FONTE:http://jornalggn.com.br/noticia/procurador-aurelio-rios-denuncia-o-golpe
Aurélio Rios foi um destacado Procurador dos Direitos Humanos na gestão Rodrigo Janot. Agora, pelo Facebook, expõe a cara do velho Ministério Público, defensor da legalidade.
Rios segue a picada aberta por Ela Wiecko, rompendo a pesada cortina de silêncio que o MPF se impôs. O silêncio, diferente de ser um sinal de respeito ou de isenção, torna todos parte de um mesmo bloco, quer queira ou não, pois calar é consentir.
Por Aurélio Rios, pelo Facebook
Quero compartilhar com tod@s, em especial as amigas e amigos da FIO, a minha visão sobre o que se passa hoje no Brasil. E a primeira palavra é para confirmar o que tod@s já sabem, algo raro, inédito, dramático se passou por aqui com diferentes narrativas e muito tensão interna.
Por uma trágica confluência de fatores, o primeiro presidente eleito pelo povo depois de 21 anos de ditadura militar foi afastado do cargo pelo congresso nacional há 25 anos. Agora, depois de concluído o processo de impeachment, o senado federal afastou a primeira mulher eleita Presidente da República pelo voto direto no Brasil.
Ainda que por motivos distintos e com personalidades e comportamentos completamente diferentes, tivemos uma interrupção no curso do mandato de dois presidentes eleitos diretamente pelo povo, no meio de uma longa história de golpes e rupturas institucionais travestidos de "revolução", "Estado Novo" ou mesmo mudança de sistema político, como foi a queda da monarquia e a ascensão da República, que se deu através de uma quartelada militar clássica.
Se a nossa história política é repleta de episódios lamentáveis e de farsas notórias, o que se passou ontem no Brasil supera em imaginação e sofisticação os golpes clássicos que já tivemos pelo modo como se deu o afastamento da Presidente Dilma e também a não aplicação da pena de inabilitação para atividades públicas e políticas pelo prazo de oito anos.
O afastamento da Presidente eleita se deu pelo motivo errado. As alegadas suplementações de crédito sem autorização do congresso (aqui chamadas de "pedaladas fiscais") de modo nenhum, na minha singela opinião, poderiam caracterizar crime de responsabilidade.
Ainda que fossem consideradas irregulares pelo Tribunal de Contas da União, após anos ratificando tais práticas ou não se importando com elas, esta conduta só poderia ser considerada criminosa, depois de definida como tal, jamais admitindo que uma nova interpretação pudesse retroagir para punir quem quer que seja.
Mas vamos imaginar que os decretos de suplementação fossem um "jeitinho" (a forma brasileira de burlar os rigores da lei e da excessiva burocracia) para arrumar ou maquiar as contas públicas por um determinado período, como alega a acusação à Dilma. Presumindo que tenha sido isso, vamos lá...no meio do maior escândalo documentado de corrupção do país, onde estão comprovadamente envolvidos muitos dos parlamentares brasileiros, inclusive alguns senadores que participaram do seu julgamento no Senado, o que significa essas "pedaladas" ? houve, de fato, algum proveito financeiro de ordem pessoal em benefício de Dilma. Ate onde eu sei, e posso estar enganado, os meus colegas do Ministério Público Federal que investigam, com profundidade, a chamada "operação lava jato" nunca confirmaram nenhum desvio de dinheiro público para uma conta privada da presidente hoje afastada, em definitivo, do cargo.
Então, onde está o nexo causal das operações em questão que levasse a conclusão inequívoca de que haveria crime de responsabilidade ? ou seria a ausência de autorização do Congresso, mesmo sabendo que outras operações do mesmo tipo foram autorizadas sem nenhuma ressalva por ele ? Evidentemente há uma desproporção gigantesca entre as práticas generalizadas de corrupção no país e o esforço hermenêutico extraordinário para acusá-la de cometer crime de responsabilidade que, pela sua natureza, não pode ser, algo comum, trivial, ou definido por interpretação legal aleatória.
