Durante os 20 anos em que enganou clubes e fingia ser jogador de futebol, Carlos Henrique acumulou histórias engraçadas e outras nem tão confiáveis
Carlos Henrique mora atualmente no Rio de Janeiro
– Todo mundo acha que é sobrenome, mas quando eu era pequeno tinha uma semelhança com (Franz) Beckenbauer (considerado o maior jogador da história do futebol alemão). As pessoas com quem eu andava eram muito ignorantes, não sabiam pronunciar o nome direito, descobriram que o apelido dele era Kaiser e passaram a me chamar assim também - garante.
Carlos Henrique Raposo começou sua carreira como centroavante nas divisões de base do Botafogo, em 1973. Depois, foi levado por um amigo para o time juvenil do Flamengo. Na época, Kaiser ainda treinava normalmente, pensava seguir a carreira no futebol.
– Como todo jogador, eu vim de uma família pobre, mas eu queria crescer, ganhar dinheiro, para dar uma condição melhor para a minha família. E eu sabia que a melhor forma de acelerar isso seria através do futebol. Eu queria ser jogador e não queria jogar.
Quando tinha 16 anos, um olheiro foi até a Gávea para observar o atacante Beijoca. Mas ele roubou a cena no treino e acabou sendo contratado pelo Puebla, do México, onde se profissionalizou. Começavam ali as histórias de quem viveu do futebol pulando de clube em clube sem praticamente jogar partidas oficiais...
Kaiser vendia muito bem o seu filme. Foi assim no Bangu. Contratado com fama de artilheiro, vindo do futebol francês, era difícil ser esquecido no elenco. Após usar todas as táticas possíveis e enrolar por um bom tempo, chegou uma hora em que Castor de Andrade perdeu a paciência e mandou o então técnico Moíses relacioná-lo para um jogo.
- O Moíses me acalmou e me garantiu que eu só ficaria no banco, que não entraria - disse.
Mas o Bangu perdia por 2 a 0 e Castor de Andrade mandou a ordem para o banco de reservas para o treinador colocar em campo o atacante. Para não ser desmascarado, Kaiser garante que tomou uma atitude inesperada. Durante o aquecimento, partiu para cima de um torcedor. Arrumou uma briga. E foi expulso.
– Eu comecei a aquecer e vi os torcedores no alambrado xingando o time. Eu pulei o alambrado e fui brigar. Fui expulso antes de entrar em campo.
Kaiser precisou se explicar para um furioso Castor de Andrade. E contou uma história daquelas...
– Eu sentei no vestiário, o doutor Castor entra, quando ele chega próximo de mim eu falo para ele: ‘Antes que o senhor diga qualquer coisa, Deus me deu um pai e levou. E Ele me deu outro. Então jamais vou admitir que digam que meu pai é ladrão e os torcedores estavam atrás de mim falando isso.’ Ele me segurou pela nuca, me deu um beijo e me convidou para viajar. E renovou comigo por mais seis meses - garante.
Kaiser mostra matéria antiga de jornal sobre sua suposta carreira (Foto: Reprodução)
Apesar de ter o aval de um ou outro jogador, Kaiser enganava muita gente nos clubes em que passava, que achavam que ele realmente era um jogador. Em uma das passagens pelo Botafogo, ele foi desmascarado pelo preparador físico Ronaldo Torres, atualmente no Fluminense. No início dos anos 90, Kaiser andava com um enorme celular de brinquedo. Na época, ter um aparelho móvel era um grande luxo, status de pouco. E no vestiário, quando todo o elenco estava se arrumando, ele fingia receber ligações de empresários interessados na sua contratação.
– Eu tinha um celular de brinquedo, colocava ele para tocar e falava ‘não estou a fim, estou bem aqui, vou ficar por aqui mesmo’. Fingia que estava falando com alguém. Quando fui tomar banho o Ronaldo Torres viu que o telefone era de brinquedo e falou para o time todo -revela o ex-jogador.
A cena, que se repetia toda a semana, chamou a atenção de Ronaldo Torres. Um dia, com a ajuda de outros jogadores que estavam "fora do esquema", ele agarrou Kaiser e pegou o celular.
