No dia em que o
Flamengo tem chance de ganhar outro título nacional, treinador relembra o
hexa e decepção no ano seguinte: ‘Me deixaram sozinho’
Por Eduardo Peixoto e Janir JúniorRio de Janeiro
Abraços múltiplos, efusivos. Tapinhas nas costas vindos de todos os
lados. Andrade estava no berço esplêndido do Flamengo no fim da tarde do dia 6
de dezembro de 2009. Torcida, dirigentes e jogadores festejavam o êxito do
auxiliar que, efetivado como treinador, tirou o time da zona intermediária da
tabela e o levou a um título improvável de campeão brasileiro. O prêmio de
melhor técnico do campeonato - entregue no dia seguinte - sugeria e referendava o início de
uma carreira promissora. Mas...
Quase
quatro anos depois, o Rubro-Negro novamente chega a uma decisão nacional. Quando
Leandro Vuaden apitar o início da partida contra o Atlético-PR, em vez da
adrenalina e da atmosfera do Maracanã, Andrade terá a companhia do buldogue
Imperador – sim, uma homenagem ao atacante Adriano -, o sofá de casa na Barra
da Tijuca e interrogações.
Do
título ao desemprego não se passaram cinco meses. Tudo desmoronou e o treinador
teve de lidar com uma sucessão de decepções. Ele cita que o título assoberbou
jogadores – que já não se dispunham a treinar como antes -, dirigentes – que
passaram a não consultá-los sobre dispensas e contratações – e o fez descobrir
que havia boicote na própria comissão técnica. Brigas, intrigas e segredos que
Andrade guarda daquele período.
- Fui
traído. Sujeira – resumiu.
Sem
atacar o Flamengo (“A entidade não tem nada a ver com as pessoas”, diz),
Andrade tenta recomeçar. Há uma proposta do São João da Barra, que disputa a
Série B do Campeonato Carioca. Não será por vaidade que deixará de aceitar. A
falta de um emprego o angustia e aperta as finanças - no momento, as contas são
pagas com o trabalho de técnico do Fla-Master.
-
Ganho milzinho num jogo e quito o condomínio. Faço outra viagem e dá para pagar
o plano de saúde. Tenho poupança ainda da época que joguei na Itália, mas quando não entra dinheiro, uma hora acaba
– declarou o ex-jogador, que teve curtas passagens por Brasiliense, Paysandu e
Boavista desde que deixou o Flamengo.
Confira a entrevista completa:
GloboEsporte.com: Nesta quarta, o
Jayme pode repetir o enredo do auxiliar que acabou campeão. Sua experiência
pode norteá-lo daqui para frente?
Andrade: Ele tem em mim um exemplo do lado
positivo e negativo, do que deve ou não fazer. Acontece com o Jayme mais ou
menos como foi comigo. Eu e ele estávamos dentro do clube, nem precisamos de
empresário para o acerto para ser técnico. Eu conhecia o grupo, fui campeão,
dei sequência depois. Só que, no meu caso, quando fui procurar
empresário já não tinha mais as portas abertas, muitos times já tinham seus
treinadores. De repente, no tempo em que fiquei trabalhando, posso não ter
colocado alguns jogadores que eram deles. Isso cria uma antipatia
Andrade durante a entrevista (Foto: Janir Júnior)
Havia pressão de empresários em escalações?
Não,
até porque o tempo em que trabalhei no Flamengo não procurei saber de
quem era o empresário de tal jogador. Nunca me preocupei em saber se era
de fulano ou beltrano. Sempre escalei o que tinha de melhor.
Jayme está perto do título. Foi assim com você, mas a conquista do Brasileiro não evitou a sua demissão no ano seguinte...
No
nosso país, tudo é possível, tudo pode acontecer. O título não é
garantia de permanência, ainda mais no Flamengo. É um clube onde as
coisas acontecem com muita euforia e oba-oba. Pela grandeza, as pessoas
querem um técnico de seleção. O Flamengo vive muito isso. Acaba se
deslumbrando um pouco, não tem muito aquela coisa de manter os pés no
chão. Primeiro vem com o pezinho no chão por conta da dificuldade
financeira para contratar e daqui a pouco é campeão da Copa do Brasil e
começa a dar um salto maior do que as pernas. A gente sabe como
acontece, não existe o meio-termo na Gávea.