Por isso muitos colegas, amigos e familiares que defenderam o impeachment da Dilma no pressuposto de que isso era o melhor para o país, ficaram assustados com a reação dos periódicos estrangeiros sobre o que esta se passando no Brasil,
Primeiro, não é fácil traduzir o que sejam essas operações financeiras que chamamos pedaladas e mais difícil ainda para um analista razoavelmente isento de fora entender como esses decretos podem servir de justificativa para a aplicação da maior pena política que se pode aplicar a um mandatário, que é a perda do mandato popular e dos seus direitos políticos. E pior como ela, a presidente, que, até agora, não responde a nenhum processo ou teve contra si revelado qualquer desvio de dinheiro público, pode ser julgada por parlamentares notoriamente investigados em inquéritos policiais, alguns denunciados pelo Ministério Público e outros até condenados pela Justiça por crimes contra a administração pública!
A narrativa de quem está longe do Brasil leva em consideração que a corrupção no Brasil é endêmica e que, apesar do esforço da operação lava-jato em investigar a fundo o desvio de dinheiro na Petrobrás e outras agência públicas, para esses analistas do "Le Monde", "El País", the Guardian", "La Nacion" e do "NYT", se não há prova de envolvimento da presidente com a malversação de verbas públicas como ela pode ser ejetada do poder por quem notoriamente esta envolvido em casos gravíssímos de corrupção!
Por suposto, a imprensa de fora não vive o dia a dia dos escândalos daqui, e nem sofre na pele o que os brasileiros passam todos os dias e também não está contaminada com a idéia de que " nunca houve corrupção igual, nem no tempo dos militares", jura ? E que um único partido ou agremiação política seria responsável por todas as mazelas do país.
Sem dúvida, houve um processo de desconstrução da Administração Lula/Dilma bem sucedido, e isso merece ser melhor estudado, sem embargo de evidentes equívocos políticos e econômicos cometidos por ambos nos seus mandatos e que num outro momento prometo dar a minha opinião sobre eles, se alguém se interessar por ela.
O fato é que a divergência política deixou de ser algo natural e espontâneo no Brasil para ser uma luta do bem contra o mal, dos brasileiros corretos contra os vendilhões do templo e isso provocou no país uma divisão aparentemente irreconciliável e um rastro de ódio e ressentimento que ainda vai durar algum tempo para ser amenizado.
Neste ponto, não se pode deixar de mencionar que a crise econômica teve um papel importantíssimo na queda de popularidade da Dilma e serviu de munição para centenas de milhares de pessoas fossem às ruas pedir o seu impeachment.
Nos últimos dois anos, os indicadores econômicos que medem a recessão, inflação, desemprego, foram piorando a cada mês, aliado a um fortíssima desvalorização da moeda e isso manchou, inegavelmente, a imagem da presidente junto à população, que se viu com menos dinheiro, menos emprego, e sem possibilidade de viajar ao exterior. A essa agenda negativa deu-se o nome de "conjunto da obra" para tentar legitimar o afastamento imediato da Presidente
Não sou especialista em finanças públicas ou em macroeconomia, mas sei que fatores internos e externos auxiliaram a derrubar a nossa economia, embora a crise política também tivesse um papel central na piora desses indicadores.
Isso porque todas as medidas pensadas neste último mandato de Dilma para ajustar a economia e recuperar a confiança do mercado foram boicotadas ou solenemente ignoradas pelo Congresso, onde Dilma perdia apoio a cada dia, tendo sido derrotada em quase todas as votações importantes para o seu governo, após a eleição do Deputado Eduardo Cunha como Presidente da Câmara dos Deputados, e que somente foi afastado do cargo este ano pelo Supremo Tribunal Federal a pedido do procurador Geral da República por lavagem de dinheiro e outros crimes narrados na denúncia.
É certo que, num regime parlamentar, o Governo Dilma se dissolveria em fevereiro de 2015 quando ela perdeu a governança dos projetos estratégicos do país, mas seria trágico se assim fosse, porque o primeiro ministro seria a nossa versão de "Frank Underwood" .
Era uma tragédia anunciada ou se preferirem uma tempestade perfeita: grave crise econômica, perda da maioria parlamentar e o envolvimento de aliados, ministros, gestores e diretores de órgãos e agências públicas em casos massivos de corrupção.
