Cofres comprometidos, erros administrativos e o trauma do tapetão em 2013 colocam o time no precipício da segunda divisão. Queda pode ser sacramentada nesta terça
“Não há nada menos vazio do que um estádio vazio. Não há nada menos mudo do que as arquibancadas sem ninguém”. Foi o que ensinou, na crônica "O Estádio", o escritor uruguaio Eduardo Galeano. Talvez ainda lhe falte conhecer o Canindé. Na última sexta-feira, alguns raros torcedores ocupavam as arquibancadas de cimento do estádio. Poucos, definitivamente não estavam mudos. Eram gritos de revolta, mas que não preenchiam o vazio que se tornou a Portuguesa, que nesta terça pode cair para a Série C se perder para o Oeste, em Itápolis.
Alguém mais paciente poderia
contar, uma a uma, as testemunhas que deixaram suas casas para acompanhar mais
um capítulo da triste rotina que tomou o tradicional clube paulista nesta
temporada. A derrota para o Icasa, por 2 a 1, nem de longe surpreende – foi a 17ª
na Série B, em 32 jogos. Eram apenas 435 torcedores, o pior público do torneio.
Retrato fiel da equipe quase centenária, afundada em uma crise sem precedentes –
até para quem já está acostumado a elas.
- É o pior momento da nossa
história - resume o presidente do Conselho Deliberativo da Lusa, Marco Antonio
Teixeira Duarte, agora também presidente em exercício do clube, já que o
eleito, Ilídio Lico, foi suspenso pela Justiça Desportiva, e o vice, Roberto
dos Santos, que acumulava a função, entregou o cargo na última semana.
Torcedora vê a partida contra o Icasa, no Canindé
praticamente vazio. Lusa perdeu por 2 a 1
(Foto: Leonardo Lourenço)
A derrocada lusitana não começou
no tribunal que lhe tirou quatro pontos pela escalação irregular de um atleta,
no fim de 2013, mas a decisão que custou a vaga na elite do futebol brasileiro
e derrubou o time para a segunda divisão é um marco desse caminho ladeira
abaixo que culminará, em breve, em uma inédita queda para a Série C – e não há
perspectivas claras de que termine por aí.
O tapetão
Torcedor faz protesto antes de julgamento no STJD (Foto: Thales Soares)
Um
golpe fatal nos cofres
rubro-verdes, já bastante debilitados à época. Quebrado, o clube buscava
empréstimos no mercado, mas repetidamente ouvia recusas. O antigo
mandatário,
Manuel da Lupa, passou a tomar dinheiro em seu nome com o Banif, velho
parceiro
da equipe, para repassar à Portuguesa – o banco cobra mais de R$ 40
milhões.
Parte desse dinheiro, cerca de R$ 600 mil, nunca teve seu destino
comprovado, o
que levou o Ministério Público, que também investiga os motivos que
fizeram Héverton
ser escalado naquela tarde de domingo, a instaurar um inquérito civil,
ainda em
andamento, para investigar uma suposta fraude. Da Lupa, que deixou a
presidência em janeiro, após oito anos como principal cartola do clube,
enfrenta também um processo no Conselho que pede sua expulsão.
A principal fonte de renda da Lusa caiu
vertiginosamente: a arrecadação com direitos de TV passou de R$ 21 milhões, em
2013, para R$ 2,7 milhões neste ano. Ao assumir, a atual diretoria descobriu
ainda que praticamente todas as receitas previstas para 2014 já haviam sido
adiantadas. Restavam R$ 600 mil, da cota a que o clube tinha direito pelo
Campeonato Paulista. Em busca de dinheiro, fez acordo com a DL Tablets, que
ocupa o principal espaço de patrocínio na camisa da Lusa, para que a empresa
pagasse à vista o valor relativo ao contrato válido pelo ano todo. Para isso,
ofereceu desconto sobre o R$ 1,2 milhão acertado – só R$ 900 mil foram
depositados. O remédio teve efeito curto, e o rombo nas contas lusas aumenta
entre R$ 1,5 milhão e R$ 2 milhões por mês.
- Descemos ao fundo do poço,
temos que passar a Portuguesa a limpo e recomeçar do zero - afirma Teixeira
Duarte, filho de Oswaldo Teixeira Duarte, ex-dirigente que dá nome ao estádio
do Canindé.
Banco Quente
O rebaixamento fora de campo
manteve o técnico Guto Ferreira no banco da equipe no início de 2014. O começo
ruim no Paulista, sob risco de nova queda, causou a primeira de uma série de
troca de comandos na Portuguesa. Argel Fucks, Marcelo Veiga, Silas e Vagner
Benazzi também tentaram salvar o time e não tiveram sucesso. Sem esperanças, a
diretoria decidiu manter na função o interino José Augusto até o final do ano.
Argel conseguiu evitar a degola
no Estadual, mas não resistiu na Série B. Era ele quem dirigia a equipe na
estreia da segunda divisão, em Joinville, quando os atletas deixaram o
campo aos 17 minutos do primeiro tempo a mando do presidente Ilídio Lico. O
dirigente dizia cumprir uma liminar, concedida a um torcedor que ingressou na
Justiça comum para que o clube recuperasse um lugar na Série A.
A atitude resultou em W.O., com
vitória do Joinville por 3 a 0. O clube ia, novamente, para o tribunal. Lá,
Lico foi suspenso por 240 dias. Argel, que no episódio demonstrou contrariedade
com a decisão do cartola, recebeu quatro jogos de gancho.