– Ele estava sempre pelos cantos, falava com empresário, fingia falar inglês, falava tudo errado... Um dia eu descobri que ele não falava com ninguém. Fiquei por trás dele e ele não falava com ninguém - conta Torres.
Kaiser foi levado por um amigo para o Ajaccio, time que na época estava na terceira divisão do Campeonato Francês. Na apresentação, se surpreendeu com a festa.
- Era brasileiro e brasileiro tem muita fama por lá. O estádio era pequeno, mas estava bem cheio. Pensei que iria só acenar e tal, mas vi um monte de bolas no campo e percebi que teria um treino. Fiquei nervoso porque logo no primeiro dia eles iriam ver que não jogava nada.
Então Kaiser teve uma ideia maluca. E colocou rapidamente em prática para não ser desmascarado.
- Comecei a pegar todas as bolas rapidamente e chutar para a galera. Os torcedores foram à loucura. Não sobrou uma bola em campo. Ao mesmo tempo beijava a camisa do clube. Conquistei o carinho dos torcedores e acabou só acontecendo um treino físico - garante.
Kaiser chegou a ficar uma semana no Fluminense, mas logo foi descoberto. Mesmo assim, enquanto não arrumava um outro time, ele aproveitava para fingir ser jogador do clube e tirar vantagens com isso.
Kaiser andava por shoppings com o uniforme que havia ganhado para treinar, comprava camisas do Fluminense e distribuia pela cidade. Principalmente para mulheres...
– Ele dizia que jogava, mas nunca jogou. Ele dizia que jogava em um clube, vinha fazer um teste, mas não jogava nada. Ele era mentiroso para caramba. Ele comprava camisa do Fluminense, levava para o shopping e dava para as meninas, para dizer que jogava no Fluminense. Era gente boa. Era 171. 171 não, ele era 342 - disse Ronaldo Torres, atualmente preparador físico do Fluminense.
Kaiser garante que a ida para o Vasco teve um motivo mais nobre do que as contratações pelos outros times. Ele foi levado para o clube para ajudar um jogador cruzmaltino que tinha problemas com álcool. Sua função, dada pelos outros jogadores, era cuidar do colega, o mantendo longe do vício e garantindo sua presença nos treinamentos e nos jogos.
– Fui levado para o Vasco por um jogador no auge de sua carreira, fiquei pouco tempo. Eu cuidava mais da carreira dele do que da minha. Cuidava dele, acordava ele para treinar...
Depois de alguns meses, o então vice de futebol Eurico Miranda apareceu no clube irritado por causa de uma derrota. Viu Kaiser correndo em volta do campo.
- Teve um dia que o doutor Eurico estava de saco cheio e me mandou embora. Ele falou... esse cara ainda está aqui? Ele nunca joga. Manda embora.
Matéria antiga sobre Kaizer em um jornal carioca nos anos 80 (Foto: Divulgação)
O porte físico era parecido. O cabelo, também. Kaiser aproveitava a semelhança com Renato Gaúcho para se passar pelo amigo. Principalmente na noite carioca...
- Apesar de ser um grande amigo, ele me atrasava. Ele se adiantava, só que me atrasava. Eu não estava nas paradas, e ele estava. Falava que era o Renato, e eu dormindo. Que amigo, hein! Dá um livro esse rapaz - disse Renato Gaúcho, atualmente treinador do Grêmio.
Certa vez, Renato Gaúcho foi barrado na porta de uma boate. Não entendeu nada, já que tinha uma área VIP reservada para ele.
- Um dono de boate em Búzios me convidou na praia para ir naquele local à noite. Resolvi aparecer lá com a minha galera. Só que quando eu estava entrando, um segurança me barrou e disse: "Você não pode entrar porque o Renato já está lá dentro" - disse o treinador do Grêmio
Kaiser garante que fez parte do elenco do Independiente, campeão do mundo de 1984. E estaria na foto oficial do time. Ele teria ido para o clube levado por um amigo, Alejandro, que era amigo do Burruchaga, atacante campeão do mundo pela Argentina em 1986 ao lado de Maradona.
O Independiente diz que teve, sim, um Carlos Henrique no elenco naquele ano glorioso. Mas segundo o clube argentino, o jogador era argentino, e não, brasileiro.
Foto oficial do Independiente campeão do mundo. Onde está Kaiser? (Foto: Site Oficial do Clube)
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