Dar o salto maior do que as pernas foi um dos motivos para você ter ficado pelo meio do caminho?
Essa
forma de agir acaba atropelando as pessoas e nem sempre aquela coisa
grande dá certo. Vieram o Vanderlei, o Mano... Treinadores de ponta
chegaram depois de mim e não deram certo.
Por que os treinadores mais renomados geralmente fracassam e os da casa conseguem mais resultados?
Acho
que nós não disputamos espaço com jogador. Não temos essa pretensão de
ser maior do que eles. Eu, como ex-jogador, sei que as estrelas são
eles, que vão para campo e decidem os jogos. São as peças importantes e
você está ali para dar suporte e passar sua experiência para eles. Não
vou disputar página de jornal com ninguém.
Como você analisa essa final entre Flamengo e Atlético-PR?
No
jogo de ida, o Flamengo jogou como se estivesse em casa, em momento
algum se abalou. Foi um time equilibrado emocionalmente o tempo todo.
Tem que ter esse equilíbrio no Rio também. A torcida vai empurrar e se o
Flamengo sair de uma forma desorganizada perde o jogo. Tem que tomar
iniciativa, sim, mas de forma inteligente e organizada.
De
alguma forma, o jogo contra o Grêmio que decidiu o título brasileiro de
2009, no Maracanã, teve um pouco dessa desorganização? O Flamengo saiu
atrás do placar e teve muita dificuldade para conseguir virar.
O
time entrou com muita ansiedade. O Grêmio vinha como franco-atirador, o
resultado era indiferente para eles e a nossa responsabilidade era
imensa diante de 100 mil pessoas no estádio, mais 30 milhões
acompanhando. Tínhamos um elenco de 18 jogadores, sem muita peça de
troca. Era a conta do chá. Muitos torcedores não acreditavam em
jogadores como Fierro, mas ele era importante para mim. Tinha o Toró,
David Braz, Everton Silva, o Everton que está no Atlético-PR.
(Fotos: Janir Júnior/GloboEsporte.com)
Como foi o intervalo daquele jogo, quando o time precisava fazer mais um gol e dava sinais de tensão?
Tomamos
o gol no início, então, tínhamos tempo de reação para dar uma resposta.
Seria diferente levar um gol faltando dez minutos, que muda tudo, mexe
com o emocional. No vestiário, passei para eles que parecia que nós
estávamos jogando para cumprir tabela e o Grêmio que disputava a final
de campeonato. Disse que precisávamos de outra atitude senão passaríamos
vergonha. Eles sentiram e voltaram com outra postura, tomando
iniciativa, marcando pressão, e foi outro jogo no segundo tempo. O
primeiro tempo foi horrível.
O Adriano tinha condições de jogo ou a bolha no pé ainda incomodava?
No
jogo contra o Corinthians ele ficou fora por causa disso. Na rodada
final ele estava bem, mas teve um outro jogo em que a bolha incomodava
muito, e ele acabou com a chuteira e o meião cheios de sangue e disse
para mim: “joguei porque era você”. Talvez se fosse outro treinador ele
não teria jogado.
Como foi ter o apoio do Adriano, que defendeu sua efetivação após a saída do Cuca?
Foi
uma relação boa. Em alguns treinamentos sei que ele faltou pois não
tinha condições físicas de comparecer. Esse problema extracampo era mais
de diretoria do que meu. O meu trabalho começava a partir do momento em
que ele chegava ao treino, aí a responsabilidade era minha.
Foi difícil controlar um grupo que, além do Adriano, tinha Bruno, Pet?
Existia
respeito entre a gente. O Adriano no dia a dia é um cara simples,
humilde e agregador. Os mais jovens gostavam dele. O Pet não gosta de
concentração, mas eu disse que ele não estava na Sérvia. Nossa cultura é
diferente, temos que concentrar. Ele dizia que não gostava, mas
concentrava. Não tive problemas, cheguei a conversar duas vezes com Pet
sobre parte tática, sempre me dei bem com ele. O Bruno era capitão do
time, fazia a ligação entre mim e os jogadores. Nem sempre eu reunia o
grupo todo. Pegava o Bruno, mais uns dois ou três e, por exemplo,
explicava que tinha que concentrar dois dias antes, pois o jogo era
importante. Bruno convencia o grupo. Tive um problema com ele antes de
assumir, mas depois ficou zerado. Podia chegar e tirar ele de capitão,
mas não era o caso. Ele sempre me ajudou, um cara tranquilo de lidar. O
único que tive problema mais sério foi o Juan
.