- Fiz milagre no Paulista, mas aquilo
foi a gota d’água para mim. Eu queria jogar. Passei vergonha para caramba no
julgamento, poderia ter sido suspenso por um ano - diz o treinador, hoje no Figueirense, que reclama
não ter recebido nenhum pagamento do período em que trabalhou na Lusa - mesma situação
relatada por Silas e Marcelo Veiga.
- Ele queria que eu colocasse um
garoto no banco contra o Oeste, e que isso se repetisse depois. Dizia que o pai
do menino havia investido um dinheiro. Se eu não fizesse, seria demitido. Foi o
aconteceu - conta Veiga, que deixou o time justamente após a partida contra o clube de Itápolis.
O
mesmo cartola é citado por diferentes personagens como protagonista de
uma história surreal: teria jogado no lixo, ao assumir, imagens de
santos que adornavam seu escritório. Eram peças de Nossa Senhora
Aparecida e Nossa Senhora de Fátima. O
clube, de raízes católicas, nega que isso tenha acontecido.
atrasos
Por causa desses atrasos em seus
pagamentos, os técnicos que dirigiram o time neste ano engordam a lista de ações judiciais enfrentadas pela
Portuguesa.
- Os processos despencam do céu no
clube, dia a dia. Eram 48 ou 50 em 2013, já são 138 desde janeiro - calcula Marco Antonio
Teixeira Duarte.
Na última semana, funcionários paralisaram o Canindé (Foto: GloboEsporte.com)
Entre o elenco, que recebeu mais
de 50 atletas na temporada, a falta de pagamentos atinge apenas aqueles que
treinam afastados, segundo o próprio clube admite. Os atletas que têm sido
utilizados regularmente estão com os pagamentos em dia graças à ajuda de
conselheiros – uma colaboração de R$ 400 mil mensais.
Na última semana, a crise também
chegou aos funcionários que trabalham no Canindé. Sem receber, eles fizeram uma
greve e pararam o estádio e a sede social da Lusa. A situação foi contornada
pelo presidente, que pagou R$ 200 mil do próprio bolso para regularizar a folha
de R$ 300 mil – o valor restante ele conseguiu ao adiantar, ainda em outubro, a
venda de espaços para a tradicional Festa Junina do clube.
A perspectiva de receitas até
dezembro é das mais pessimistas. O aluguel do ginásio e do estádio para eventos
gera valores insuficientes, mas que ajudam. Em curto prazo, há a expectativa de
receber cerca de R$ 1 milhão por ter sido o clube formador do volante Guilherme,
negociado pelo Corinthians com a Udinese, da Itália, em julho. Depois disso, só incerteza.
Do futebol, os dirigentes preveem
negociar um ou outro atleta jovem, das categorias de base. A bilheteria só
amplia o saldo negativo, rodada a rodada: apenas o jogo contra o Vasco teve renda
positiva (R$ 34.287,89). Em boa parte dos outros confrontos, o prejuízo superou
os R$ 30 mil.
Visão geral do Canindé na partida contra o
Icasa: apenas 435 torcedores foram ao
estádio (Foto: Leonardo Lourenço)
culpados
Nas arquibancadas vazias do
Canindé, o que não faltam são críticas aos apontados como culpados pela situação atual do clube.
-
A CBF arrumou essa pra gente.
Tirou a gente, que ganhou o jogo, do campeonato. O Fluminense perdeu em
campo -
afirma o marceneiro Antonio Dionísio, vestido com a camisa da
"Barcelusa", apelido que ganhou o time de 2011, campeão desta mesma
Série B com campanha irretocável.
- O time está muito ruim, mas o
problema não é dos jogadores. É a diretoria que contrata mal. Uma diretoria que
diz que não tem dinheiro e contrata 60 jogadores? - indaga a professora Fátima
Figueiredo de Almeida.
Nem o Ministério Público escapa da
ira dos torcedores portugueses. O órgão estadual, que assumiu uma investigação que
prometia anular a decisão do STJD, até agora infrutífera, também é lembrado.
- Eles iludiram o presidente, que
tirou o time de campo lá em Joinville. Depois o Argel saiu, ele que era um
técnico melhor que os outros. Se tivesse ficado e montado um time para a Série
B, não estava nisso aí - protesta o comerciante Fernando Augusto Leal.
"Cada jogo é um tormento"
É preciso ser dono de um otimismo
irracional para ainda nutrir esperanças de que a Portuguesa consiga se salvar
do rebaixamento para a Série C. A equipe tem apenas três vitórias até aqui – a última,
contra o Vila Nova, foi na rodada final do primeiro turno – e, com 21 pontos,
está 14 atrás do Icasa, o primeiro fora da zona da degola. A queda pode ser
sacramentada nesta terça-feira, em caso de derrota para o Oeste, em Itápolis – se empatar,
torce por um tropeço dos cearenses contra o Náutico, no próximo sábado, para continuar respirando.
A comissão técnica já jogou a
toalha. Depois do duelo de sexta-feira, o discurso de José Augusto foi o de
manter a dignidade nas seis partidas que ainda restam.
- Digo aos jogadores que temos
que levar as coisas a sério. A Portuguesa é muito grande. Eles têm que ter a
consciência de que esse clube, com tantas glórias, não é merecedor deste
momento.
Resignado, o treinador admite que
conta as horas para encerrar a temporada.
- Queremos terminar com isso o
mais rápido possível. Cada jogo é um tormento - conclui.
Após a derrota para o Icasa, Lusa pode ter o
rebaixamento sacramentado nesta terça-feira
(Foto: Leonardo
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