Nisso a representação em favor do impeachment não precisou de fatos incontroversos ou gravíssimos para fundamentar o pedido. Bastou uma nova interpretação do TCU sobre as tais "pedaladas" e já se tinha o ambiente perfeito para se tirar a presidente Dilma do cargo para o qual fora eleita com mais de 54 milhões de votos, mas que aos poucos vai perdendo apoio popular até chegar a um índice muito baixo de aceitação do seu governo, medido pelos principais institutos de pesquisa de opinião pública.
Claro que, para a maioria dos brasileiros, o governo ia muito mal, incapaz de debelar a crise econômica e já sem apoio parlamentar. Porém, o baixo índice de popularidade da Presidente não autorizaria, por si, a perda do mandato que, pela Constituição brasileira, somente pode ocorrer quando o mandatário tiver praticado crime de responsabilidade.
No presidencialismo, governo fraco, economia em perigo, se resolve de outro modo ou com novas eleições mas não pelo processo de impeachment.
E aí a guerra de narrativas tem contornos mais fortes. Para um observador de fora, o mundo vive uma crise política e econômica grave e especialmente a Europa passa momentos muito difíceis, que vcs todos sabem, com problemas econômicos sérios em vários países da zona do Euro, além de questões complexas identidade e pertencimento do qual o BREXIT é o exemplo mais notável e recente.
Para eles, a crise brasileira não é vista isoladamente e um processo de impeachment por conta de um mal governo não faz nenhum sentido para quem está acostumado a cobrir situações políticas bem mais desanimadoras do que a nossa.
Enquanto isso parte significativa da imprensa brasileira pintava o pior cenário econômico e político para justificar o impeachment o mais rápido possível, independente da configuração jurídica do crime de responsabilidade.
E aqui, já pedindo desculpas pela longa mensagem, chego ao fim da minha narrativa para concluir que houve sim um golpe parlamentar no Brasil que afastou uma mandatária do seu posto sem demonstração cabal de crime de responsabilidade e é certo que o "conjunto da obra" pesou decisivamente no veredito dos senadores julgadores!
E aí vem o último ato, depois de aprovado o afastamento em definitivo da Presidente Dilma, alguns senadores, ao que parece, se sentiram culpados por condenar uma inocente, outros por desejar se beneficiar de idêntico benefício, inventam uma tese nova de que a perda dos direitos políticos não acompanham necessariamente a pena principal.
Essa articulação coordenada pelo Presidente do Senado, Renan Calheiros, criou um imenso paradoxo. Se a Presidente, de fato, cometeu crime de responsabilidade, ela deveria ser afastada da vida pública como conseqüência da gravíssima pena a ela aplicada. Mas se ela fora condenada pelo "bem do país" ou pelo "conjunto da obra", o Senado participou de uma farsa e para compensar o mal feito, resolveu, de forma criativa, condenar o Governo e absolver a pessoa da Presidente, no melhor "jeitinho" brasileiro.
Em resumo, o Senado da República transformou o processo do impeachment em um espetáculo burlesco, onde os fatos e a sua configuração jurídica não tem a menor importância e onde sobejam a hipocrisia e o cinismo pois, para muitos senadores o governo Dilma é mesmo um desastre e por isso ela deve ser afastada definitivamente da presidência, mesmo sendo honesta. Ah, e o crime de responsabilidade ? um mero detalhe sem importância.
A decisão do Senado, longe de fazer justiça e pacificar o pais, leva a fundadas dúvidas a respeito da legitimidade do Vice presidente agora empossado como Presidente da república Federativa do Brasil e por isso o "Fora Temer" irá acompanhá-lo até o fim de seu governo, ainda que isso o incomode muito.
Sem falar que o Vice Presidente, eleito na mesma chapa que a Presidente afastada, deveria estar legal e moralmente obrigado a cumprir o programa de governo para o qual fora eleito e não o da oposição que perdeu a eleição.
Me desculpa Dr. Michel Temer por lembrá-lo desse pormenor mas mudança no programa de governo, mesmo no caso de afastamento do titular, só se faz com novas eleições.
Enfim, meus amigos daqui e de lá são muitas as narrativas sobre o que aconteceu no Brasil e eu ofereço a minha e, claro, posso estar completamente enganado.
Veremos, no final, a quem a história condenará
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