Que tipo de problema?
Foi
no jogo contra o Barueri. O mais chatinho era o Juan (risos). O Juan
não gosta de ficar no banco, não gosta de ser substituído, não pode
isso, não pode aquilo. Mas em compensação era o cara que mais gostava de
treinar. Ele era ranzinza (risos). Ele estava mal no jogo. O time todo
estava, mas ele estava num dia muito ruim. Aí eu o substitui e o Juan
atravessou o campo em direção ao banco. Eu estava com o fone de ouvido, a
torcida bem atrás do banco. Sabia que ele ia falar alguma coisa. Quando
começou a chegar, virei de lado, mas percebi que ele falou algo, não
sabia o quê. Ele tinha falado: “quer me ferrar?” (risos). Na verdade
quem ia me ferrar do jeito que estava jogando era ele (risos). Ele deu
azar porque sentou no banco, a torcida pegou no pé dele, pedindo
respeito e perguntaram: “já chupou laranja com Zico?”. Mas perdemos esse
jogo (2 a 0 Barueri) na véspera.
Por quê?
Na
segunda-feira era aniversário do Léo Moura. Liberamos o pessoal para a
festa e depois tinham que voltar para concentração. Como o Léo era
aniversariante, deixamos ele dormir em casa. Mas houve um mal entendido,
uma pessoa achou que ele teria que voltar no dia e ficou um clima
horroroso. Quando chegou a véspera do jogo o ambiente era horrível,
jogadores chateados, pois houve cobrança em excesso. O Léo Moura ficou
p… Perdemos o jogo ali. Foi falta de comunicação. Mas a situação do
Juan, assim que entrei no vestiário, ele pediu desculpa e logo me
desarmou. Não tinha problema de relacionamento com ninguém. O maior
problema era extracampo.
Excessos extracampo?
Noitada, né?! Churrasco, festa... Acaba o treino, eu vou para minha casa, não vou andar atrás dos caras.
Com o título brasileiro de 2009, você acha que os jogadores acharam que estavam acima do bem e do mal?
Fizeram de tudo para me expor, revelaram o valor do meu salário. Ganhava
R$ 160 mil. Tem quem receba R$ 500, R$ 600 mil e ninguém fala nada.
Andrade
O
título traz junto a vaidade. Não só de jogadores, mas dirigentes
também. Era o meu sexto título brasileiro, eu não ia achar que era o
cara. Eu conversava uma coisa e eles não queriam fazer no treinamento.
Houve mudança de postura.
É prova de que um título não traz só coisa boa?
Traz
coisa boa de momento. Mas para o ano seguinte começa a mudar. Foi o
primeiro título da maioria. O sacrifício que o cara fazia antes já não
quer fazer mais. As contratações foram equivocadas. Em 2009 me
consultavam, depois não.
Quando você saiu já estava desgastado?
O
desgaste aconteceu por pessoas que me apoiavam antes e depois mudaram
de lado. Começaram a plantar notícia para me queimar. A renovação de
contrato foi desgastante. Fizeram de tudo para me expor, revelaram o
valor do meu salário. Ganhava R$ 160 mil. Tem quem receba R$ 500, R$ 600
mil e ninguém fala nada. Tinha acabado de ser campeão brasileiro! Veio
outro técnico que nunca conquistou nada e recebia R$ 300 mil. Jogaram na
imprensa para me queimar. Um ou outro falava que eu era mercenário.
De alguma fora se sentiu traído?
Sim, né? Fui traído, foi uma traição. Sujeira. (Andrade olha fixamente para baixo, pensa e, com a voz embargada, para de falar)
Você sentiu que gente da sua própria comissão vazava notícia ou só a direção?
Gente da minha própria comissão achou que ia assumir o cargo e se debandou para o outro lado. Me largaram sozinho.
Como foi lidar com uma decepção pessoal tão grande depois de um título expressivo?
Difícil,
complicado. Começou a existir um movimento pela minha saída. A
prioridade era a Libertadores. Aí eu perdi o Carioca e, mesmo chegando à
final, fui demitido, com 76% de aproveitamento. E o time acabou
passando para as oitavas de final da Libertadores. Coloquei o time na
Libertadores e acho que teria o direito de terminar essa competição.
