogos amistosos e tem um salão de corte de cabelos pintado com salmos evangélicos e paredes verde e branca, cores do time de coração. E da paz e esperança.
Apesar da condenação de Bruno (22 anos e três meses) e Macarrão (15 anos) pela participação na morte de Eliza Samudio, o amigo do goleiro diz:
- Vamos sempre ser uma família. Levantamos a cabeça, estamos nos reerguendo. Eles sempre vão estar na família 100%. Não sei o destino deles depois disso tudo, mas serão sempre meus amigões.
E, mesmo sem Bruno, a “vaquinha” tem deixado a carne moída de lado e garantido o churrasco de qualidade do 100% depois das partidas.
- Diziam: “Agora, acabou a mamata, né?”. Mas o 100% é uma família. Churrasco para nós é tradição. Comemos picanha, sim.
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