Como fica isso no seu íntimo, o Flamengo um clube que te proporcionou tanta alegria, mas que causou uma grande decepção?
De
seis títulos brasileiros do Flamengo, eu participei de cinco. Nenhum
jogador foi tão marcante assim num clube só. Tenho uma Libertadores e um
Mundial. Separo a entidade das pessoas que ali passam. Não tenho mágoa
do Flamengo. Fiquei chateado com as pessoas. Mas tenho o reconhecimento
do torcedor, de estar na rua e ouvir parabéns pelo trabalho, até de
torcedor de time adversário. Isso conforta. Não sou muito de guardar
mágoa. Nada melhor do que o tempo.
Você tem algum vínculo com a atual diretoria?
Não.
Conversei rapidamente com algumas pessoas, mas não tenho nenhuma
intimidade. Nunca me procuraram para nada. Eu os procurei. Logo que saí
do hospital, me coloquei à disposição para ajudar o clube como
observador técnico. Mas não tive retorno.
Andrade durante treino do Flamengo
(Foto: Vipcomm)
Qual a sua condição financeira atual? Você pode parar de trabalhar?
Só
por um tempo, pois o dinheiro acaba. Tenho uma poupança de quando
joguei na Itália. E também recebi o prêmio do Brasileiro. Dá para
segurar um tempo. Mas onde só sai e não entra um dia vai acabar. Tenho
minha casa e dois apartamentos que alugo. Mas um deles minha filha vai
morar.
Há propostas?
Recebi
algumas sondagens, me ligaram para ir para fora do país, depois o
negócio esfriou. Tive uma proposta de Minas que foi muito baixa, outra
da Série B do Rio. Continuo sem empresário. Procurei, mas não tive
êxito.
Você acha que um dia voltará a treinar o Flamengo?
Não
alimento isso. Quero voltar a trabalhar, pois eu preciso, seja em
qualquer clube. Se acontecer de ser no Flamengo tudo bem. Mas acho que
já dei minha pequena contribuição ao Flamengo (risos).
O
Jayme disse que não consegue entender como um técnico que foi eleito o
melhor do campeonato, com o título brasileiro, e não teve mais
oportunidade em um time grande. Como você entende isso?
Minha
saída do Flamengo foi muito desgastante. Me expuseram muito. Pela
história que tenho no clube poderia ter sido preservado. Depois,
trabalhei cinco meses no Brasiliense, cheguei lá o time estava
praticamente morto. Era um time com jogadores rodados, mas que estava
fisicamente mal. Apesar de ter caído, acho que ficou como o Andrade
quase salvou o Brasiliense. Fui para Belém, no Paysandu, fiz três jogos
para tentar chegar à Série B, mas acabamos não subindo. Depois fiz seis
jogos pelo Boavista.
O Jayme também falou que vendo o que aconteceu com você não sabe se continua no ano que vem...
Agora é uma outra diretoria, não sei qual é a filosofia deles.
Você teria algum conselho para dar ao Jayme?
Arrumar um bom empresário. Naquele meu momento, seu eu tivesse um, estaria mais blindado.
Muito se fala de preconceito com técnico negro no Brasil. Isso existe?
Acho que é mais coincidência por ter pouco técnico negro. Agora, tem o Jayme e o Cristóvão na Série A.
Mas teve algum tipo de problema com isso?
Dentro
do Flamengo, quando era treinador, ouvi algumas coisas, principalmente
dos diretores da base, comentário como: “Ah, agora é Urubu Fla”, pois na
época o Adílio era meu auxiliar. Foi quando assumi como interino. Mas
passou. Deixei para lá, ignorei a situação.
Apesar
das semelhanças na trajetória, no caso do Jayme ele tem um elenco mais
disciplinado e não precisa se preocupar em domar Adriano, Pet, Bruno...
Facilita?
Eu tinha muita dor de cabeça fora
de campo, né?! Ia para sala de imprensa e tinha que responder de
Adriano, Bruno, Willians. É, ainda tinha o Willians de quebra (risos).
FONTE:
http://globoesporte.globo.com/futebol/times/flamengo/noticia/2013/11/de-protagonista-telespectador-solitario-andrade-desabafa-fui-traido.html